Nunca foi fácil entrar na selva. A imensidão do território e o difícil acesso às riquezas naturais dissolveram as muitas tentativas de colonização nos séculos passados. Os espanhóis descobriram a foz do rio Amazonas em fevereiro de 1500, dois meses antes de os portugueses desembarcarem em Porto Seguro, mas não conseguiram se fixar na região.

Crédito foto: Circe Bonatelli

Hoje, o desafio da ocupação persiste. Em cidadezinhas mais isoladas da Região Norte, ainda não chegaram a estrutura pública do saneamento básico, vias de transporte ou órgãos da Justiça. Nesses pontos distantes do mapa, o homem precisa batalhar seus próprios meios de ganhar a vida. Como disse o jornalista e escritor Euclides da Cunha nos idos do século 19: “A Amazônia é a última página a ser escrita no Gênesis. É uma guerra de mil anos contra o desconhecido, cujo trunfo só virá ao fim de trabalhos incalculáveis em futuro remotíssimo. Por enquanto, ela é terra moça, terra infante, a terra em ser, a terra que ainda está crescendo”.

Os fortes portugueses – A expedição estava pronta para partir rumo ao desconhecido no dia 17 de outubro de 1637. Uma armada de 47 canoas com 600 soldados portugueses, acompanhados por 1.200 índios com remos, aguardava as ordens do capitão Pedro Teixera, diante do Forte de Gurupá, no encontro das águas do Xingu e do

Base militar em Oiapoque: oportunidade do Exército para uma grande missão

Amazonas. Mulheres e curumins, nos arredores, assistiam curiosos à partida da maior bandeira fluvial paraense-amazônica já organizada até aquele momento. A missão do comandante era bem clara: conquistar a Amazônia para Portugal antes que outros desbravadores europeus o fizessem.

Naquela época, uma manobra política na Europa havia reunido portugueses e espanhóis sob o governo único do rei Felipe IV, da Espanha. Mas essa união circunstancial nunca apaziguou qualquer rivalidade entre os dois irmãos peninsulares. Tanto que o aparecimento do capitão Teixera e sua gente nos Andes desagradou profundamente as autoridades espanholas do Peru. O expedicionário português seguiu à risca as instruções de Jácome Raimundo de Noronha, governador do estado do Grão-Pará e Maranhão, e navegou com sua armada pelos rios Amazonas, Napo e Marañon, numa profunda incursão que levou dois anos e percorreu quase 10 mil quilômetros da ida ao regresso. No final da primeira etapa, ainda separou-se das embarcações e subiu as escarpas das cordilheiras até chegar ao grande altiplano de Quito (naquela época, a cidade fazia parte das terras peruanas). “Se lhes fosse permitido prosseguir com as navegações, teriam se julgado donos de todo o Peru”, reclamou o vice-rei local, Conde de Castellar. “Se continuassem essa usurpação dissimulada, teriam ocupado todas as nossas terras, se apossado das riquezas e saqueado até nossas cidades mais opulentas.”

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Ocupação portuguesa ampliou fronteiras do Brasil

O murmúrio chegou ao Conselho das Índias, que advertiu o governador Noronha pelo avanço atrevido e lhe recomendou que devolvesse a foz do Amazonas para os espanhóis. A medida deveria servir como punição e respeito ao Tratado de Tordesilhas, que havia estabelecido quais terras pertenceriam aos portugueses e quais eram dos espanhóis. Mas, na prática, esse acordo já andava meio superado. Nessa altura da corrida colonialista, a foz do Amazonas era protegida pelo Forte do Presépio, fundado em 1616. Mais tarde, a fortificação deu origem à cidade de Belém, que se tornou o novo centro geopolítico da Região Norte, em substituição a São Luís do Maranhão.

O Forte do Presépio e vários outros tiveram papel fundamental na interiorização da Amazônia, servindo como apoio logístico e ponto de partida para as expedições, além de defender o território com uma poderosa bateria de canhões. Só que a construção dessas unidades militares exigia uma operação logística complexa, pois demandava pedras resistentes e pouco comuns no solo arenoso da floresta. Alguns relatos chegam a mencionar que muitas pedras precisaram ser trazidas de Portugal – uma  encomenda que podia demorar até cinco anos para chegar ao destinatário –, enquanto outras foram obtidas através de um método de fabricação a partir do barro. Ao longo dos séculos 17, 18 e 19, cerca de 30 grandes fortificações foram construídas nas entradas do rio Amazonas e seus afluentes, garantindo soberania militar aos portugueses do Maranhão a Rondônia.

Esse ímpeto lusitano foi o responsável pela expansão das fronteiras brasileiras até as proximidades das nascentes fluviais andinas. A antecipação portuguesa no interior da selva superou as investidas de espanhóis e até mesmo de ingleses e franceses, que tentaram penetrar pelas terras do norte (atuais Guianas e Suriname). O esforço português foi reconhecido pelo Tratado de Madri, em 1750, que redefiniu as fronteiras da América do Sul e lhes assegurou a posse da terra devido à evidência do seu uso pioneiro.

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Forte São José, em Macapá, construído no século 18: presença portuguesa

Os fortes brasileiros – Perto de 1950, o Exército brasileiro tinha mil combatentes na Amazônia. Hoje, são 25 mil homens espalhados por 124 Organizações Militares (OMs) na região Norte, que é considerada a zona de maior vulnerabilidade do Brasil, segundo o Plano de Defesa Nacional, elaborado em 2005 pelo Ministério da Defesa (foi o primeiro plano estratégico feito por civis. Antes, essa tarefa ficava por conta do já extinto Ministério da Guerra). O Exército reconhece que seu contingente atual não é suficiente para a região. Por isso, esse número deverá crescer e ocupar até 70% do orçamento militar nos próximos 20 anos.

