Passados quase 30 anos da aprovação da Lei 6.683, a anistia está de volta ao debate nacional. Esta não é a primeira vez que isso acontece, desde sua entrada em vigor, em 1979. Entretanto, dependendo do tratamento que o estado brasileiro der à questão, poderá, finalmente, ser a última. Neste artigo, a análise dessa possibilidade será feita sob o

arcabouço teórico do que muito recentemente se convencionou chamar de “justiça de transição”.

Entendida, nas palavras de Louis Bickford, como o conjunto de approaches que as sociedades contemporâneas têm à disposição, no momento de passagem ou retorno à democracia, para lidar com legados de violência de regimes autoritários ou

totalitários, depois de períodos de conflito ou repressão, a justiça de transição se realiza por intermédio de mecanismos que não são necessariamente jurídicos e buscam incorporar, de forma ampla, as várias dimensões de justiça capazes de contribuir para a reconstrução social. Seu foco está nos direitos e necessidades das vítimas. Tais mecanismos se baseiam na crença da universalidade dos direitos humanos e encontram sustentação na legislação internacional e na legislação humanitária, uma vez que hoje a comunidade internacional já reconhece o fato de o legado de graves e sistemáticas violações de direitos humanos, como o deixado por regimes ditatoriais, gerar obrigações dos estados para com as vítimas e as sociedades.

Essas obrigações são quatro: 1) investigar, processar e punir os violadores de direitos humanos; 2) revelar a verdade para as vítimas, seus familiares e toda a sociedade; 3) oferecer reparação adequada; e 4) afastar os criminosos de órgãos relacionados ao exercício da lei e de outras posições de autoridade. Apesar de poderem ser cumpridos separadamente, tais deveres não são alternativos uns aos outros. E estão diretamente relacionados a quatro direitos das vítimas e da sociedade: 1) o direito à justiça (que pode ser exercido por intermédio de processos jurídicos no próprio país onde ocorreram as violações, no exterior ou em procedimentos híbridos); 2) o direito à verdade (a determinação da completa extensão e natureza dos crimes do passado por intermédio de iniciativas de revelação dos fatos, e que pode incluir comissões nacionais e internacionais); 3) o direito à compensação (via reparações, indenizações e outras maneiras de reabilitação, que compreendem formas não-monetárias, mas simbólicas, de restituição); e 4) o direito a instituições reorganizadas e accountable (realizado por meio de reformas institucionais, com o afastamento de agentes públicos que cometeram crimes durante o período de arbítrio, o que inclui não apenas as forças de segurança, mas também instituições como o Poder Judiciário).

Orientando-se por legislação federal, de maneira extremamente simplificada pode-se dizer que o processo de acerto de contas do estado brasileiro com as vítimas do regime militar, pelos crimes cometidos entre 1964 e 1985, compõe-se, até agora, de três momentos fundamentais: o da aprovação da Lei da Anistia, em 1979; o da sanção da Lei dos Desaparecidos, em 1995; e o da entrada em vigor da lei 10.559, em 2002. Vale lembrar que a anistia de 1979 se relaciona ao uso, por parte do governo militar, de instrumentos jurídicos excepcionais que reduziram ou suprimiram o direito de defesa dos acusados de crimes contra a segurança nacional. Esses acusados foram punidos com a suspensão dos direitos políticos, a perda de mandato político ou sindical, a perda de cargo público, a perda de vaga em escola ou universidade pública, o exílio e a prisão, além da inclusão dos nomes de opositores do regime nos arquivos dos órgãos de repressão. Havia também a pena de morte, estabelecida pelo Ato Institucional de número 14, mas oficialmente ela nunca foi adotada. De modo geral, as mortes do período ocorreram durante sessões de tortura ou foram execuções sumárias, sempre praticadas às escuras.

A luta por anistia começou logo após o golpe militar, em 1964. No começo, a lei era reivindicada por um pequeno grupo de expoentes do meio político e intelectual, mas, com o passar dos anos, a reivindicação se expandiu e ao final envolveu boa parte dos brasileiros. O governo começou a pensar em anistia na gestão Geisel, mas a idéia só ganharia corpo no governo Figueiredo. O projeto de anistia foi uma iniciativa do Executivo, sem praticamente nenhuma troca de idéias com a sociedade. Algumas emendas do Legislativo foram incorporadas ao texto do governo, durante a tramitação no Congresso Nacional. Mas a lei ficou restrita aos limites estabelecidos pelo regime militar e às circunstâncias de sua época. Portanto, naquele primeiro momento, em 1979, pode-se dizer que a anistia significou uma tentativa de restabelecimento das relações entre militares e opositores do regime, que haviam sido cassados, banidos, estavam presos ou exilados. A legislação continha a idéia de apaziguamento, de harmonização de divergências e, ao permitir a superação de um impasse, acabou por adquirir um significado de conciliação pragmática, que contribuiu com a transição para o regime democrático.

