Em uma conversa, certa vez, com um jornalista e admirador, o professor e crítico literário Antonio Candido de Mello e Souza afirmou, com sincera  modéstia: “Eu acho que sou supervalorizado. Não sou isso tudo que falam. A grande cabeça política da minha geração foi Paulo Emílio Salles Gomes, e o grande crítico estético, Décio de Almeida Prado.

Só me valorizam assim porque vivi muito, porque estou velho”. Ao citar os amigos, Candido faz uma justa homenagem a dois dos maiores intelectuais que o Brasil já teve, mas, com a humildade que é peculiar aos grandes, relativiza o que não pode (ou não deve) ser relativizado: a sua própria importância intelectual, a sua relevância cultural e sua coerência de postura e idéias em um país onde isso, infelizmente, tem sido cada vez menos valorizado. Por isso, permita-se uma discordância neste artigo: não é a longevidade de Antonio Candido que o faz tão importante e tão valorizado. É o que ele fez ao longo dos seus 90 anos de vida – comemorados na última quinta-feira, dia 24 – que o torna merecedor de todas as loas e homenagens. Uma trajetória de vida como poucas, e com muitas histórias para serem contadas.

Afinal, Antonio Candido é o último representante de uma geração de intelectuais e professores universitários que não tinha em seus dicionários – sempre

fornidos de muitas e bem usadas palavras – a expressão “ciúme acadêmico”. Era uma geração de gentlemen, de cavalheiros acima de tudo, de companheiros, que podiam até travar embates intelectuais e ideológicos – e os travavam, eventualmente –, mas que se respeitavam e, mais do que isso, se admiravam mutuamente. E que exercitavam a generosidade intelectual, coisa que Antonio Candido fez com seus alunos e faz até hoje.

É dessa geração que fazem parte nomes como os já citados Décio de Almeida Prado – responsável pela melhor compreensão e estudo do teatro brasileiro – e Paulo Emílio, criador da Cinemateca Brasileira, e também Lourival Gomes Machado, Ruy Coelho e Gilda de Mello e Souza, esta falecida em 2005 e com quem Candido foi casado por seis décadas. Foram estes intelectuais, jovens e oriundos da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, nos anos 40, que criaram uma nova forma de pensar a cultura brasileira, a política e o próprio Brasil, empreendendo muitas dessas suas idéias na revista Clima, que eles fundaram e dirigiram. Por um período curto, é verdade, mas essencial. E aqueles rapazes fustigavam as vacas sagradas da cultura – ao mesmo tempo em que as admiravam. Não foi à toa que Oswald de Andrade acabou por apelidá-los de “chatoboys”. Se levavam a sério? Com certeza. Mas também nutriam uma verve humorística que pouca gente talvez pudesse suspeitar. Como imitar vozes – Candido até hoje imita Fernando de Azevedo com maestria e extremo humor –, cantarolar musiquinhas improváveis e contar “causos” com extrema picardia, sem nunca perder, contudo, a elegância. “Eu diria que depois da minha família e da USP, a terceira grande coisa na minha formação foram meus amigos do grupo de Clima. Nós temos plena consciência de nos termos formado uns aos outros”, declarou ele.

Literatura e sociologia – Um outro exemplo do humor dos amigos de Clima: quando foi informado de que Antonio Candido iria dar aulas de literatura brasileira em Assis, nos anos 50, Paulo Emílio não se conteve: “Mas isso é maravilhoso. É o lugar certo para o Candido. A Itália, com toda sua cultura, sua história, seu refinamento. Isso é espetacular. Antonio Candido é perfeito para isso”. Ao ser informado pelo interlocutor, contudo, que a Assis onde o professor iria lecionar não era a cidade natal de São Francisco, mas sim aquela no interior de São Paulo, Paulo Emílio explodiu: “Então, Antonio Candido é uma besta!”.  Não se perdeu o amigo, é claro, nem muito menos a piada, mas Paulo Emílio sabia, no fundo, da importância daquilo para Antonio Candido.

Ao assumir a cadeira de literatura brasileira na interiorana Assis, em 1957, o professor estava dando vazão à sua enorme paixão pela crítica literária e pelo estudo da literatura e deixando de lado a sociologia na qual se formou e que foi tão importante para ele. Afinal, ele teve como mestres, entre outros, Roger Bastide e Jean Maugüé, pilares do ensino das ciências sociais nos primórdios da Universidade de São Paulo e foi na sociologia que ele defendeu a tese, depois publicada, Os Parceiros do Rio Bonito, estudo que, nas palavras do crítico e jornalista Antonio Gonçalves Filho, “evita olhar a realidade brasileira de forma mecânica”.  Mas era na literatura que ele se encontrava e sempre se encontrou por inteiro. “Eu não desgostava das ciências sociais e a certa altura passei a gostar mais de antropologia que de sociologia, mas gostava muito mais de literatura”, declarou ele, certa vez. “Mas a sociologia foi fundamental na minha formação, na medida em que condicionou a minha visão de sociedade e a minha reflexão política.”

