A amizade entre Antonio Candido e Florestan Fernandes remonta aos bancos escolares – bancos da USP, onde estudaram Ciências Sociais. Aproximou-os, inicialmente, a posição em que ambos se encontraram como assistentes de Fernando de Azevedo, na Cadeira de Sociologia, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Florestan,

dois anos mais novo, era segundo-assistente e Antonio Candido, primeiro-assistente. A “afinidade seletiva”, apesar de temperamentos até opostos, foi instantânea e duraria pela vida afora. Gostavam de fazer uma brincadeira, em que ambos, em vez de  disputar, cediam a precedência um ao outro ao passar pelas portas, ou ao tomar um café:

– “Você primeiro, que é mais moço” –, dizia Antonio Candido a Florestan.

Décio de Almeida Prado, Paulo Afonso Mesquita Sampaio, F. Coaracy e Paulo Emilio Salles Gomes: grandes intelectuais unidos pela amizade e pelas mesmas convicções políticas

– “Não, você primeiro, que é primeiro-assistente, portanto mais graduado” –, respondia Florestan.

Essa situação e essa amizade se desenrolaram, sempre crescendo, por muitos  anos. Planejavam cursos e discutiam leituras juntos, como cabe a jovens professores. Militaram lado a lado na Campanha da Escola Pública, ante a primeira investida de privatização do ensino, nos anos 50-60.

Ambos abrigavam convicções socialistas, e por isso a amizade passou por muitos percalços, como a perseguição da ditadura a Florestan Fernandes, que foi expulso de seu cargo na Faculdade de Filosofia e teve que sair do país. Quando da abertura política do final dos anos 70, participaram conjuntamente de várias atividades. Mais tarde, Antonio Candido trabalharia para a candidatura, afinal vitoriosa, de Florestan a deputado federal pelo PT. Eleito e reeleito, o professor destacou-se por uma combativa atuação parlamentar, a par com discussões em artigos de jornal que escreveu sem cessar, democratizando o debate. E foi para o PT e a campanha eleitoral de Florestan que Antonio Candido doou o total da importância do Prêmio Moinho Santista, que recebeu em 1990.

Juntos compareceram e juntos discursaram na Semana Carlos Marighella, em que a Universidade Federal da Bahia celebrou a memória do revolucionário, em 1994.

O convívio consubstanciou-se em trabalhos que Antonio Candido escreveria em diversas circunstâncias sobre o sociólogo, os quais, reunidos, renderiam um livro inteiro. Dentre eles, destacam-se, pela oportunidade, as orações que pronunciou na inauguração de duas instituições que o homenageiam postumamente, adotando seu nome: a Biblioteca Central Florestan Fernandes, da Faculdade de Filosofia da USP, e a Escola de Formação Florestan Fernandes, do MST.


Florestan Fernandes

Após perder o amigo, publicou Lembrando Florestan Fernandes (1996), dedicando-o a seus familiares. São nove textos, entre prefácios, artigos, depoimentos e discursos.  Singelamente intitulado Florestan Fernandes, seria  reeditado pela Fundação Perseu Abramo em 2001.

Nesses textos, Antonio Candido registra suas reminiscências mais remotas, de quando ambos eram assistentes, primeiro no prédio da Caetano de Campos e depois na Maria Antonia. E vai descrevendo a evolução da pessoa e dos trabalhos, que analisa a fundo, desse grande fundador da sociologia científica no Brasil.

Sérgio Buarque de Holanda – Afora Florestan, Sérgio Buarque de Holanda foi outro dos grandes amigos de Antonio Candido. Essa convivência teve muitas facetas, e uma delas revela o lado brincalhão de ambos. Um episódio exemplifica.

Os dois improvisaram  um  pas-de-deux  na celebração dos 60 anos de Sérgio, na casa da rua Buri, sede de memoráveis festas. Na ocasião, os sete filhos do aniversariante, conhecidos por seus dotes musicais, cantaram em coro uma composição de sua lavra, intitulada Viva o novo sessentão, ao som da qual deu-se a dança, para espanto dos convivas.

