O tema da imigração “é uma obsessão na Europa”, definiu numa entrevista o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. O ministro comentava o imbróglio diplomático que envolveu Brasil e Espanha nos primeiros meses deste ano, quando as autoridades espanholas foram acusadas de submeter a maus-tratos um número crescente de viajantes

brasileiros detidos no aeroporto de Madri. Obsessivo ou não, o Parlamento Europeu aprovou no dia 18 de junho a chamada Diretiva de Retorno, que estabelece regras comuns para a União Européia (UE) no trato com os imigrantes irregulares. Entre as medidas que apertam o cerco, está a possibilidade, antes da deportação, de detenção sem julgamento por até um ano e meio das pessoas cuja entrada, permanência ou residência no continente forem consideradas ilegais. O pacote entra em vigor em 2010.

Mesmo nos países do bloco, a nova política tem recebido duras críticas. ONGs e entidades de defesa dos direitos humanos se referem a ela como “diretiva da vergonha”. Na visão do jornalista português José Vítor Malheiros, ela merece esse nome porque

“estabelece uma lei iníqua, uma lei dura mas feita apenas para os pobres, e que castigará os pobres que queiram comer”. Em artigo assinado no diário Público, de Lisboa, Malheiros continua: “Com essa diretiva, a União Européia torna claro que a imigração clandestina é um crime em si e que os autores desse crime, os migrantes pobres que têm a ousadia de vir meter o pé na porta para tentar trabalhar na Europa, devem ser punidos com dureza e sem merecer as garantias jurídicas que se reservam aos estados de direitos para os seus cidadãos”. E conclui, ao dizer que o continente despreza a “tradição humanista e iluminista que gosta de invocar”: “A questão é simples: se a Europa não serve para defender os direitos humanos, não serve para nada”.

Investimento – Para Carlos Salas, docente mexicano que será professor convidado do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam) da USP neste segundo semestre, na origem das medidas anunciadas pela UE estão dois tipos de problemas: “o menor crescimento da economia” do bloco e “o reconhecimento da incapacidade dos países emissores para reter sua população”. Nenhum dos dois fenômenos pode ser enfrentado com medidas legais, acrescenta Salas, “ademais arbitrárias e contrárias ao espírito e à letra da Declaração dos Direitos do Homem”. O professor leciona no Colégio de Tlaxcala, instituição de pós-graduação no estado de mesmo nome, na região centro-oriental do México.

“Para justificar essas atitudes se faz uso de uma xenofobia presente entre numerosos grupos sociais da Europa e em especial em alguns de seus governos”, diz Salas. Os países afetados pelas medidas da UE “devem protestar contra o ataque aos direitos humanos de seus trabalhadores, que muitas vezes expõem sua vida na busca por melhores condições materiais”. O professor mexicano afirma que somente planos de desenvolvimento nacionais e autônomos “podem ser a resposta de longo prazo para evitar as migrações”.

Se os governos da África e da América Latina têm o “dever moral de impulsionar esses projetos, a UE tem a obrigação moral de apoiá-los”, defende. “A necessidade imperiosa de sobrevivência de muitos trabalhadores da África e da América Latina os empurra a entrar na UE, ainda que sem ter papéis. Em vez de reprimir, a UE deveria colocar em marcha um plano de desenvolvimento, em especial na África, e promover projetos de investimento produtivo em infra-estrutura na América Latina”, continua. Esses projetos, salienta, “não são os investimentos simples que já existem, mas sim planos de desenvolvimento integrais, que permitam a geração de emprego e renda para os grupos sociais que buscam migrar”. Sem essas medidas, diz Carlos Salas, “o futuro de um enorme número de trabalhadores e de suas famílias é ominoso”.

História – “Para minha geração, exilada na Europa durante as ditaduras militares sul-americanas dos anos 70, a Diretiva de Retorno não é uma grande surpresa”, diz Mauro de Mello Leonel Júnior, professor do Prolam e da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP. Para ele, o desprezo aos estrangeiros no continente remonta aos tempos da antiga democracia ateniense e do Império Romano, quando eles “representavam o lumpen proletariat e depois eram descartados como indesejáveis”. Leonel Júnior cita vários outros exemplos em que estrangeiros foram perseguidos e mesmo exterminados ao longo da história, como judeus e árabes durante a Inquisição, ciganos na Andaluzia e judeus e ciganos na Alemanha de Hitler.

