Os amigos da ciência vieram de toda parte, muitas vezes enfrentando longas jornadas por terra, ar e água, para mostrar a riquíssima diversidade de um país que, contra todos os obstáculos, pulsa e borbulha de iniciativas, projetos e avanços. Do segundo estado com maior número de participantes inscritos na 60ª reunião anual da SBPC – o

Pará, com 375 pessoas, atrás apenas do anfitrião São Paulo, com 2.050 –, veio José Lopes dos Santos, de 45 anos. Foram três dias de barco da comunidade quilombola Moura, no município de Oriximiná, oeste paraense, onde vive, até Belém. Da capital, José Lopes voou até São Paulo, de onde tomou o rumo de Campinas. “Eu vinha vindo no avião para cá, oh, só vinha enxugando meus olhos, vendo muita floresta, muito campo onde só sobraram uns palminhos de mato”, conta o artesão. “Na minha terra tem verde, floresta para você se divertir com as cotias, com as pacas, com as antas, com todo tipo de animal. Temos muito peixe também. A gente vive muito feliz lá.”

José Lopes mostra ao repórter como se faz

uma pequena tartaruga de barro. Em cinco minutos o bichinho está pronto. “Para ficar bem bonita, com todo o acabamento bem-feito, eu teria que levar uns dez minutos”, diz, enquanto o repórter pensa que talvez conseguisse produzir algo parecido em dez anos. O artesão fala com orgulho de suas raízes negras e indígenas e do costume da caça para subsistência (“tenho minha espingardinha lá, não vou mentir, de vez em quando mato um veado, tiro um pedaço para cada amigo que está perto. Agora, se chegar alguém e me disser: me vende um pedaço, eu digo que dou um pedaço, mas não vendo”), enquanto ao redor da mesa agrupam-se visitantes, curiosos e crianças para vê-lo trabalhar e contar histórias. As crianças, claro, acabam colocando a mão na massa. Uma professora interrompe a entrevista e pede para dar um abraço no artesão. Sorriso largo, José Lopes diz que vai sujá-la porque está com as mãos cheias de barro. A professora não se importa. Lopes se levanta e um abraço emocionado sela um encontro de culturas tão díspares quanto genuinamente constituintes da múltipla e una argila brasileira.

Lopes estava na SBPC a convite do Museu Paraense Emilio Goeldi, de Belém, que entre suas atividades realiza programas interdisciplinares relacionados a temas como biodiversidade, ocupação humana, estudos costeiros e arqueologia. O projeto com as oficinas de arte e ciência nas comunidades quilombolas da região do rio Trombetas teve início em 2001, quando numa área de extração de bauxita foram encontrados vestígios arqueológicos pré-históricos. Por meio da parceria do museu com a empresa Mineração Rio do Norte, cerca de 50 pessoas aprenderam a prática quase esquecida da manufatura da cerâmica, que era mantida por apenas três mulheres das comunidades. Ao resgate cultural soma-se uma forma de geração de renda.


José Lopes, do Pará: orgulho das raízes negras e indígenas

Mistérios – A conservação das áreas de extração da argila não é esquecida. “Uma coisa muito importante na nossa retirada do barro é a preservação do ambiente. Em todo local que a gente cava sempre fica um buraco, mas nós vamos puxando alguma coisa para fechar aquele buraco. Fica zeradinho”, relata José Lopes. “O Ibama, na nossa área, não tem a mínima preocupação conosco.”

A extração, no entanto, tem os seus mistérios. No grupo que vai retirar o barro, não é permitida a presença de “mulheres menstruadas, indispostas”, como explica o artesão. “As nossas peças ficam estragadas, estouram nos fornos. O barreiro fica totalmente desnorteado, esculhamba tudo.” O respeito às forças invisíveis da natureza também está presente. Cada barreiro tem uma “mãe”, à qual os artesãos pedem licença para entrar. “A gente diz: olha, minha mãe, eu vim aqui para a senhora me dar umas bolinhas de barro aqui da sua área para eu fazer minhas peças e ganhar meu dinheiro, mas eu trouxe um presentezinho para a senhora me recompensar e não ficar com raiva de mim”, conta Lopes. O presente pode ser uma peça de cerâmica pronta que é jogada – de costas – na direção do barreiro. Assim, os artesãos estão livres para trabalhar. “Esse é o nosso ritmo de quilombola, de negro, de índio. É a nossa forma de trabalhar.”