Sérgio, como se sabe, é autor de Raízes do Brasil, que Antonio Candido prefaciaria por duas vezes. Tendo já escrito um prefácio à quarta edição, mais tarde Antonio Candido faria outro, mais desenvolvido, à quinta edição revista (1969), em que equipara este livro a Casa grande & senzala e a Formação do Brasil contemporâneo, integrando uma trindade que, segundo ele, fez sua geração adquirir uma noção de Brasil, vincando os anos 30.

Depois, Antonio Candido editaria o livro Capítulos de literatura colonial (1991), a partir de inéditos que o historiador deixou inacabados e que foram encontrados postumamente. Escreveu um estudo sobre o livro, no qual afirma que este é o mais valioso que existe sobre o Arcadismo – quando se sabe que ele mesmo é um especialista no período.


Sérgio Buarque de Holanda

Mais tarde, encabeçaria um seminário sobre o amigo, de que resultaria o livro Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil (1998), que organizou, coligindo os trabalhos apresentados no seminário, submetendo a obra do historiador a diferentes perspectivas.

Ambos haviam-se aproximado nos tempos da ditadura Vargas, quando, como intelectuais de oposição, se congregaram na Associação Brasileira de Escritores, de cuja fundação Sérgio Buarque de Holanda participou, em 1942. Além de serem ambos contra a ditadura, como sua afiliação comprovava, eram igualmente pertencentes ao grupo socialista, dentro da frente ampla que incluía liberais, stalinistas, trotskistas etc.

Quando da redemocratização, em 1945, iriam juntos para a Esquerda Democrática, primeiro, e dois anos depois para o Partido Socialista.

Após o interregno de vigência da democracia, interrompido mais uma vez por outra ditadura, a de 1964, estariam juntos em público durante a abertura política. Ali por 1978-79, participariam conjuntamente, e com freqüência, dos comícios e atos públicos em que a época foi fértil. Nesses eventos, o historiador aparecia envergando não inocentemente um paletó vermelho escuro. Possível traço guardado dos fastos modernistas, manifestava assim apego ao gesto provocador, no porte de um objeto simbólico que encarnasse o inconformismo.

Sérgio, que participara da Semana de Arte Moderna de 1922 e criara uma revista modernista, Estética, tinha muito de enfant terrible. Pertencia a uma geração anterior, na qual para ser de vanguarda era de rigor a irreverência. Já Antonio Candido e o grupo de Clima tinham sido fulminados por Oswald de Andrade com o epíteto de “chato-boys”, com que mimoseou a seriedade deles.


Candido, Gilda de Mello e Souza e José Mindlin

Mais uma vez companheiros em outra missão, participaram juntos da fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1980. Aos 78 anos, já doente e apoiado na bengala, o historiador veio a ser um dos primeiros a assinar a ata de fundação do PT.

O fulcro da convivência com Sérgio foi a militância, enquanto com Florestan foi a proximidade de dois colegas de trabalho.

Revista Clima É conhecida a amizade entre Antonio Candido e seu grupo da revista Clima. Sabe-se, e já se escreveu bastante a respeito, das alianças fraternas e de projeto intelectual de Antonio Candido com seus companheiros de geração na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Nos 16 números que a revista, produzida por jovens no verdor dos 20 anos, tirou entre 1941 e 1944, definiram-se vocações e perfilaram-se carreiras. A partir da distribuição das tarefas em suas páginas Antonio Candido se tornaria crítico literário, Paulo Emílio Salles Gomes passaria a atuar na crítica de cinema, Décio de Almeida Prado no teatro, Lourival Gomes Machado nas artes plásticas, Gilda Rocha de Mello e Souza na estética, Rui Coelho na antropologia. A amizade entre eles se manteve por toda a vida. E todos eles, cedo ou tarde, privilégio nosso, tornaram-se professores da USP.

Alinhei aqui os principais amigos de Antonio Candido, grandes intelectuais como ele mesmo. Falta dizer que outra coisa os unia, as convicções políticas, pois todos, sem exceção, eram socialistas, alguns menos e outros mais, como Florestan, que desembocou na atuação parlamentar, ou  Paulo Emílio, que ocupava a posição de guru político do grupo de Clima.

Walnice Nogueira Galvão é professora de Literatura da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 
PROCURAR POR

NESTA EDIÇÃO
O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.

[EXPEDIENTE] [EMAIL]