Dois anos após chegar a Assis, Candido publicou o livro que para muitos já nasceu clássico – menos para ele, é claro: Formação da literatura brasileira.  Mais dois anos, em 1961, inaugura a cadeira de Teoria Literária na Universidade de São Paulo e vai lecionar na mítica Maria Antonia, onde formou alguns dos mais importantes críticos das futuras gerações, como Walnice Nogueira, Davi Arrigucci Jr., Alfredo Bosi (que assinam textos sobre o eterno professor nas páginas seguintes) e João Alexandre Barbosa.  Foi do prédio da Maria Antonia que Candido assistiu a todos os conflitos que espocaram por lá nos plúmbeos e ditatoriais anos 60. Mas, diferentemente de outros colegas mais visados, como Florestan Fernandes, Candido não teve muitos problemas com a polícia dos generais-presidentes. A razão era simples: literatura não assustava ninguém. “Quando estava em curso a ‘Batalha da Maria Antonia’, com policiais cercando o prédio da faculdade e tudo, cheguei e tentei ir até lá. Um policial me barrou e perguntou de que disciplina eu era professor. Quando falei ‘teoria literária’, ele fez um muxoxo e me deixou passar. Se falasse ‘sociologia’ a situação seria diferente”, lembrou ele, certa vez.  Foi graças a essa “capa pedagógica” que Candido pôde ajudar muitos amigos que tiveram que se esconder e fugir da ditadura. Alguns, Candido e Gilda de Mello e Souza esconderam dentro de casa e ajudaram a escapar.

Mas não se pense que essa solidariedade era um caso ideológico ou de afinidade intelectual, pura e simplesmente. Como já se falou aqui, Antonio Candido e os de sua geração eram cavalheiros e a solidariedade é um matiz do cavalheirismo, em qualquer circunstância. Certa vez, durante um congresso da Associação Brasileira de Escritores – que ele ajudou a criar –, Candido percebeu que uma pessoa estava isolada na platéia, sem ninguém disposto a sentar a seu lado: era Carlos Lacerda, de quem todos fugiam como se fosse o demo em pessoa – para muitos, ele era pior ainda. “Lacerda era uma ilha, cercada de cadeiras vazias por todos os lados”, lembra Candido que, solidário com a situação, mesmo discordando das posições ideológicas e políticas de Lacerda, foi sentar-se ao seu lado. “Ele continuou lá, empertigado. Notava-se que estava tocado com a minha atitude, mas continuava impassível.”

PT e presidentes – À parte esse fato, Antonio Candido sempre manteve uma postura política muito clara, por mais  que se considere “desprovido de cabeça política”. Alinhado à esquerda, como seus companheiros de geração, foi militante do Partido Socialista Brasileiro – mesmo que isso levantasse suspeitas e agressões do PCB, o antigo Partidão, que os chamava pejorativamente de “trotskistas”. “Isso era um tremendo xingamento nos anos 40”, lembrou em uma ocasião o professor. Combateu a ditadura de Getúlio Vargas, apoiou candidatos de esquerda e, em 1980, foi um dos primeiros signatários da fundação do Partido dos Trabalhadores, ao lado de outros amigos de longa data, como Sérgio Buarque de Holanda e Florestan Fernandes. A ligação de Candido com o PT é longa e umbilical, apesar de o professor ter se afastado do partido após a eleição de Lula para a Presidência, em 2002, achando que sua missão estava cumprida e que a eleição de um operário era o coroamento de toda a luta de sua geração.

Mas se Lula e o PT tiveram em Antonio Candido uma espécie de xamã, outro presidente brasileiro também o teve como mestre: Fernando Henrique Cardoso, que foi seu aluno no curso de Sociologia da USP, e que o visitava em casa ao lado de sua então noiva, Ruth, freqüentemente. E ao se falar dos dois últimos moradores do Palácio do Planalto, ressalta-se mais uma vez características de Antonio Candido: o respeito às amizades e a elegância. Discordando ou não da política empreendida por FHC e por Lula, o professor nunca fez qualquer declaração em público questionando isso ou aquilo. “São amigos, e de amigos nós não devemos falar. Devemos respeitar”, sempre declarou. O Brasil deveria ter muito mais amigos – e homens – como Antonio Candido de Mello e Souza.

 
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