Os problemas continuam na atualidade em várias partes do mundo, aponta o professor. “O Brasil hoje trata com severidade os bolivianos que aqui tentam instalar-se nas mãos até de coreanos da conexão sino-coreana-paraguaia”, diz. “Mexicanos e brasileiros nos Estados Unidos, turcos na Alemanha, argelinos, tunisianos, marroquinos e meia África na França, paquistaneses e hindus no Reino Unido”, exemplifica, são tomados como “puro risco”. Outros casos que demonstram falta de respeito pelas diferenças podem ser encontrados em conflitos como a invasão do Iraque, comandada pelos Estados Unidos, e entre israelenses e palestinos.

Mauro Leonel Júnior defende que os governos do Hemisfério Sul “devem responder com firmeza a essas políticas neo-racistas que se instalam na parte ocidental do Hemisfério Norte”. O professor critica os países europeus por utilizarem a mão-de-obra dos imigrantes “para chutá-la em seguida”. Também é preciso lembrar, ressalta, que a América recebeu inúmeras levas de cidadãos de outras latitudes. “A imigração italiana e japonesa no Brasil, por exemplo, evitou graves crises agrárias nesses países. Sem dúvida essas contas precisam ser ajustadas, como as da poluição e as do monopólio do capital e da tecnologia”, conclui.

 

A via-crúcis dos africanos

Embora os latino-americanos também estejam na mira das novas regras da UE, o alvo principal do endurecimento das normas para a imigração provavelmente está mais direcionado ao drama de milhares de africanos que tentam realizar o sonho de chegar ao “paraíso” europeu utilizando o território espanhol como entrada. Muitos deles passam por uma verdadeira via-crúcis cujas estações podem se estender por vários países e longos anos até atingir o Marrocos.

Dali, a esperança é cruzar para o outro lado do Estreito de Gibraltar: são apenas 14 quilômetros a separá-los da “Terra Prometida”, mas poucos conseguem pisar nela. Para a imensa maioria, o final da história inclui prisão e deportação – ou mesmo a morte nas águas do estreito, conseqüência dos naufrágios das embarcações nas quais os viajantes clandestinos pagam verdadeiras fortunas para entrar. São freqüentes os casos de cadáveres que aparecem nas costas espanholas. Na semana passada, 14 imigrantes da África Subsaariana, entre eles nove crianças de 1 a 4 anos de idade, morreram tentando a travessia.

Essa trágica odisséia foi acompanhada pelo jornalista português Paulo Moura, do diário Público. A investigação resultou no livro Passaporte para o céu, publicado em seu país em 2006. “Estamos no cenário caricatural do grande drama humano da nossa época. O mundo rico e o mundo pobre frente a frente, separados pelo espelho deformador do Estreito de Gibraltar”, escreve Moura no livro.

Um dos cenários mais trágicos que Moura conheceu é o da floresta de Missnana, nos arredores de Tânger, cidade marroquina próxima ao estreito. Ali, milhares de pessoas esperam o momento de serem chamadas pelos mafiosos para embarcar. Enquanto isso, submetem-se a condições subumanas vivendo praticamente em buracos, expostos às intempéries do clima e sujeitos a saques da polícia e dos moradores das aldeias vizinhas.

“Os que fazem essa aventura de imigrar nem são os mais pobres”, afirma Paulo Moura em entrevista exclusiva ao Jornal da USP. “Saem os que conseguiram dinheiro para isso. Há gente licenciada, com curso superior, mas que nunca teve trabalho em seu país.” No livro, o jornalista registra muitos outros paradoxos, como quando se refere aos imigrantes que pagam para aguardar o chamado para o embarque em pensões marroquinas: “Os ilegais são vulneráveis a qualquer chantagem, e mercadoria de negócio para muita gente. A polícia sabe onde eles estão, e cobra caro por sua tolerância. Os vizinhos fazem o mesmo. Todos ganham, à exceção dos próprios imigrantes. Que tesouro é esse? Dá para todos, de forma desigual. Os donos das pensões, os guardas, os intermediários, os que trazem os imigrantes da África Subsaariana e os que os transportam até a Europa, os angariadores, os informadores, os vigilantes, os que colaboram, os que denunciam, os que se calam, os polícias, os políticos, os juízes. Todos vivem à custa dos mais pobres, dos que não têm nada. Estranha pirâmide em que os mais miseráveis sustentam o resto da sociedade”.

 
PROCURAR POR
NESTA EDIÇÃO
O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[
EXPEDIENTE] [EMAIL]