Preservar o patrimônio histórico das escolas públicas do estado de São Paulo pode parecer algo muito remoto e difícil. Ainda há aqueles que acreditam não existir mais nada de interessante, que tudo foi perdido com o tempo, mas não é bem isso que um grupo de pesquisadores da Faculdade de Educação da USP vem constatando.

Crédito foto: Francisco Emolo

Dotados de muita perseverança e vocação para a pesquisa, o grupo – coordenado pela professora Maria Cecília Cortez Christiano de Souza e composto pela arquivista e vice-coordenadora Iomar Zaia e por sete alunos de graduação – está percorrendo o estado de São Paulo para mapear o patrimônio histórico das 215 escolas públicas mais antigas. “Estamos realizando um diagnóstico da situação dos acervos bibliográfico, documental, arquitetônico e museólogo das escolas, localizadas tanto na capital como no interior paulista”, ressalta Iomar.

Com início em 2007, até o momento já foram visitadas 65 escolas, que proporcionaram aproximadamente 5 mil imagens do interior dos edifícios escolares, das fachadas e da documentação existente, de diferentes formatos e suportes. A pesquisa, que vai até 2009, quer entender o que o tempo faz

mudar na vida de uma escola pública e com isso cooperar na criação de políticas de guarda e preservação do patrimônio documental paulista.

O projeto nasceu da soma de experiências acumuladas por outros projetos realizados pelo Centro de Memória da Educação (CME) da Faculdade de Educação e, principalmente, da necessidade de criar uma visão geral e real da situação de uma pequena parcela do total de 5.502 escolas do estado. Iomar conta que o objetivo é tornar a comunidade consciente da importância da preservação e guarda dos documentos existentes em sua instituição de ensino, fazendo-a compreender sua importância para a memória da educação em São Paulo.

História em quadrinhos – Como despertar o interesse pela preservação do patrimônio? Foi pensando numa forma lúdica de abordagem que se criou um kit, composto de um jogo de tabuleiro – intitulado Arquivo Perdido –, uma revista de história em quadrinhos, Em busca da memória escolar, e o manual O acervo escolar: manual de organização e cuidados básicos, escrito por Iomar Zaia, em 2004, a partir da sua dissertação de mestrado. O kit faz parte da visita do grupo de pesquisadores de campo.

A autora explica que o jogo educativo foi pensado para ser um instrumento complementar a uma aula que explore a temática de preservação da memória, sobretudo escolar. “Também pode ser adotado para uma discussão com alunos de graduação ou professores, explorando as preocupações relacionadas ao conceito de documento histórico.”

Crédito foto: Francisco Emolo
A arquivista Iomar e o precioso acervo do Centro de Memória da Educação da Faculdade de Educação da USP: objetivo da pesquisa é conscientizar as escolas sobre a importância de preservar da documentação das instituições de ensino

A intenção do jogo é estimular nos participantes a busca por documentos espalhados e perdidos nos espaços escolares. Os jogadores escolhem um dos seis personagens: a professora, o faxineiro, o ratinho, a inspetora, a secretária e o diretor. Iomar explica que nenhum deles tem nome próprio porque o importante é trabalhar com as funções existentes numa escola, para que todos participem e colaborem na organização do patrimônio escolar. O cenário do tabuleiro é composto de várias fotos reais dos ambientes da Escola Técnica Estadual João Belarmino, em Amparo (SP), fundada em 1911. “Trata-se da primeira escola profissional mista do interior do estado”, conta Iomar.

Os seis personagens devem percorrer o tabuleiro, passando por todas as salas (ciências, geografia, história, biblioteca, diretoria, sala dos professores, secretaria, cantina, banheiros, porão e vão da escada) – ambientes-padrão nas escolas –, respondendo às questões e escolhendo os tipos de documentos que vão compor o arquivo perdido da sua escola.

São 28 cartas com imagens dos documentos que normalmente formam um arquivo perdido na escola, feitas a partir de peças museológicas pertencentes ao arquivo João Penteado e recolhidas pelo CME em 2005; peças do antigo Serviço de Recursos Audiovisuais do Centro Regional de Pesquisas Educacionais; documentos do Centro de Memória da Escola de Aplicação da USP; e fotografias reproduzidas no álbum das escolas técnicas mais antigas do estado. Há ainda 80 cartas com questões sobre ciência da informação e literatura, relacionadas à temática de arquivos e cartas de sorte e azar, dez cartas em branco para que as escolas possam formular suas questões, seis cadernos de campo e um envelope para as cartas de tipos documentais. Iomar explica que o objetivo das cartas de perguntas é proporcionar ao jogador o contato com termos técnicos da área de arquivos.

Crédito foto: Francisco Emolo
O jogo Arquivo Perdido e histórias em quadrinhos com divertidos personagens contribuem para despertar o interesse pelo patrimônio cultural: antigos valores recuperados

Teatro – Iomar lembra que, apesar de parecerem complexos e enfadonhos, sua aplicação pode ser muito útil no dia-a-dia das escolas. O jogo começa com cada participante escolhendo seu personagem, que deve ser colocado na casa onde consta sua respectiva figura. Com os dados, dá-se início ao jogo, que só termina quando um jogador entra em todas as salas e recolhe 11 tipos documentais.

