Espera de até três anos para conseguir passar por uma cirurgia, fraudes no sistema, crescente privatização dos serviços, fechamento de unidades locais, ônibus fretados que levam dezenas de pacientes para ser tratados em outro lugar: o cenário poderia descrever a saúde pública de um país periférico como o Brasil, mas na verdade se refere aos

dois modelos mais avançados da Europa – o francês e o inglês. “Ambos estão empacados em muitas contradições”, diz Lia Cavalcanti. Consultora da Comissão Européia em programas de educação, prevenção e redução de danos, Lia dirige desde 1987 a Associação Espoir Goutte d’Or (EGO), com sede em Paris. A ONG atua com 40 profissionais em três unidades, entre elas um centro de tratamento dirigido a usuários de crack e politoxicômanos em situação de grande exclusão social.


Psicóloga e socióloga, Lia deixou o Brasil em 1984, depois de sofrer ameaças de morte pelo seu envolvimento na organização do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. No dia 30 de julho, Lia Cavalcanti falou por mais de três horas para estudantes e professores no Seminário Internacional sobre Políticas Públicas na França e União Européia: As Drogas e a Saúde Pública – Prevenção de Risco e Tratamento, na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.

Precariedade – Na França, cada cidadão trabalhador tem seu número de seguridade social, que é o elemento definidor de sua cidadania. “Não é o número de contribuinte, de pagador de impostos que determina a cidadania, como no Brasil: é a inscrição no sistema de saúde”, diz Lia. Nos campos em que não é o operador, como no caso das drogas, o estado contrata ONGs. É uma rede de saúde extremamente complexa, na qual a medicina pública é totalmente gratuita e o estado reembolsa de 75% a 100%, caso a pessoa decida fazer consultas privadas. “Isso gera aberrações. O sistema gera a maior dívida pública da França e um déficit incomensurável”, afirma a socióloga. Entre as razões para isso estão o envelhecimento da população – a expectativa de vida na França é de 82 anos – e a queda no número de número de trabalhadores.

É aí que está o embate entre a utopia humanista e o realismo neoliberal, define Lia Cavalcanti. Em jogo, idéias como a crescente adoção da previdência privada para complementar a saúde pública. A socióloga deu um exemplo: consultou-se com o médico que operou o jogador Ronaldo, que faz cirurgias também pela rede pública – mas cobra um “extra”. “O desconto da seguridade social é altíssimo, mas o sistema cada vez se privatiza mais”, diz Lia. Outra realidade é que muitos pequenos hospitais e serviços como laboratórios de análises clínicas têm sido fechados, substituídos pela contratação de serviços privados. Com isso, os recursos ficam cada vez mais concentrados nas cidades médias e grandes, obrigando as populações rurais a fazer grandes deslocamentos. Na Inglaterra, pacientes estão sendo levados para outros países da União Européia (UE). A fila para algumas cirurgias pode chegar a três anos.

Crédito foto: Cecília Bastos
Lia Cavalcanti, em palestra na USP: problemas no sistema de saúde europeu

A redução dos serviços é uma tendência européia que se verifica também nas áreas da Justiça e da educação, com o fechamento de tribunais e escolas em cidades menores, diz Lia. Conseqüentemente, agrava-se o desemprego, que pode atingir diretamente a brasileira: muitas ONGs que recebem recursos públicos terão que se fundir para unificar orçamentos e reduzir gastos. De cinco ou seis diretores, apenas um ficará empregado.

Todas as questões do emprego têm repercussão na saúde, porque o seu financiamento vem do trabalho. Um exemplo é que, em 2007, dos 6.320 usuários que passaram pela EGO, 92% eram desempregados e 80% deles nunca haviam conseguido trabalho. Uma das características desse novo mundo é a instalação da “era da precariedade”. Nele, os contratos de trabalho com duração indeterminada se reduzem cada vez mais, enquanto crescem as formas temporárias e precárias. Na França, por exemplo, jovens diplomados com até 30 anos podem ser contratados sem encargos sociais para as empresas. Quando atingem essa idade, são demitidos e substituídos.

Cortes – Os programas de redução de dano têm sido outro alvo de corte de recursos em vários países. A redução de danos é uma estratégia de saúde pública que busca controlar possíveis conseqüências do consumo de psicoativos sem necessariamente interrompê-lo e buscando inclusão social e cidadania para os usuários. Uma das grandes preocupações que originaram os programas era evitar a disseminação do vírus HIV pelo uso compartilhado de seringas. Em muitos países, entretanto, vários segmentos da população vêm se colocando contra iniciativas desse tipo.