A principal ameaça, segundo os militares, é a cobiça internacional pelos “tesouros da selva” – reservas de água, madeira, minério e banco genético. “Seria muita ingenuidade achar que outros países não estão de olho na Amazônia”, enfatiza o coronel Paulo Roberto Netto, ex-comandante do 34º Batalhão de Infantaria de Selva, de Macapá. “Outros países serão amigos até quando for interessante para eles. Nos próximos anos, a água vai assumir um valor cada vez mais alto, e as relações diplomáticas vão mudar”, prevê.

As Forças Armadas procuram estar prontas para qualquer hipótese, inclusive as piores. Em 2004, o Estado-Maior do Exército enviou um grupo de oficiais ao Vietnã para aprender técnicas da guerra de guerrilha, nos mesmos moldes como os vietcongues derrotaram os Estados Unidos – com soldados escondidos na selva, sem o enfretamento direto. Esta é a chamada doutrina da resistência, aplicada quando a superioridade do inimigo é evidente. “Estamos precavidos militarmente da cobiça que a Amazônia desperta. Estamos desenvolvendo a estratégia da resistência contra qualquer inimigo”, disse, na época do envio dos oficiais ao Vietnã, o general Cláudio Barbosa Figueiredo, chefe do Comando Militar da Amazônia (CMA).

Para completar o cerco de defesa da Amazônia, os militares ainda defendem o maior adensamento da rede de controle do estado, ou seja, a ocupação da selva por civis e órgãos oficiais (Polícia Federal, Banco do Brasil, Correios, universidades e postos de saúde, entre outros). Enquanto a densidade demográfica da região Norte é de quatro habitantes por quilômetro quadrado, no resto do Brasil esse índice é de 34. E os militares entendem que terras desabitadas são mais vulneráveis a investidas de forasteiros.

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No entanto, esse pensamento gera críticas de ambientalistas e antropólogos. Na visão desses grupos, os planos do Exército oferecem grandes riscos de impacto socioambiental, principalmente com a aceleração do desmatamento da floresta e a descaracterização de terras reservadas a grupos indígenas. Nos anos 70, o Plano de Integração Nacional lançado pelo governo do presidente Médici incentivou o deslocamento de vários grupos populacionais do Nordeste para o Norte, sob o lema “Integrar para não entregar”. Também criou a Transamazônica, rodovia que liga o Nordeste à Amazônia Ocidental e é uma das principais faixas de desflorestamento.

“Todas as tentativas de colonização da Amazônia, até aqui, foram um desastre”, afirma o professor Wanderley Messias da Costa, do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, com especialização em assuntos amazônicos. “Mas não se pode atribuir esse desastre somente ao governo militar. Hoje temos uma sociedade democrática e os problemas persistem. O PT (Partido dos Trabalhadores) realiza uma reforma agrária que não funciona na Região Norte. As famílias são levadas para lá sem a devida estrutura para o assentamento. Em situações como essa, nascem muitos conflitos fundiários.”

A luta por terra está entre os principais problemas que afligem cidades pequenas ou comunidades mais isoladas. A ela se juntam o extrativismo ilegal de madeira e minérios, o tráfico de drogas e a prostituição. O município de Oiapoque, no extremo norte do Amapá e do Brasil, é exemplo disso. Diariamente os moradores precisam batalhar meios de ganhar a vida numa região carente, onde a paisagem local é feita por crianças descamisadas, que brincam em palafitas e ruas de terra, sem saneamento básico, na beira do rio Oiapoque. Ironicamente, apesar de pobre, a região vale ouro. Os moradores se juntam a forasteiros na corrida por qualquer pedra dourada em garimpos abertos na fronteira com a Guiana Francesa. Fora o garimpo, outra possibilidade é a emigração clandestina para a União Européia. Bem ali, a 200 metros, do outro lado do rio, na cidade francesa de Saint George, o pagamento é feito em euro.

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Desfi le em Oiapoque: “Selva! Aqui começa o Brasil!” é o grito de guerra

Para essas zonas carentes de estrutura e fiscalização, o Exército é enviado e representa a única força pública realmente deslocada para as áreas mais distantes. “Sem dúvida, a questão amazônica é também uma oportunidade para o Exército reassumir um posto de importância na sociedade brasileira, depois de ter passado por um processo de sucateamento e desgaste por suas posições políticas comprometedoras”, diz o professor Messias da Costa.

Até resgatar o protagonismo, o Exército procura divulgar a importância geopolítica da selva e segue trabalhando com seus recursos disponíveis, que são poucos. Na cidadezinha de Vila Velha, a oeste de Oiapoque, a fiscalização também é necessária pelos mesmos problemas. Por isso, o Exército deslocou um grupo de soldados e um posto para lá, mas ainda falta construir algumas coisas na unidade militar. O banheiro, por exemplo, foi terminado só há alguns meses, após consumir dois anos de trabalho e R$ 80 mil. “Existe um grande desafio logístico por aqui”, ressalta o tenete-coronel Batista, comandante do 34º Batalhão de Infantaria de Selva. “Como não tem distribuidora de cimento na cidade, é preciso trazer o material de barco até a cidade. Depois, tem que colocar o cimento na canoa e levar para o pelotão avançado, com o máximo de cuidado, para não molhar. É complicado. O custo final do saco de 50 kg pode chegar a até R$ 50,00 (em São Paulo, custa menos de R$ 15,00)e ainda nos deixa com a impressão de que estamos inflando a obra na hora da prestação de contas.” Como dizia Euclides da Cunha, a Amazônia é uma guerra de mil anos.

 
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