A representação do mito do herói na identidade do atleta é talvez o único elo que mantenha a relação entre os Jogos Olímpicos da Antigüidade e os da era moderna, cuja 29ª edição se desenrola em Pequim, na China, até o dia 24 deste mês. O movimento olímpico da atualidade, no entanto, guarda pouco do que fez o francês Pierre de Fredy, o barão

de Coubertin, retomá-lo em 1896. Cercado por interesses comerciais, políticos e de várias naturezas, o esporte olímpico de nossos dias é uma arena metafórica da guerra e da vida, cuja definição mais adequada, sustenta a professora Katia Rubio, da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da USP, é englobada pelo termo “pós-olimpismo”, que ela cunhou.

Formada em Jornalismo e em Psicologia, Katia fez mestrado na EEFE, doutorado na Faculdade de Educação da USP e pós-doutorado na Universidade Autônoma de

Barcelona. É criadora e coordenadora do Grupo de Estudos Olímpicos (GEO) da EEFE, que reúne pesquisadores interessados nas várias dimensões do esporte. Um dos projetos do GEO, na busca por preservar a memória esportiva brasileira e estimular novos trabalhos, é a criação de um Museu Olímpico na USP (leia o texto abaixo).

A respeito dos projetos que coordena e das muitas questões que o esporte envolve, Katia Rubio deu um rico depoimento ao Jornal da USP, cujos principais trechos seguem abaixo:

Pós-olimpismo – “O movimento olímpico nasce dentro de uma estrutura moral e ética do século 19, na Inglaterra vitoriana, por um francês desapontado com a inconstância do regime político francês, e as regras do movimento olímpico são construídas dentro desse contexto. Elas nascem de uma estrutura esportiva pautada num modelo cavalheiresco muito específico, o inglês, de uma nação que domina política e economicamente o mundo naquele momento.

O século 20 é muito específico, tanto em termos de transformações políticas, sociais e econômicas como pela velocidade com que essas transformações acontecem. Sendo fruto e transformador dessa sociedade, não se pode dizer que o movimento olímpico no ano de 2008 seja o mesmo de 1896, muito embora as suas regras tenham a rigidez de um carvalho.

A partir do final da década de 1980, a abertura para a profissionalização dos atletas gera uma transformação ímpar no movimento olímpico, e é aí que entro com o conceito de pós-olimpismo. Não posso mais entender o que acontece hoje dentro das mesmas bases que produziram os Jogos Olímpicos no final do século 19.

Crédito foto: Francisco Emolo
Kátia Rubio: para ela, esporte hoje é mais um produto do neoliberalismo

O esporte é mais um dos produtos do neoliberalismo. O esporte olímpico era tomado como valor essencialmente pedagógico, muito embora tenha nascido nas mãos das elites, que impediram a classe trabalhadora de participar de suas primeiras transformações. Hoje é um campo de trabalho como qualquer outro e talvez gerador de lucro como poucos, que funciona dentro de um modelo neoliberal.

Quando você vê duas duplas brasileiras de vôlei de praia, uma masculina e uma feminina, que competem pela Geórgia sem nunca ter pisado em solo georgiano, o que é isso? É a reprodução da mais-valia no trabalho do atleta. Hoje você vende a sua mão-de-obra para aquele país que compra e paga bem por isso.”

Origens – “A Inglaterra do século 19 vivia um momento singular dentro do continente europeu. Sendo uma ilha, tinha uma marinha poderosa que a protegia e não precisava gastar recursos e tempo preparando exércitos. No continente, as outras nações estavam preocupadas com a formação de pessoas fortes para defender a pátria.

A Inglaterra tinha um modelo de Revolução Industrial que privilegiava a competitividade, a performance e a distinção. Tinha uma burguesia emergente que queria acessar um sistema político dominado pela aristocracia e usava seus filhos em busca disso, colocando-os nas escolas freqüentadas pela aristocracia. Nelas havia práticas de tempo livre que reproduziam alguns jogos criados nas festas públicas.

