Funcionária de meio turno na prefeitura de uma cidade vizinha de São Paulo, a professora de Educação Física Roberta (o nome foi trocado a pedido da entrevistada), de 28 anos, prestou concurso para dar aula na rede estadual. Aprovada e designada para uma escola na periferia de um município vizinho, na região leste da Grande São Paulo,

Fotos: divulgação

Roberta descobriu que a quadra de esportes era ocupada quase o dia inteiro por membros de gangues dos arredores. Sem condições de utilizar o espaço, dava aulas teóricas ou promovia atividades que pudessem ser feitas dentro da sala de aula. A experiência durou apenas duas semanas. Roberta desistiu da vaga no estado e prestou concurso para outra prefeitura.

“Eu sei como isso funciona”, diz Antonio Carlos Simões, professor do Departamento de Esporte da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da USP. Em muitas localidades, principalmente nas periferias, é preciso criar um vínculo no qual a escola se

transforma numa espécie de clube, negociando-se a utilização da quadra. “Trocam-se horários para a bandidagem usar no fim de semana e não incomodar as aulas de Educação Física”, diz Simões. Tudo isso levando-se em conta, é claro, que a escola ao menos possua uma quadra. De acordo com a Pesquisa de Esporte 2003 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 58,1% das escolas estaduais do país tinham alguma instalação esportiva – média que caía para 29,1% na região Norte e 31,6% no Nordeste. A situação é muito pior nas escolas municipais: apenas 12% delas, em todo o Brasil, possuíam algum equipamento, de acordo com o IBGE.

Essa realidade é uma das muitas razões para que, mesmo embalado por sonhos de nação olímpica, o Brasil amargue baixo rendimento em competições de alto nível como os Jogos de Pequim. As medalhas obtidas vêm praticamente sempre das mesmas modalidades nas quais são esperadas – vôlei, natação, vôlei de praia, judô e iatismo, além de uma ou outra que pingue do atletismo, no qual o país já teve campeões como Adhemar Ferreira da Silva, João Carlos de Oliveira e Joaquim Cruz. Em outros esportes, triunfos aguardados não se confirmaram, como é o caso da ginástica artística, em que apenas recentemente o Brasil passou a contar com uma equipe estruturada e que disputa regularmente competições internacionais.

Pirâmide invertida – Na parede de sua sala na EEFE, uma foto mostra o então técnico da Seleção Brasileira de Handebol Antonio Carlos Simões recebendo das mãos do ex-presidente cubano Fidel Castro a medalha de prata pelo vice-campeonato nos Jogos Panamericanos de Havana, em 1991. No ano seguinte, o professor viveria a experiência olímpica dos Jogos de Barcelona. É com a autoridade acumulada numa bagagem carregada por muitas outras experiências que Simões afirma: “O problema é de estrutura. Invertemos a estratificação social da formação”. Ou seja, o Brasil quer formar atletas de alto rendimento na escola, que deveria ser a base – e não o ápice – da pirâmide. Como conseqüência, equipes das categorias infantil e juvenil vencem competições contra países europeus em muitas modalidades. “Daí para cima, começa a engrossar”, define.

Crédito foto: Cecília Bastos
Antonio Carlos Simões, professor da USP e ex-técnico da Seleção Brasileira de Handebol, Katia Rubio, coordenadora do Grupo de Estudos Olímpicos da Escola de Educação Física e Esporte (abaixo, à esquerda), e o nadador medalhista em Pequim César Cielo Filho (abaixo, à direita): sem apoio, vitórias brasileiras no esporte se devem mais ao esforço pessoal dos atletas

Os problemas estruturais se espraiam pela falta de uma filosofia de gestão pública para o esporte; ausência de política esportiva federativa institucionalizada; inexistência de programas esportivos educacionais em nível federal para as escolas e assim por diante. “Precisamos fazer uma infra-estrutura para socializar o esporte e transformá-lo num vetor de integração social”, aponta o professor. De seus tempos de técnico de handebol, Simões recorda: “A gente vendia camiseta para poder competir internacionalmente”. Nada muito diferente do que ocorreu em 1932, quando a delegação brasileira teve que se virar para vender pelo caminho as sacas de café no navio cedido pelo governo para o embarque aos Jogos Olímpicos de Los Angeles, porque outra verba não havia. De Barcelona para cá, o que mudou no panorama olímpico? “Nada”, responde Simões.

