São imagens que revelam um sonho. Pierre Verger tinha 32 anos e estava estreando a sua Rolleiflex. Entre as cerejeiras em flor, a magnitude dos templos budistas, o cotidiano de homens, mulheres e crianças pelas ruas e praças, paisagens silenciosas, o francês que há dois anos tinha decidido sair pelo mundo descobre a voz da fotografia.

As imagens de Verger sob a luz, sombra, conversam. Contam histórias. É esse Japão documentado por um fotógrafo iniciante, porém sensível e observador, que está sendo apresentado 74 anos depois. Uma homenagem ao Centenário da Imigração Japonesa através do livro O Japão de Pierre Verger, da Companhia Editora Nacional, lançado no dia 30 de julho no Instituto Tomie Ohtake.

Verger ficou no Japão durante um mês, tirou quase mil fotos, que permaneceram guardadas. Só algumas foram publicadas, basicamente as 11 que foram reproduzidas em Le Japon: entre la tradition et l’avenir, de Pierre Duhamel (Paris, 1953) e as cinco que estão em Cinqüenta anos de fotografia (Salvador, 1982). Hoje, esse tesouro

ressurge. E surpreende pela força das imagens. Verger iniciante é o Verger de sempre na atmosfera do cenário, na percepção do homem, na compreensão das diferentes culturas.

Com 134 fotos, o livro foi organizado pelo museólogo e antropólogo Raul Lody. “As fronteiras do exótico, naturais limites no olhar ocidental, mostram-se nos contrastes do que é diferente, e para Verger é momento e confronto para novas descobertas”, observa Lody. “Novos olhares. Momento de seguir e construir caminhos ao encontro de povos e culturas. Nessa busca do outro, do diferente, vive-se a melhor comunicação que se dá na expressão da arte.”

Cenas do cotidiano – Verger deixa a natureza fluir soberana. Documenta o cotidiano rural e urbano de Tóquio, Kyoto, Nara, Oshima. Com sensibilidade, consegue captar no movimento das ruas, nos olhares das pessoas, um país em crise. Madalena Hashimoto Cordaro, professora de Literatura e Arte Japonesas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, assina um dos textos do livro, apresentando o Japão que o fotógrafo encontrou. “Decorrente, em parte, da derrocada financeira representada pela quebra da bolsa de Nova York, em 1929, a crise foi agravada pelas medidas antiinflacionárias implantadas pelo Partido Minsei, então no governo”, explica. “Os preços caíram, numerosas manufatureiras fecharam, o empobrecimento da população tornou-se severo e muitas comunidades rurais viram-se assoladas pela fome. Esse era o cenário de 1934.”

Verger registra essa crise na confusão do mercado em Tóquio, com cestos de nabo, cogumelo e peixe seco, mal distribuídos pela rua. Interessante observar o fotógrafo diante dos trabalhadores, das pessoas que transitam. Respeitoso, ele parece pedir licença. E todos se ajeitam, param, sorriem diante da câmera. “Ele é fiel à sua viagem interna e humana de buscar na pessoa o retrato mais direto, tradutor de contextos, de humores, unindo o que há de personagem, de papel social à intimidade revelada no momento mágico do ato de fotografar”, lembra Raul Lody.

Os retratos das mulheres são solenes. Verger consegue captar nas suas poses (todas fazem questão de sorrir) uma fingida timidez. “Elas exteriorizavam em seu comportamento frente aos homens um grande alarde de fingida modéstia e submissão”, comentou. Há ainda o encanto pelas crianças. Registra momentos de alegria, espontaneidade e concentração nas brincadeiras. Durante a sua viagem no navio Tatsuta Maru com destino a Yokohama, o fotógrafo vai apresentando a tripulação, os passageiros. Faz uma série de retratos de rapazes em cenas sempre posadas.

Requinte – É na composição que se percebe a preocupação do fotógrafo iniciante. Verger prioriza o equilíbrio. A maioria das fotos tem o foco no centro, mas já naquela época fica atento com a harmonia da imagem. Um exemplo é a foto de um jovem sentado no chão, onde as linhas do tablado do convés se contrapõem com as linhas horizontais do parapeito. A câmera parece estar no chão, fazendo lembrar as tomadas do cineasta Yasujiru Ozu (1903-1963). “Esse Japão que já contava com mais de 60 anos de ocidentalização foi representado de modo precioso por Ozu, em suas cenas de ruas e casas, de escritórios e fábricas, de pequenos comércios e restaurantes”, assinala Madalena Hashimoto, no livro. “Em 1934, ele dirigiu dois filmes, um deles inacabado. O cinema ainda era chamado fotografia em atividade, katsudô shashin.

No tempo da passagem de Verger, vivia-se o período Showa (que significa paz e iluminação). O imperador era Hiroito, seu reinado durou de 1925 a 1989. “Nessa época, aprofundou-se a assimilação de elementos ocidentais que se iniciara na abertura para o exterior promovida durante a era Meiji, de 1868 a 1911.”

Madalena explica que esses anos difíceis mostram seus reflexos no mundo da criação e da recepção das artes e do pensamento. “Os movimentos e as idéias marcadamente nacionalistas entravam em forte tensão com o apelo da harmonia e da incorporação do estrangeiro, o que pode ser concretamente percebido na coexistência do trem com o riquixá, do quimono com o chapéu panamá, da madeira com o tijolo.”

Verger questiona o ser japonês nas fotos. Acompanha as cerimônias budistas, as festas folclóricas, mas se deixa envolver pelas paisagens, o anoitecer entre as montanhas e a arquitetura milenar. Em Kyoto, registra um templo, o centro da foto é uma suástica. Verger destacou propositadamente o símbolo visto em diversas culturas e diferentes tempos. No budismo, significa bons ventos, e é esse conceito que Adolf Hitler explorou, levando para o sentido de uma engrenagem que impulsionasse a revolução industrial na Alemanha.


O Japão de Pierre Verger, de Raul Lody (organizador), Companhia Editora Nacional, 144 páginas, R$ 58,00.

De Kobe, o fotógrafo parte para Toku, na China. Até agosto de 1946, Pierre Verger viaja pelo mundo, conseguindo sobreviver das fotos que publicava nos jornais, agências. Uma aventura que encontra um novo rumo quando aporta em Salvador. O francês – ele nasceu em Paris no dia 4 de novembro de 1902 – renasce com o coração brasileiro. Fica apaixonado pela Bahia, que o faz lembrar a África. Passa a se dividir entre o golfo do Benin e a Baía de Todos os Santos. Mergulha nas pesquisas sobre a história, os costumes e a religião dos povos iorubás, escrevendo diversos livros. Uma dedicação que foi reconhecida em 1953, quando recebeu na África o nome Fatumbi, que significa nascido de novo graças ao Ifá. Verger faleceu em fevereiro de 1996. O seu acervo, com mais de 60 mil negativos, gravações, filmes em película e vídeo, livros, artigos e documentos, está sob a responsabilidade da Fundação Pierre Verger, criada por ele próprio com o apoio de um grupo de amigos e admiradores em 1988.

 
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