Esse modelo de tempo livre começou a preocupar os pedagogos, porque nele os jovens faziam muitas ‘bobagens’ – se a gente quer saber a origem dos hooligans, é só olhar isso: eles bebiam, faziam arruaça pela cidade etc.

Crédito foto: Reprodução
Jovens promessas olímpicas: histórias de superação

Aí um sujeito chamado Thomas Arnold resolveu sistematizar esses jogos. O primeiro deles é o rugby, depois o futebol, que é também outra paixão entre esses jovens. Ao invés de permitir que o tempo livre seja usado de forma ‘irracional’, o tempo é racionalizado, promovendo a prática dessas atividades. Na medida em que elas têm regras, outros colégios também as praticam e eles passam a competir entre si. A regata Oxford–Cambridge, por exemplo, tem quase 200 anos. A partir daí estavam dadas as condições perfeitas para o desenvolvimento do esporte.

O barão de Coubertin sai de uma França que passa por república, reinado e império ao longo do século 19, o que transforma a vida do país num tumulto, olha para esse modelo inglês e diz: ‘É isso o que eu quero para a França’. Motivado também pelas descobertas arqueológicas da Grécia antiga, feitas pelos alemães, ele vê a possibilidade da recriação dos Jogos Olímpicos.”

A figura do herói – “O que mantém ainda o elo que faz a relação entre os jogos da Antigüidade e os jogos da atualidade é a representação do mito do herói na identidade do atleta. Quando você vê aquilo em que se transformou a vida do atleta, não dá para não associar com a condição heróica. A Ana Cláudia Silva, da ginástica, quando terminou de fazer as barras, estava com uma bolha na mão, que estourou durante a prova. Ela saiu com a mão pingando sangue, e tinha ainda outra prova para fazer. O que torna ainda mais heróica essa imagem do atleta? São cenas como esta: ela põe uma bandagem e vai à luta. É o caso de Rogério Sampaio, do judô (ouro em Barcelona, 1992). O irmão era o grande ídolo dele e havia se suicidado. O Rogério compete, entre outras coisas, como uma forma de manter viva a imagem do irmão.

Atendo como psicóloga do esporte duas atletas que foram a Pequim, a Maila Machado e a Lucimar Moura. A Maila teve rompimento total do tendão patelar, a mesma lesão do jogador Ronaldo, fez uma recuperação lenta e difícil, e as oportunidades de obter o índice para Pequim foram se esgotando. Quando ela vai para uma competição e consegue o índice, é tratada como heroína. De fato ela é, porque supera a lesão, supera a cirurgia e o abandono.


Pequim 2008: Olimpíadas são “palco para as dramatizações da sociedade”

Todo mundo some quando o atleta se lesiona. Ele vive na solidão e enfrenta todos os pensamentos negativos de que nunca mais vai voltar a ser o mesmo. Ele volta, enfrenta o público, que o considera morto, e tem que provar para si e para os outros que está vivo e está na disputa. Não existe outra comparação para esse sujeito a não ser o herói.”

Esporte e política – “Entendo os Jogos Olímpicos como um palco para as dramatizações da sociedade. É uma grande bobagem os dirigentes quererem dizer que política e esporte não se misturam. Isso só existe num discurso muito mais mal-intencionado do que ingênuo, porque todo mundo sabe que não é possível deslocar o cidadão da sua história para ele ser só um agente produtor de performance esportiva. O esporte é uma metáfora das rusgas internacionais e o atleta é levado a acreditar que é um agente do nacionalismo, em maior ou menor grau.

Dá para separar? Não. Muitas vezes o atleta sublima o autoritarismo e a história repressora com uma vitória olímpica, de preferência sobre aquele que colonizou e que agrediu, porque o esporte é a metáfora da guerra. Não se vai à luta armada, mas aquela competição torna-se uma forma de luta que pode ser usada de forma maniqueísta para o bem e para o mal. Para o bem, por exemplo, no sentido de fomentar um espírito nacional, como se vê em Cuba, onde se tira de um país miserável uma produção olímpica como eles têm. Mas são produzidas também algumas monstruosidades, em que o sujeito firma um contrato eugenista de superioridade.”