Experiências on-line – O estande do Museu Emilio Goeldi era um dos 120 reunidos nos 6.600 m2 da Exposição de Ciência e Tecnologia (ExpoT&C), uma das atrações que mais receberam público durante a reunião anual da SBPC. Os pavilhões foram armados nas proximidades do Ginásio Multidisciplinar da Unicamp, em Campinas, e abrigaram estandes de empresas, universidades, instituições de pesquisas, agências de fomento, entidades do governo, forças armadas e outras organizações interessadas em apresentar seu trabalho.


Alfredo Mateus: experiências científicas na internet à disposição dos colégios

No mar de laptops que navegavam pela ExpoT&C estava o de Alfredo Mateus, professor do Colégio Técnico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do projeto Ponto Ciência. No próprio estande, Mateus cadastrava novos participantes para a iniciativa, na qual professores e alunos compartilham na internet experimentos de química, física e biologia que podem ser observados e reproduzidos por outras pessoas. Os participantes se cadastram, fotografam ou filmam sua experiência – facilidade proporcionada pelas câmeras digitais – e as publicam no site www.pontociencia.org.br. Para que a página não fique muito pesada, os vídeos são carregados no Youtube. O site do projeto oferece o link para o usuário.

O Ponto Ciência, que a UFMG realiza com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério da Ciência e Tecnologia, quer ajudar a corrigir uma das distorções das aulas do ensino fundamental e médio na área de ciências. “Muitos professores não fazem experiências por achar que precisam ter um laboratório equipado. Fica tudo só no quadro, e ao aluno só é passado o conceito da fórmula, não do fenômeno”, explica Mateus. Porém, salienta, os experimentos podem ser feitos com materiais simples, como garrafas pet.

No próprio site, o participante preenche um formulário com as características da experiência – por exemplo, se o material necessário pode ser encontrado em casa ou precisa ser comprado. Isso permite que os professores ou alunos que procuram as informações selecionem os experimentos que querem realizar a partir da facilidade de obter o material e das características da escola. A página do Ponto Ciência funciona também como um fórum de discussão para professores e alunos, diz Mateus, que fez graduação e mestrado no Instituto de Química da USP.


Mellina e Taiana, da Federal do Espírito Santo: “Queremos levar idéias novas para nosso estado”

Oportunidades – Mellina Zanon Breda, de 21 anos, e Taiana Brito Nascimento, de 19, estudantes do curso de Engenharia Ambiental da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), aproveitavam cada momento da reunião e não deixavam de reconhecer o privilégio dos colegas paulistas, que têm à disposição em centros como São Paulo e Campinas um cardápio variado de congressos e seminários científicos para participar. “Vindo de um estado relativamente pequeno, é uma oportunidade fantástica estar num evento que reúne professores e estudantes que fazem pesquisa no Brasil todo”, diz Taiana. “Queremos levar estudos e idéias novas para lá”, completa Mellina. A universidade capixaba cedeu um ônibus e uma bolsa-auxílio para os 29 alunos que foram à reunião.

Os privilégios, entretanto, não são exclusivos dos paulistas, reconhecem. Ambas são alunas, na Ufes, do professor Ennio Candotti, por quatro mandatos presidente da SBPC, e de quem se confessam admiradoras pela competência, conhecimento e disposição de acompanhar os estudantes. Uma das iniciativas do professor é a de realizar, fora dos horários de aula, encontros semanais para discutir as mudanças climáticas. Os temas da 60ª reunião anual também têm tudo a ver com a área que Mellina e Taiana escolheram, e por isso elas trataram de circular bastante – mesmo sem credencial de jornalistas, assistiram até a uma entrevista coletiva na sala de imprensa.

No momento, as alunas desenvolvem trabalhos na área de modelagem de populações, inicialmente microbianas e, mais tarde, com aranhas. A idéia é descobrir como esses grupos se comportam ao longo do tempo e traduzir esses fenômenos em equações. A modelagem pode ser usada em várias tarefas, desde a medição do impacto das mudanças climáticas até a avaliação dos parâmetros de produção de uma indústria. As estudantes pensam em sair dos cinco anos de curso bem preparadas para fazer pesquisa e voltar ao meio acadêmico para pós-graduação, depois de conhecer melhor as necessidades do mercado de trabalho. “O aluno que corre atrás tem oportunidade”, acredita Taiana.