A pesquisadora conta que uma professora da 6a série da Escola Estadual Coronel João Pedro Manoel de Godoy Moreira, em Monte Mor, montou com seus alunos uma peça de teatro após lerem a revista de histórias em quadrinhos e foram apresentá-la em várias salas de aula, o que acabou motivando outros professores e alunos a ler a revista e pensar em outras alternativas de trabalho.

Um dos levantamentos importantes da pesquisa são os depoimentos de professores e funcionários aposentados, como também de ex-alunos das escolas antigas. Segundo Iomar, essas pessoas estão hoje entre 70 e 90 anos e normalmente permaneceram na escola por 30 anos, ao contrário do que ocorre hoje, quando há grande mobilidade na carreira.

É o caso da ex-professora de ciências Isaura Yuriko Shibayama, moradora de Presidente Epitácio há 50 anos. Quando ela passou no concurso para professora, a escola era rural e tinha sido fundada em 1945. “No início era possível trabalhar a parte prática, mas depois, com o aumento excessivo de alunos na sala de aula, as atividades foram se deteriorando”, conta.

 

Um olhar sobre os templos da civilização

Nos séculos 19 e 20, os republicanos, conta a arquivista Iomar Zaia, achavam que a educação seria a solução para o país. Por isso, construíam escolas enormes, consideradas pela estudiosa Fátima de Souza como “templos da civilização”.

Um desses templos mais antigos se encontra em Itapetininga. Mais conhecido como Complexo Escolar, fundado em 1894, compõe-se de várias escolas na mesma área, localizadas no centro da cidade. Um ano depois, começou suas atividades com o nome de Escola Modelo de Itapetininga. Atualmente chama-se Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Peixoto Gomide. “A única coisa que mudou foi ter se tornado escola de ensino médio, e, com o restauro, você pode observar toda a sua beleza nos pisos e portas originais e também no mobiliário antigo”, conta Iomar.

Em Mirandópolis, é possível encontrar a biblioteca mais organizada. Fica na Escola Estadual Dona Noêmia Dias Perotti. Segundo Iomar, a biblioteca conta com uma bibliotecária responsável, um espaço diferenciado e sistema de empréstimo. Além disso, sempre faz aquisição de novos livros.

Na capital, encontra-se a escola normal mais antiga, fundada em 1912, situada no bairro paulistano do Brás. O prédio foi construído em 1896 e tombado em 2002. Hoje chamada Escola Estadual Padre Anchieta, conta com cerca de 5 mil alunos, funcionando nos três períodos, sendo a maioria dos estudantes imigrantes da Bolívia, Paraguai e Peru. Há alguns anos, as aulas passaram a ser dadas num anexo e o prédio ficou destinado às atividades da Oficina Cultural Amácio Mazzaropi, que abriga cursos de violão, arte e restauro de peças escolares. “É nesse prédio que estamos criando o Centro de Memória da Escola”, explica Iomar.

Também há escolas que foram instaladas nos antigos casarões dos Barões de Café, como a de Bananal, no Vale do Paraíba. Quando construída, em 1850, chamava-se Solar Aguiar Valim. Em 1895, tornou-se o Grupo Escolar Coronel Nogueira Cobre. Atualmente é uma cooperativa de artesãos, com consentimento da Secretaria de Turismo do Município. Iomar comenta que foram encontradas as portas com suas pinturas, lousas e luminárias originais, encostados num canto da casa. O que permanece intacto são as escadas de madeira que compõem o local. Também há uma parte da documentação.

 

Antes da chegada do caderno

Visitar o Centro de Memória da Educação (CME) da Faculdade de Educação é reviver os tempos em que a escola se constituía de carteiras escolares de pés de ferro fundidos, em fins do século 19 e início do 20. Ele conta com vários mobiliários antigos, entre eles um pequeno quadro de adorno, que podia ser escrito com grafite, utilizado como lousa pelos alunos antes do advento dos cadernos. Iomar lembra que os alunos usavam cuspe na manga da camisa para apagar o quadro e a falta de higiene fez com que os cadernos de papel fossem adotados.

O centro possui também canetas, penas, tinteiros, coleções de lápis, estojos de metal, mapas, palmatória, fotografias antigas, globo terrestre, microscópio, um quadro negro de cavalete da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP, e bótons da Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar (Omep).

Além da memória do mobiliário, o CME promove duas linhas de trabalho. Uma leva até as escolas públicas um trabalho de intervenção, desenvolvendo junto a professores e alunos um centro de memória da escola. O outro trata da divulgação interna na USP, para que alunos de licenciatura e pedagogia realizem estágios em seus projetos, o que gera várias pesquisas de iniciação científica. “Atualmente o CEM conta com 16 alunos de iniciação científica, fora os mestrandos e doutorandos”, relata Iomar Zaia.

O CEM possui uma vasta gama de documentação, como arquivos institucionais e pessoais, como os de Eunice Accioly, Luis Contier, Jay Arruda Toledo Piza e Laerte Ramos de Carvalho, além de coleções da Secretaria Municipal da Educação, entre outras peças. Mais informações podem ser obtidas na página eletrônica do CME (www.cme.fe.usp.br).

 
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