Guerra Fria – “Vi uma cena do pódio do tiro feminino em Pequim em que a chinesa ficou em primeiro, a russa, em segundo e a georgiana, em terceiro. Já haviam eclodido os ataques à Geórgia, e um repórter fez uma pergunta em relação a isso. A russa saiu do pódio, foi abraçar a georgiana e fez questão de tirar fotos com ela, numa tentativa clara de mostrar ao mundo que existem algumas coisas que são resolvidas num âmbito político muito acima de nós. Acho bárbaro uma cena dessas acontecer, no sentido de dizer: vamos tentar fazer uso dessa situação para mostrar que o conflito não é meu e seu. Os conflitos são outros e nós somos usados nesse processo para matar ou morrer. Nesse sentido, vejo ainda o esporte tentando preservar a idéia da trégua olímpica da Antigüidade, que era quando todos os conflitos paravam para que os jogos pudessem acontecer.

Porém, durante a Guerra Fria, os Jogos Olímpicos eram um campo metafórico de guerra. Nos Jogos do México, em 1968, pouco depois da invasão da URSS em Praga, havia num pódio uma ginasta soviética e uma tcheca. A atleta tcheca se negou a cumprimentar a russa. Naquele momento histórico é possível entender essa relação, porque todos viviam com muita intensidade o clima da Guerra Fria. A disputa pelo primeiro lugar era uma forma de mostrar ao mundo que o ‘meu’ sistema era melhor que o ‘seu’. Nesta edição, é claro o uso político que a China faz, com uma dimensão de projeção internacional.

Os boicotes em Moscou, em 1980, e Los Angeles, em 1984, acontecem num momento crucial da Guerra Fria. Um aluno da EEFE defendeu mestrado sobre a participação brasileira nos Jogos de Moscou (1980). O Brasil vivia o auge da ditadura, ‘tudo contra o comunismo’, mas quando observou que os Estados Unidos brigaram com a União Soviética (URSS) e romperam vários laços comerciais, era a hora de tirar proveito disso. Então o Brasil destinou sua produção de grãos que estava encalhada ao mercado soviético e foi aos jogos mesmo com a pressão norte-americana, que conseguiu impedir a participação argentina e chilena. Então esporte não tem nada a ver com política?”

Doping “O doping faz parte da idéia da medalha a qualquer custo, e para isso se injeta, se fura, se engravida. Qualquer ferramenta é utilizada nessa guerra. Hoje já se tem um pouco de noção do que aconteceu, por ejemplo, na antiga Alemanha Oriental. Em algumas situações, com absoluta anuência dos atletas, em outras com absoluto desconhecimento, porque o atleta, na mão do sistema, acaba sendo peça de uma engrenagem: não tem vontade própria e está sujeito a sofrer represálias.

Um professor inglês propôs, em 1996, nos Jogos de Atlanta, que fossem feitas duas edições dos Jogos Olímpicos, que eu traduziria como: uma para os ‘caretas’ e uma para os ‘malucos’. Naquele momento, o doping havia chegado a um ponto em que todo mundo sabia de seu uso, mas havia uma impotência diante da impossibilidade de detectá-lo. Para os ‘malucos’, ele defendia que, se você quer tomar qualquer coisa, tome, porque o objetivo do ser humano é experimentar esse limite. Se quiser se quebrar, que se quebre. A outra edição seria para os ‘bons moços’, que são aqueles que treinam oito horas por dia, sabem que estão competindo contra quem toma e acham a luta desleal. O Gustavo Borges (duas pratas e dois bronzes em 1992, 1996 e 2000) falou para mim, quando ainda competia: ‘Uma coisa que me entristece é que tudo o que eu nado, tudo o que eu treino, não é suficiente para bater um cara que nada metade, que treina metade, mas que toma alguma coisa’.