A interferência política nas federações e confederações é outro mal a ser extirpado do esporte brasileiro, defende o professor. Para ele, não se pode permitir que os presidentes das entidades se eternizem nos cargos por décadas. “As pessoas que mandam são da política, não do esporte”, diz. Todas as entidades deveriam ser centralizadas em Brasília, sob o comando do Ministério do Esporte, cuja responsabilidade seria a de dar unidade de comando e estabelecer as normas a serem seguidas por todas as federações. Um exemplo de distorção citado pelo professor: a Confederação Brasileira de Handebol tem sede em Aracaju (SE), embora os clubes que praticam a modalidade concentrem-se em São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

E as obras? – “Entendo que ainda não existe política esportiva para o país. Temos política de algumas modalidades que já são mais estruturadas, mas o Brasil não tem projeto olímpico”, concorda Katia Rubio, docente do Departamento de Pedagogia do Corpo Humano e coordenadora do Grupo de Estudos Olímpicos (GEO) da EEFE. Entre as razões para isso está a classe dirigente do esporte – a famosa “cartolagem” –, que se mantém numa estrutura aristocrática, reproduzindo cem anos depois o modelo gerado nos primeiros tempos da disseminação das práticas esportivas, no século 19.

“Isso não é uma coisa só do Brasil, mas aqui o esporte está dividido em dois grandes blocos: existe aquilo que compete ao Comitê Olímpico Brasileiro (COB), no que se refere ao alto rendimento, e o que compete ao Ministério do Esporte, responsável pelas políticas públicas. Ora, não existe esporte de alto rendimento sem política pública”, diz a professora. “Diante da incompetência dos dois (COB e Ministério), a competência acaba recaindo sobre as costas dos próprios atletas, que se viram ao longo do ciclo olímpico para sobreviver e chegar ao próximo ciclo.” Para ela, é preciso que o COB seja “fagocitado” pelo Ministério.

Crédito foto: Francisco EmoloKatia Rubio defende que, num primeiro momento, estabelecer políticas públicas significaria criar uma relação próxima do Ministério do Esporte com o da Educação, fortalecendo a Educação Física nos currículos escolares – ao contrário do que ocorre hoje. Para ela, o trabalho de base, de massificação do esporte, não exclui um projeto de grandes proporções como o de sediar uma Olimpíada. “Realizar uma edição dos Jogos é um projeto focal, contextual, que anda numa raia própria que não é de formação. A política de massificação é infinita”, afirma a professora. Os recursos para a eventual realização dos Jogos Olímpicos também deveriam ser captados num fundo específico, e não retirados da área do Esporte – “o Ministério mais pobre da Esplanada”.

Antonio Carlos Simões, por sua vez, não vê vantagens em receber o evento. “Olimpíada no Brasil é um poço sem fundo. Aconteceu no Pan-Americano do Rio, no ano passado. O orçamento era um, os gastos foram muitas vezes maiores. E onde estão as obras de infra-estrutura que foram prometidas? O Metrô, o alargamento das avenidas? Quem está usando essas instalações hoje? Alguma escola? Qual profissional está coordenando o trabalho? Que tipo de trabalho está sendo feito? Nós esquecemos muito facilmente”, diz.

O estádio João Havelange, o Engenhão, erguido para o Pan, é utilizado para os jogos do Botafogo, mas o público tem dificuldades para chegar ao local, porque as facilidades de acesso não foram feitas. Uma das propostas para a realização da Copa do Mundo de 2014 no Brasil prevê a construção de mais três estádios no Rio de Janeiro. “Para quê? Para fazer filantropia para os clubes de futebol do Rio?”, questiona o professor. O tema é tratado num livro lançado pelo GEO (leia texto abaixo).