 

Jovens cientistas atentos ao câncer e aos idosos

A reunião da SBPC recebeu 758 estudos para a Jornada Nacional de Iniciação Científica e quase 2.200 trabalhos de pesquisa que foram expostos em forma de pôsteres na quadra do Ginásio Multidisciplinar da Unicamp. Os participantes obedeciam a um “rodízio” para a afixação de quase 600 pôsteres por dia. Na manhã do dia 15, Sirlene Miranda, de 27 anos, do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, na cidade de Arcos, tratava de expor o seu. Ainda estava algo cansada pela viagem – ela praticamente emendou a festa de formatura com o embarque para Campinas numa van na qual se espremeram os alunos e suas bagagens –, mas profundamente animada pela oportunidade de participar da reunião anual.


Fabiana e Sirlene, da PUC de Minas Gerais: a serviço do bem-estar social

Em seu trabalho, intitulado “Espiritualidade, depressão e qualidade de vida durante o enfrentamento do câncer”, orientado pela professora Maria dos Anjos Lara de Lanna, Sirlene acompanhou 15 pacientes de diversos tipos de câncer, com idade entre 22 e 70 anos, ligados a uma casa de apoio de Arcos. “Quanto maior o bem-estar espiritual e religioso, assim como o existencial, maior a qualidade de vida do paciente, principalmente no que se refere ao domínio psicológico”, relata. “Os pacientes mais adoecidos tinham um índice de depressão maior e também se apegavam à espiritualidade para dar um sentido a sua própria vida. De um modo geral, todos buscavam se engajar mais em um meio religioso e buscavam desenvolver uma espiritualidade até para entender e dar um significado maior ao fato de estarem com câncer.”

A interpretação religiosa teve variações. Para alguns, a doença era uma espécie de “punição” divina por algum ato cometido pela própria pessoa ou por gerações anteriores. Para outros, a experiência era ao mesmo tempo uma provação da fé e uma oportunidade de capacitação. “Quem tende a entender de forma punitiva de modo geral teve uma vida marcada por muitas perdas e sofrimento e aprendeu a entender a vida como se fosse sempre a vítima. Quem disse que estava sendo provado nas dificuldades em geral adquiriu algumas estratégias de enfrentamento e passou a dar outro sentido a esses problemas, numa direção de amadurecimento”, explica Sirlene.

Sirlene constatou ainda que, mesmo com a existência de grupos religiosos que oferecem suporte espiritual, cerca de 60% dos participantes da pesquisa não tiveram apoio psicossocial de uma rede na qual se incluem família, amigos ou religiosos. A maioria relatou que as pessoas próximas se afastaram. “Isso complica ainda mais o estado emocional do paciente, porque ele percebe que as pessoas se afastam, e fica se perguntando: por que choram quando me vêem? O que tenho de tão grave?”, conta Sirlene, que agora vai tentar o mestrado na USP.

Afeto – Fabiana Fernandes, de 23 anos, também do curso de Psicologia da PUC Minas em Arcos, expunha o pôster de seu trabalho, “Adote um idoso: uma proposta de intervenções breves fundamentadas nos princípios da escuta ativa e da empatia”, feito em conjunto com o aluno Jair Aurélio Borges, a orientadora Adriana Guimarães Rodrigues e o co-orientador Ailton Amélio da Silva, professor do Instituto de Psicologia da USP.

Participaram da pesquisa 30 idosos de asilos de Arcos e cidades vizinhas e 30 famílias da mesma região, que foram convidadas a estabelecer e manter vínculos afetivos com os idosos. As intervenções psicoterapêuticas breves se destinavam a ajudar na formação desses vínculos. Os idosos participantes, com média de idade de 72 anos, não podiam ter família biológica presente e nem receber visitas freqüentemente. “Nesses locais, ser velho é sinônimo de abandono e solidão”, aponta o trabalho. As adoções afetivas se concretizaram em 27 casos – as demais foram interrompidas por diferentes razões. Dos adotados, 15 homens e 12 mulheres, 74% são analfabetos. Os demais têm apenas o ensino fundamental incompleto.

