Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas.

Quando compôs Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Machado de Assis, quem sabe, já imaginaria que as páginas desse livro escrito por um defunto e com uma dedicatória tão

lúgubre percorreria o mundo. E que cem anos depois de sua morte seria um dos focos das pesquisas de críticos e ensaístas da Alemanha, Inglaterra, Espanha, Portugal, Estados Unidos e França. Talvez enquanto traduzia Victor Hugo (Os trabalhadores do mar) ou o poema de Edgar Allan Poe (O corvo) já estivesse buscando referências para ser o maior escritor brasileiro de todos os tempos e um romancista dos mais importantes do mundo.

Certo é que, cem anos depois de sua morte, a Universidade Estadual Paulista (Unesp) traz um Machado de Assis sem fronteiras. Polêmico, atual e luminoso. No decorrer da semana passada, de 25 a 29 de agosto, ela promoveu, no Auditório do Museu de Arte de São Paulo (Masp), o Simpósio Internacional Caminhos Cruzados: Machado de Assis pela Crítica Mundial, apresentando um ciclo de conferências e debates que reuniu os grandes estudiosos da crítica machadiana, nacional e estrangeira. “Este evento tem a função de construir as bases para um

Machado de Assis: de uma cidade periférica do século 19 para o mundo

contato mais amplo, sólido e constante entre os diversos pesquisadores da obra de Machado de Assis”, disse o professor Marcos Macari, reitor da Unesp e presidente da Fundação Editora da Unesp. “A nossa proposta é que este evento viabilize novos ângulos de abordagem da obra machadiana, além de evocar temas fundamentais na agenda dos especialistas no decorrer dos próximos anos, cumprindo a missão de continuar divulgando cada vez mais a obra desse nosso escritor.” Durante o evento, a Editora Unesp distribuiu gratuitamente, na avenida Paulista, em frente ao Masp, milhares de exemplares de um pequeno livro com dois contos de Machado de Assis, “Missa do Galo” e “Uns braços”.

A “saudação” inicial, como consta no programa de abertura do simpósio, ficou sob a responsabilidade de Milton Hatoum, professor de Literatura da Universidade Federal do Amazonas e da Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos. Hatoum, autor de livros premiados (Relato de um certo Oriente, Cinzas do norte, Dois irmãos e órfãos do Eldorado), lembrou que jamais tinha recebido tal incumbência, mas, à moda machadiana, saudou o público com uma história curiosa. Certa vez, em 1980, quando era estudante e vivia em Barcelona, foi procurado por uma moça catalã. Ela queria aprender português lendo Machado de Assis. “Aí perguntei para Vitória a razão de tal interesse e ela, muito bonita, disse que o amante lusitano vivia dizendo que Eça de Queiroz era muito superior a Machado, que só sabe escrever sobre adultérios e copiar Almeida Garret.” Hatoum deixou a história no ar. Como será que ficou a catalã diante do lusitano depois de Capitu? 

Crédito foto: Francisco Emolo
O simpósio no Auditório do Masp: pesquisadores de vários países reunidos para discutir a obra de Machado

Local ou universal? – Foi Roberto Schwarz, professor de Teoria Literária da USP e da Unicamp, quem abriu o simpósio. Considerado um dos maiores especialistas na obra do escritor, Schwarz questionou se Machado era local ou universal. E lembrou que muitos pesquisadores do exterior não consideram as críticas do escritor sobre a sociedade brasileira e não contextualizam o momento político e social de sua obra.

Para Carlos Alberto Vogt, secretário de Ensino Superior do Estado de São Paulo, que representava o governador no seminário, tal questionamento é indiferente. O lingüista e poeta vê com orgulho a repercussão da obra de Machado. “Este seminário é um sintoma da universalidade de Machado de Assis”, comentou em entrevista ao Jornal da USP. “Bom ver um autor do fim da segunda metade do século 19 sendo estudado em diferentes países. Todo esse interesse só reforça o que sempre soubemos. Ele é o maior escritor negro de todos os tempos. Hoje li uma matéria sobre a velha guarda da Portela, que tem como característica um jeito diferente de ensinar a ver o fluxo das coisas. Machado de Assis é assim, tem esse lirismo.”

Foi esse jeito de ver o cotidiano com diferença que despertou a atenção de Thomas Sträeter, professor e chefe do Departamento de Teoria da Tradução da Universidade de Heidelberg, na Alemanha. “Ainda era estudante e estava pesquisando sobre a fotografia na passagem do século 19 no Brasil. Mas aí me veio uma dúvida: será que a fotografia daquela época tinha reflexos na literatura? Cheguei, então, nas obras de Machado”, contou. “O escritor nasceu no mesmo ano, em 1839, em que a invenção da fotografia foi lançada por Louis Jacques Mandé Daguerre, em Paris. Essa técnica nova de reproduzir com um aparelho a realidade num flagrante de um momento congelado exerce um papel crucial na obra do grande retratista da vida íntima daquele tempo.”

Crédito foto: Cecília Bastos
Avenida Paulista, em frente ao Masp: Machado para todos

Sträeter apresentou uma tese inusitada sobre a importância da fotografia na narrativa do escritor. “A fotografia aparece tanto como temática explícita como no romance de uma traição suposta em Dom Casmurro. Também surge como elemento estrutural-estético nos contos ‘O empréstimo’ e ‘Uns braços’ ou como metáfora no seu penúltimo romance,  Esaú e Jacó.”

O estudioso observou que um dos contos mais famosos, “O conto do espelho”, se refere diretamente ao problema da representação da realidade. “A fotografia, muitas vezes, foi metaforizada como um espelho prateado que guarda todos os reflexos. Talvez seja o momento de considerar Machado de Assis como um autor muito mais comprometido do que se pensava com os avanços científicos de sua época.”

Outra análise curiosa foi a de Todd S. Garth, professor de Espanhol na Academia Naval dos Estados Unidos. Garth abordou o escritor como filósofo, crítico e psicanalista e destacou, em suas obras, a elaboração de uma ética “schopenhaueriana alternativa”. Argumentou: “Quincas Borba, por exemplo, traz um questionamento dos princípios de Schopenhauer e seu aparente pessimismo”.

Garth citou os trechos iniciais de Quincas Borba. “Rubião está de pé junto à janela de sua sala suntuosa. Seus olhos, sua mente e seu espírito fixos na vista esteticamente agradável de uma canoa que passa. Ao mesmo tempo, seu coração bate diante da expectativa de ser capitalista. Um conflito que, segundo Schopenhauer, produz o pessimismo.”

 
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