Convênios – Antonio Carlos Simões lamenta que o Brasil seja eternamente “o país do futuro”. “Já era isso quando eu nasci, e continua sendo”, diz. As perspectivas para o esporte são “sombrias”, define, se não forem realizadas mudanças estruturais profundas. As universidades podem contribuir muito se, associadas a um projeto de governo, ficarem encarregadas da formação de técnicos e dirigentes esportivos, como previa a antiga Lei Zico, de 1993. “Tem muita gente por aí que nunca sentiu o cheiro do sabonete no vestiário para saber o que acontece antes da competição, no intervalo e depois do jogo”, diz. A facilidade das universidades em fazer convênios também deveria ser utilizada para que atletas e treinadores pudessem realizar intercâmbios em núcleos de excelência no exterior, como o Centro Olímpico dos Estados Unidos, no Colorado.

Obter resultados no alto rendimento é conseqüência de investimento de anos, não de meses ou semanas, salienta Katia Rubio. “Esporte é processo. Quando a gente começa cedo, com estrutura bem organizada, é evidente que vamos ter bons resultados.” Para a professora, o esporte se desenvolve quando há bons exemplos. Uma boa iniciativa, cita, é a da Federação Paulista de Atletismo, que busca ex-atletas olímpicos ou que se destacaram em outras competições para construir projetos em que ensinam as crianças a praticar esporte.

 

USP quer ter Museu Olímpico

A USP também tem o seu sonho olímpico. Um dos projetos do Grupo de Estudos Olímpicos (GEO) é a construção de um Museu Olímpico na Escola de Educação Física e Esporte (EEFE). O projeto está pronto e já foi submetido a um edital recente para financiamento do Ministério do Esporte, mas não foi contemplado. A idéia é que o local sirva não apenas para exposições, mas que seja também um centro de produção de conhecimento que proporcione acesso do material a pesquisadores e ao público – nos moldes das instituições existentes em antigas cidades-sede dos Jogos.

O GEO nasceu a partir do entusiasmo de Katia Rubio com as pesquisas para o seu doutorado, defendido em 2001. “Tive oportunidade de estudar no Centro de Estudos Olímpicos de Barcelona, na Espanha, e lá, de fato, se vê o que é uma estrutura não só de educação olímpica como de produção acadêmica sobre os estudos olímpicos”, diz a professora.


Livros produzidos pelo GEO: o esporte olímpico como objeto de pesquisa

O núcleo foi formado em 2002 e contou desde o início com o interesse dos alunos. Atualmente, o GEO reúne cerca de 25 pesquisadores, entre professores e alunos de graduação e pós-graduação, que trabalham sobre temas como os Jogos Olímpicos da Antiguidade e as questões políticas, ideológicas e psicológicas do esporte contemporâneo.

Memória – Entre os frutos do trabalho do GEO está a publicação de livros que recuperam a rica – e pouco conhecida – história esportiva do país, em títulos como Heróis olímpicos brasileiros (Editora Zouk, 2004) e Medalhistas olímpicos brasileiros – Memórias, histórias e imaginário (Editora Casa do Psicólogo, 2006), resultado de um projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “Estamos no segundo projeto de pesquisa, sobre as mulheres olímpicas, e temos dados que o próprio COB não possui, não tem interesse em possuir e não teve qualquer interesse em apoiar, talvez porque não tenha sido idéia deles”, alfineta a professora. “Os atletas se ressentem dessa situação. Eles são lembrados de quatro em quatro anos, quando os Jogos acontecem, e os meios de comunicação vão atrás no sentido de retomar alguma curiosidade, mas não a sua história.”

Katia Rubio revela que há atletas olímpicos que sofrem com doenças físicas e psicológicas, relegados e sem perspectiva, e por isso defende a concessão de aposentadorias especiais. “Uma coisa são aqueles atletas dos anos 80 para cá que se profissionalizaram e até conseguiram fazer uma boa poupança. Mas há as gerações anteriores, que viveram para realizar um sonho, seu e do país, e ninguém vive de sonho”, diz. “É mais do que justo que a sociedade dê conta dessas pessoas.”