As adoções afetivas incluem a realização de ao menos uma visita semanal pela família adotante. Algumas, porém, alegaram ter condições de somente fazer visitas quinzenalmente. Também foi difícil, mesmo com a divulgação do projeto, cadastrar o número de famílias necessárias. “Percebeu-se, assim, a falta de sensibilidade da maioria das pessoas quanto à responsabilidade social perante os idosos asilados”, aponta o trabalho. Quando os vínculos se firmavam, entretanto, ocorreu “uma rede de cuidados mútuos”, constatou a pesquisa. Houve um significativo aumento na capacidade dos idosos de expressar afetos, além de uma diminuição também significativa de suas queixas em relação a doenças, ao ambiente dos asilos, à convivência com outros idosos e à perspectiva de vida.

 

História e futuro em debate

Nas dezenas de mesas-redondas, simpósios, conferências, minicursos e debates da reunião anual da SBPC, um dos temas marcantes foi a celebração dos 60 anos da entidade. Nomes marcantes da sua história, como Crodowaldo Pavan, Ennio Candotti, Sérgio Ferreira e Aziz Ab’Sáber deram depoimentos emocionados e recordaram momentos decisivos. Durante a ditadura militar, por exemplo, a SBPC foi um dos poucos fóruns em que se podia criticar o regime e reclamar pela restauração da democracia.


Decca, Helena e Netto: inclusão social que deu certo na universidade

A contribuição dos cientistas de origem japonesa, no marco dos cem anos da imigração nipônica no Brasil, foi celebrada numa sessão especial coordenada por Adolpho José Melfi, ex-reitor da USP, e que contou com a participação de vários professores da Universidade. Maria Aparecida Yasuda, da Faculdade de Medicina, por exemplo, lembrou que o esforço para trazer médicos do Japão para tratar a colônia no Brasil se deu já nos primeiros anos após a chegada dos imigrantes. A razão é que eles começaram a sofrer de males como leishmaniose, tuberculose e malária, fruto das condições precárias de sua condição inicial de vida no país.

Inclusão – Além dos temas históricos, a SBPC ocupou-se dos debates sobre questões que mobilizam o presente e o futuro da academia. Um deles, “Experiências concretas de ação afirmativa”, reuniu representantes da Unicamp e das universidades federais de São Paulo (Unifesp) e do Rio Grande do Sul (UFRGS) para avaliar programas já em andamento. Helena Bonciani Nader, que era pró-reitora da Unifesp quando da implantação do projeto de ação afirmativa na instituição, disse que inicialmente não concordava com a inclusão do critério racial para as cotas destinadas a alunos oriundos do ensino público. “Fui convencida do contrário pelos dados”, afirmou.

O programa da Unifesp está no quinto ano e é considerado um sucesso pela professora. O envolvimento de docentes, servidores e alunos com a proposta é um dos pontos positivos. “As diferenças de desempenho acadêmico no curso de Medicina são pequenas nos dois primeiros anos e desaparecem no terceiro e quarto anos”, relatou. “Além disso, os alunos que entraram pelas cotas foram catalisadores de uma integração entre estudantes que nunca tínhamos visto.”

Para o professor Carlos Alexandre Netto, pró-reitor de Graduação da UFRGS, as políticas de ação afirmativa promovem um resgate da cidadania, mesmo que muitos ainda não concordem com elas. “Não há consenso na sociedade de que as ações afirmativas sejam necessárias, e a universidade reflete essa postura, porque há campos conservadores nela também”, diz. Para Netto, a democracia ainda deve ser construída diariamente. “Prefiro encarar essa situação como um processo histórico em seu começo.”

Edgar Salvadori De Decca, pró-reitor de Graduação da Unicamp, considera que as políticas públicas no Brasil pela primeira vez estão enxergando as favelas e os bairros da periferia. “A população negra sempre foi deixada à margem da sociedade. É só olhar a configuração geográfica de nossas cidades”, diz.

Historiador, o professor acredita que “a inclusão social da população negra nas universidades vai trazer impacto na nossa cultura e vai ajudar a contar a nossa história de maneira diferente”. No debate, um estudante da Universidade Federal da Bahia completou: “Os jovens negros querem educação, não querem só descer do morro e pegar em armas”.

 
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