De acordo com Lia, essa é uma manifestação da chamada “síndrome Nimby” – sigla em inglês para “Not in my backyard”, algo como “Não no meu quintal” –, a qual muitos políticos complementam com a “síndrome Nimey” – “Not in my electoral year”, ou “Não no meu ano eleitoral”. “Estão todos de acordo em dar atendimento, são todos politicamente corretos, mas desde que seja longe. Quando a Nimby se encontra com a Nimey, tudo é fechado”, diz Lia.

A figura do usuário menor de idade abandonado nas ruas é praticamente desconhecida na UE, de acordo com Lia. Na França, as crianças são acolhidas por entidades do estado. O sistema, porém, demonstra ineficiência, porque 70% dos jovens que mais tarde são presos por questões relacionadas às drogas têm passagem por essas instituições. O problema existe em grande escala em países do Leste Europeu. A situação é dramática na Rússia, exemplifica a socióloga, onde há populações inteiras de crianças e jovens vivendo nos túneis do Metrô.

 

Saudade dos tempos da heroína

Há cerca de 20 anos, Lia Cavalcanti ouviu a profecia do antropólogo americano Philippe Bourgois, que nos anos 90 estudou o tráfico de crack em Nova York: “Um dia você ainda vai sentir saudade dos bons e velhos tempos da heroína”. A pedra chegou com força à periferia francesa em 1996 e teve efeitos devastadores. Tanto que Lia reconhece: “Eu sou uma das vítimas do crack”.

Os laços sociais e os códigos de ética que se mantinham mesmo entre usuários de heroína foram varridos pela nova droga. Entre as razões de sua sedução está o fato de que o derivado da folha de coca já atua diretamente no sistema nervoso central cerca de dez segundos depois da inalação. “O crack é a droga do aqui e agora por excelência. Ele destrói as relações comunitárias e sociais e gera a disseminação da violência”, explica Lia. Quem faz uso das pedras e de outras drogas ao mesmo tempo vira “uma granada sem pino”, define. Para ela, a droga “é a substância funcional dos nossos tempos”, regidos pelo imediatismo e pelo individualismo.

Tratar de um usuário da pedra é uma jornada difícil. Como se trata de “um cidadão presentificado, um ser do momento”, é preciso, diz Lia, “reintroduzir a história onde a história não existe mais”. A imagem de jornada, de construção de um percurso de tratamento, não é gratuita, mas o passo a passo é mais complexo do que parece. Lia relatou o caso de um líder do tráfico, com mais de 30 anos de vida na rua e de uso de várias substâncias – incluindo crack –, que num dado momento começou a viver num quarto de hotel pago pela ONG. Para ele, cidadania passou a ser possuir a chave do quarto e ter um lugar para onde voltar.

Certo dia, porém, a gerente do hotel entrou no quarto para uma limpeza e encontrou um cachimbo utilizado para fumar a pedra. Não teve dúvidas: empacotou as coisas do hóspede e colocou tudo do lado de fora. O homem então disse a Lia: “É grave o que você está fazendo, me dando a ilusão de cidadania, porque isso não é possível e não existe para mim”. A socióloga prometeu retomar o percurso e, entre outras coisas, deu início a um processo contra o hotel. “O crack me deu uma lição de humildade. Deixei de me achar invulnerável”, avalia.

Uma das conquistas do trabalho foi a formação, há oito anos, de um grupo de teatro dos usuários, do qual participavam prostitutas e travestis. A trupe montou peças em teatros comerciais para o público em geral. Numa delas, adaptou A miséria do mundo, texto de Pierre Bourdieu, mesclando cenas da vida e do cotidiano dos integrantes. Em 2008, porém, não há grupo de teatro. “Nosso público sabia ler e escrever. Mas, neste ano, são todos iletrados e analfabetos”, diz Lia. É um retrato de uma soma de exclusões: o usuário de crack é também morador de rua, portador de hepatite e/ou do vírus HIV etc. etc. Os sintomas da exclusão estão também na vizinhança. Quando a turma do crack chegou e começou a deixar visíveis os sinais de sua presença, praticamente acabaram as doações de roupas, livros e alimentos que chegavam com freqüência.

O percurso, é claro, inclui também vitórias. As maiores são conquistadas quando os usuários reconstroem sua história individual e coletiva. São estimulados, por exemplo, a ir sozinhos a agências de emprego procurar trabalho ou a morar em albergues ou quartos, sem permanecer indefinidamente em clínicas. “A reinserção social é o vetor que levanta a possibilidade de abstinência, não o contrário”, diz a socióloga brasileira. “Quanto mais conseguimos normalizar os processos, mais aumentam as possibilidades de reinserção e abstinência.”

 
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