Os atletas, em algumas modalidades, acompanham passo a passo o desenrolar de uma marca. Quando o sujeito salta dois degraus, acende o sinal. Não tem milagre. As técnicas de treinamento hoje são compartilhadas por todos. A diferença da preparação de um atleta está no detalhe, por isso a preparação psicológica se tornou fundamental. O doping é um desses detalhes, e chegou a um nível de tecnologia inimaginável. Movido pelos interesses comerciais produzidos dentro do neoliberalismo, o atleta é seduzido a fazer uso dele. O marketing por trás dos laboratórios e de quem trabalha com o doping é muito forte, e o resultado é imediato. Se ele não tiver uma equipe muito consistente ao ser redor e se não tiver formação moral, deixa-se seduzir. A garantia que o atleta não tem é justamente a de não ser pego.

Mas sem moralismo: hoje o doping é demonizado como o grande vilão, mas sabemos de dirigentes que são alcoólatras, que são drogados. Então há uma hipocrisia no trato com o doping. É preciso um projeto pedagógico no sentido de refletir sobre as substâncias proibidas.”

Limite – “No atletismo e na natação, há uma condição absoluta que é dada pelo cronômetro ou pela trena. A ginástica é mais perversa, porque a pontuação é subjetiva: é aquilo que o juiz avalia do atleta. Não existe mais a nota 10 na ginástica. O atleta nunca vai alcançar essa perfeição que ele busca. Não sei se isso é justo. Quando a Daiane dos Santos consegue um triplo mortal carpado, ela inova e faz com perfeição, então o 10 é dela.

Utilizar o vídeo minimiza o impacto da injustiça, mas no caso da ginástica não repara, porque você impede ao atleta a condição da perfeição. O que representava na Antigüidade a melhor performance numa prova olímpica? Era uma forma de o atleta se aproximar da imortalidade dos deuses. Já que somos humanos e pereceremos em algum momento, realizar um feito como ganhar uma prova olímpica era tornar-se imortal, porque o nome ficava inscrito na porta do estádio. O atleta, hoje, quando quebra um recorde e ganha medalha, está se inscrevendo para a imortalidade. Quando se tira a condição de uma nota absoluta, tira-se do atleta a possibilidade da transcendência.”

Esporte e educação – “O esporte é uma atividade fundamental para o ser humano porque ensina valores da sociedade para o resto da vida. Você pode aprender o que é focar um objetivo, planejar a sua vida para chegar nesse objetivo, trabalhar coletivamente, saber o que é o respeito pelo colega, saber sobre a situação de liderança.

Quando olho para o esporte desenvolvido de forma pedagógica, entendo que o sujeito leva para a sua vida valores que vão lhe ser caros em várias circunstâncias – na escola, na universidade, no mundo profissional, onde for.”

 

Professor da USP é preparador de judoca medalhista em Pequim

Um dos professores integrantes do Grupo de Estudos Olímpicos (GEO) da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da USP é Emerson Franchini, que, desde setembro de 2006, pouco antes de entrar na USP, cuida da preparação física do judoca Leandro Guilheiro, medalha de bronze em Pequim. Por e-mail, diretamente de Pequim, onde acompanhou Guilheiro na disputa por medalha, Franchini deu o seguinte depoimento ao Jornal da USP.

“O Leandro Guilheiro é um exemplo de superação, dado que apresentou uma série de problemas após Atenas 2004. Apesar da dor e da incerteza quanto a um resultado positivo, ele sempre acreditou que poderia alcançar outro grande resultado. Ele apresenta uma disciplina muito grande nos treinamentos e um talento raro do ponto de vista técnico. Outro aspecto positivo na carreira dele é o suporte familiar que ele recebe, o que faz muita diferença nos momentos difíceis, em que é necessário enfrentar algumas derrotas, o cansaço do treinamento e a possibilidade de lesão. Felizmente, para esta competição ele conseguiu fazer uma boa preparação e implementou sua estratégia de luta durante os confrontos.”

 
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