Do GEO também saiu, no ano passado, aproveitando a realização do Pan no Rio de Janeiro, o livro Megaeventos esportivos – Legado e responsabilidade social (Editora Casa do Psicólogo). Um dos seus focos é discutir o que as cidades e países que sediam as competições podem fazer para que os enormes investimentos em infra-estrutura e construção de instalações revertam em benefícios permanentes depois do evento.

Essa é também uma preocupação do próprio Comitê Olímpico Internacional (COI). Para diminuir o tamanho das delegações e tentar frear um pouco o gigantismo dos gastos, algumas modalidades estão sendo excluídas dos Jogos. Em Pequim, por exemplo, o softbol e o beisebol participaram pela última vez de uma Olimpíada. Cogita-se que o próprio futebol seja “degolado” antes de Londres 2012, o que selaria definitivamente a falta do título olímpico para a seleção brasileira.

Há pouco material de referência sobre o assunto no mundo inteiro, e por isso o Ministério do Esporte pediu ao grupo da USP que traduza o livro para o inglês. O texto será usado para contar pontos na candidatura do Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos de 2016.

 

Preparação psicológica é fundamental

Atualmente, as técnicas de treinamento são compartilhadas pelos atletas de alto nível em praticamente todo o mundo. Da mesma forma, os índices, as marcas e a evolução dos concorrentes são acompanhados passo a passo. “A diferença da preparação de um atleta está no detalhe”, diz a professora Katia Rubio, da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da USP. “Por isso a preparação psicológica se tornou fundamental.”

“O psicólogo do esporte não deve ser um bombeiro que vai apagar um incêndio quando a equipe está mal no campeonato, como se os processos da mente humana fossem uma coisa rápida e fácil de resolver”, diz a psicóloga Maria Aparecida da Câmara Nery, que fez mestrado na EEFE e integra o Grupo de Estudos e Pesquisa em Psicossociologia do Esporte (Geppse), coordenado pelo professor Antonio Carlos Simões. “A grande questão é querer separar o indivíduo em psicológico e físico, como se fossem duas instâncias diferentes. Não se vê o lado integral. Se você não estiver bem emocionalmente, não vai render bem fisicamente.”

Maria Aparecida considera que o trabalho psicológico deve ser parte da rotina da preparação de um atleta, e não algo do qual se lembre apenas na época de competições importantes. No caso de uma equipe, é preciso avaliar e conhecer não só cada atleta, mas também os integrantes da comissão técnica e outros profissionais. No caso de um competidor individual, o cuidado deve ser ainda maior, porque a pressão cresce muito.

Citando o ginasta Diego Hipólito, que sofreu uma queda na disputa da ginástica em Pequim e perdeu a chance de disputar o pódio, Maria Aparecida diz que a frustração é muito grande e pode até levar ao encerramento precoce de uma carreira. “O atleta precisa ter ao mesmo tempo a determinação de querer vencer e o equilíbrio mental”, diz.

“É preciso ver o esporte como parte de um fenômeno macro e microssocial”, considera a psicóloga. Por exemplo: um atleta pode ter patrocínio e treinar no mesmo clube ao lado de outro que não tem. “Eles vão funcionar da mesma forma? Como fica isso na cabeça do atleta?”, pergunta.

O trabalho de preparação psicológica no esporte brasileiro ainda é incipiente. As federações investem pouco e as iniciativas são isoladas. Alguns nomes acabam se destacando e se tornam expoentes, sendo chamados especialmente por clubes de futebol naqueles momentos de apagar incêndios – ou em palestras motivacionais às vésperas de jogos decisivos. Segundo Maria Aparecida, em 2004 o COB levou um psicólogo para assessorar a delegação brasileira nos Jogos Olímpicos de Atenas. Neste ano, em Pequim, não havia nenhum. Algumas modalidades, isoladamente, contavam com um profissional, como a equipe de vôlei feminino.

Para contar com maior número de profissionais preparados para essa atuação, a pesquisadora do Geppse defende que os cursos de Psicologia poderiam abordar mais a educação física e o esporte, assim como essa área poderia dedicar espaço maior à psicologia. Atualmente, a formação de psicólogos voltados para o esporte está mais concentrada em programas de pós-graduação.

 
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