Como sabem os ouvintes interessados na diversidade, há inúmeras formas de fazer música além daquelas consagradas nos cânones ocidentais. Para aprofundar-se nesse vasto campo, estudiosos e pesquisadores desenvolveram a etnomusicologia. Para o professor e etnomusicólogo Tiago de Oliveira Pinto, grosso modo a disciplina “pode ser entendida

como o estudo do ser humano que faz música”. “O que distingue a etnomusicologia da musicologia histórica – mais dedicada a fontes escritas – é dar ênfase ao estudo do fazer musical e à criação que daí surge, independente da origem cultural e do lugar geográfico da respectiva manifestação. Dessa maneira, a etnomusicologia tem uma afinidade muito grande com a antropologia, principalmente também por tratar de manifestações ligadas a redes de relações sociais ou culturais mais amplas e não necessariamente inseridas no universo letrado”, continua Pinto.

Professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, do Instituto de Musicologia da Universidade de Hamburgo, na Alemanha, e coordenador do curso on-line de Etnomusicologia no site www.sonsdobrasil.org, Tiago de Oliveira

Pinto colaborou na seleção dos textos que compõem o dossiê Etnomusicologia, tema da recém-lançada edição número 77 da Revista USP, publicação trimestral da Coordenadoria de Comunicação Social (CCS) da USP. O professor é autor de três textos e também ocupou-se cuidadosamente com as imagens que ilustram o volume.

Tiago Pinto faz um breve histórico da disciplina, instituída há pouco mais de cem anos na Europa. No Brasil, aponta, os primeiros registros de música feitos em pesquisa de campo antropológico foram realizados entre 1907 e 1911 por antropólogos alemães, que gravaram cânticos dos carajás, macuxis, taulipangues e iecuanos, entre outros povos indígenas da Amazônia. Para o professor, buscar entender as manifestações musicais dos diferentes continentes e povos “significa estudá-las, e estudá-las exige um conhecimento mais aprofundado da sociedade em foco, ao mesmo tempo em que conhecer outras civilizações é também emancipar-se das normas ao próprio redor, relativizando-as, para, inclusive, enxergar a própria cultura com outros olhos, e, por conseguinte, ouvi-la com outros ouvidos”.

Mário de Andrade – Uma verdadeira odisséia brasileira nesse campo é recuperada no texto de Flávia Camargo Toni, livre-docente do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. A professora conta a história da Missão de Pesquisas Folclóricas, projeto do Departamento de Cultura idealizado pelo escritor Mário de Andrade, com as colaborações de Oneyda Alvarenga e Dina Lévi-Strauss, nas décadas de 1920 e 30. Nas expedições, especialmente aos estados do Norte e Nordeste do país, os pesquisadores colhiam informações sobre as festas populares e gravavam as músicas e celebrações. As viagens incluíam peripécias e contratempos diversos, dadas as dificuldades de transporte e a precariedade técnica – para os padrões atuais – dos volumosos equipamentos.

“Em linhas gerais, pode-se dizer que a função do grupo era registrar as músicas que homens, mulheres e crianças cantavam para trabalhar, divertir-se e rezar. Para tanto, cada tema deveria ser abordado de tal forma que, através dos discos gravados, fotos tiradas, cenas filmadas e entrevistas feitas com seus cantadores e dançadores, qualquer pessoa pudesse, no futuro, estudá-lo mediante a recomposição de todos os seus elementos”, escreve a professora. Compartilhar a riqueza do acervo na atualidade, continua, “é atender a um dos ideais de Mário de Andrade, que entendia que o projeto do departamento destinava-se ao ‘estudo e uso nacional’. Como seu porta-voz, Luís Saia traduziu outro dos objetivos do projeto ao explicar em entrevista a jornalistas do Recife que a Missão de Pesquisas Folclóricas não era obra de um estado, pois eles queriam ‘mostrar o Brasil aos brasileiros’”.

Carlos Sandroni, professor do Departamento de Música da Universidade Federal de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal da Paraíba, discute a história recente e aspectos do perfil da etnomusicologia no Brasil. Sandroni registra que o primeiro brasileiro a concluir um doutorado na área foi Manuel Veiga, professor da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, que concluiu sua pesquisa na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, nos Estados Unidos, em 1981. O dossiê traz ainda artigos como o de Marc-Antoine Camp, professor da Universidade de Zurique, na Suíça, que aborda os cânticos rituais e discute experiências internacionais de proteção e valorização da música tradicional.

Machado de Assis – No ano do centenário da morte de Machado de Assis, a Revista USP 77 publica também cinco artigos a respeito do escritor. O diplomata Sergio Paulo Rouanet, em “Dom Casmurro alegorista”, defende que o leitor experiente de hoje “percebe a fragilidade” de todas as supostas provas levantadas no clássico machadiano pelo narrador Bentinho para justificar o adultério de Capitu. “Só existe uma intenção, a de Machado de Assis. Ele queria produzir um texto híbrido, libelo e defesa ao mesmo tempo. E só existe um texto, o assinado por Bento Santiago, e não um cruzamento de dois textos. É segundo a intenção autoral de Machado de Assis que Dom Casmurro produz uma obra que contém num só texto o texto e o avesso do texto”, escreve Rouanet.


Revista USP, número 77, dossiê Etnomusicologia, Coordenadoria de Comunicação Social (CCS) da USP (telefone 3091-4403), 240 páginas, RS 20,00.

João Roberto Faria, professor de Literatura Brasileira na FFLCH, fala dos estilos de interpretação teatral nos tempos de Machado – que acompanhou de perto como crítico as peças encenadas no Rio de Janeiro. Ivan Teixeira, professor de Literatura Brasileira na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, faz uma leitura de O alienista no texto “Irônica invenção do mundo”. Há ainda artigos de Pedro Dolabela Chagas, pesquisador do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, e de Lívia Cristina Gomes, mestranda do curso de Letras da FFLCH.

Na seção Textos, Elena Vássina, professora de Letras Russas na FFLCH, assina artigo sobre Tolstói. A seção Livros traz resenhas de José Sebastião Witter, Professor Emérito da FFLCH, sobre A dança dos deuses – Futebol, sociedade e cultura, de Hilário Franco Junior; do escritor e jornalista Gilberto de Mello Kujawski sobre o projeto O Brasil visto do mar sem fim, de João Lara Mesquita; e de André Malta, professor de Língua e Literatura Grega na FFLCH, sobre Agamêmnon de Ésquilo, volume com tradução, introdução e notas de Trajano Vieira.

 
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