A situação só começaria a mudar com a gradual perda de poder dos militares, com o fortalecimento da democracia no Brasil e com a crescente incorporação dos direitos humanos na agenda nacional. No caso da Lei dos Desaparecidos, a mobilização dos interessados na questão, ou seja, os familiares dos mortos e desaparecidos e alguns grupos de defesa dos direitos humanos, os resultados começaram a aparecer em meados dos anos 90. A lei foi uma iniciativa do Executivo, portanto, elaborada pelo governo, que conseguiu que ela fosse aprovada sem emendas no Congresso Nacional.

Assim, naquele que pode ser considerado o segundo momento do processo de acerto de contas, o estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade pelas mais graves violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar e, em alguma medida, procedeu ao resgate moral de vítimas do arbítrio. Ao agir dessa maneira, reforçou o caráter de conciliação da legislação de anistia e avançou na busca por justiça, posteriormente explicitada no pagamento de indenizações, ainda que de valores simbólicos, aos familiares de 353 mortos e desaparecidos. Em alguma medida indicativa do grau de democracia alcançado pelo país, além de significar um compromisso com a norma violada, a lei acabou por reiterar princípios como o da continuidade do estado, segundo o qual novos governantes herdam a responsabilidade legal de seus antecessores desde a época em que determinada violação ocorreu e até que seja declarada ilegal.

Mas a lei não propiciou ao estado cumprir outra de suas obrigações internacionais, que é a de levar à Justiça acusados de crimes contra a humanidade. Também permaneceu de fora dessa segunda etapa do processo de anistia talvez a mais antiga reivindicação de ex-perseguidos políticos e familiares das vítimas: o conhecimento da verdade – parcialmente contemplada no final do ano passado, com a publicação, pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, do livro Direito à memória e à verdade.

O terceiro momento da anistia começou a ser definido em 1996, quando ex-perseguidos políticos de diversas entidades em diferentes estados decidiram unificar seus discursos. Em um trabalho desenvolvido ao longo de cinco anos, em 2001 eles conseguiram que o governo enviasse ao Congresso Nacional uma MP tratando da reparação econômica das pessoas que foram impedidas de exercer suas atividades por causa do regime militar. A lei 10.559 é o resultado exclusivo da atuação de entidades de anistiados e anistiáveis, com o apoio de deputados e senadores, e foi praticamente toda elaborada nos termos desejados pelas vítimas do regime militar.

Com a instalação da Comissão da Anistia, no Ministério da Justiça, e a entrada em vigor da lei, em novembro de 2002, a dimensão da anistia seria ampliada com a possibilidade de o estado proceder à reparação econômica de ex-perseguidos políticos que a anistia não conseguiu reabilitar. A nova lei reafirmou o caráter de conciliação presente na Lei da Anistia, da mesma forma que conferiu novo significado político ao processo, com o estado se mostrando empenhado em compensar os prejuízos causados a milhares de pessoas pelo uso discricionário do poder, reiterando princípios de accountability e, dessa forma, sua convicção na democracia. Até agora, mais de 60 mil processos já foram encaminhados à comissão, em Brasília.

Fica claro, portanto, que durante o processo de acerto de contas houve uma expansão das fronteiras legais e a anistia, de seu caráter inicial de conciliação pragmática, passou para o reconhecimento da responsabilidade do estado em graves violações de direitos humanos e, depois, para a reparação econômica das perdas sofridas por ex-perseguidos políticos. Até aqui, a trajetória percorrida pelo estado evidencia que o investimento principal foi feito em justiça administrativa, voltada à compensação financeira. Não houve empenho em buscar a verdade, punir ou mesmo aprimorar, de maneira consistente, as instituições diretamente envolvidas no legado de horror. Ou seja, das quatro obrigações do estado, privilegiou-se apenas uma: a que determina a oferta de reparações.

Ao longo desse processo de acerto de contas, também é possível constatar que Executivo e Legislativo foram fundamentais para as mudanças no significado político da anistia. Tem sido as duas instituições que, pressionadas pelas vítimas e seus familiares, além de grupos de direitos humanos, têm reconhecido esses direitos e, dessa maneira, reafirmado princípios democráticos. Lamentavelmente, até agora o Judiciário não se mostrou, no dizer de Catalina Smulovitz, “um lugar onde os direitos dos cidadãos poderiam ser realizados”. Tampouco as Forças Armadas reconheceram publicamente suas responsabilidades pelos crimes cometidos ou permitiram o acesso às informações do período.

Sem dúvida alguma, a insistência em manter-se distante do processo de acerto de contas, dificultando, dessa forma, o cumprimento das outras três obrigações do estado, tem impedido o encerramento da discussão em torno da anistia. Além de sinalizar o déficit democrático de nossas instituições, a pouca disposição em atuar em consonância com a promoção e o respeito aos direitos humanos continua sendo a garantia do retorno periódico da anistia ao debate nacional.

Glenda Mezarobba, doutora em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, é autora do livro Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas conseqüências – Um estudo do caso brasileiro (Humanitas/Fapesp, 2006)

 

Convite aos docentes

O Jornal da USP convida os professores da Universidade a escrever artigos para esta seção. Os artigos devem versar sobre a especialidade do articulista e trazer um conteúdo de interesse da sociedade em geral. Os textos devem ter até 8.000 caracteres e ser enviados para o e-mail do jornal (jornausp@usp.br)

 
PROCURAR POR
NESTA EDIÇÃO
O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]