A visão nacional e universal de Machado de Assis foi discutida na mesa-redonda que reuniu – durante o Simpósio Internacional Caminhos Cruzados: Machado de Assis pela Crítica Mundial, em São Paulo – o norte-americano Dain Borges, professor de História da Universidade de Chicago, e o português Abel Barros Baptista, professor de Literatura

Brasileira da Universidade Nova de Lisboa. Ambos os autores trouxeram para discussão um Machado de Assis a partir de uma perspectiva mais ampla do que normalmente se aborda.

Borges apresentou uma análise comparada entre três autores, o inglês Lawrence Sterne, o japonês Natsume Soseki e o brasileiro Machado de Assis. Para ele, Machado é um entre muitos pensadores e autores de ficção que escreveram sofrendo e pensando as grandes transformações sociais

Distribuição, na avenida Paulista, de livro com dois contos de Machado de Assis, “Missa do Galo” e “Uns braços”, durante o Simpósio Internacional Caminhos Cruzados: obra do escritor é útil para pensar o Brasil e o ser humano

do século 19. Ele sugeriu que a crítica que Machado faz às táticas de dominação imbricadas nas cordialidades brasileiras poderia também ser analisada como genérica, até como uma literatura certeira, para criticar a cordialidade japonesa. “Gostaria de desatrelar Machado da realidade carioca ou brasileira e religá-lo aos fatos que o século 19 apresentou à identidade das pessoas fora e dentro do Brasil.”

O professor disse que já havia pensado em mostrar as ressonâncias existentes entre Machado e Soseki, mas perdeu a vez quando, na comemoração do centenário da imigração japonesa no Brasil, Carlos Graieb fez uma resenha na revista Veja enfatizando a comparação com Machado. Soseki nasceu durante a Guerra do Paraguai, quando Machado já era um jornalista formado com vocação para escritor. “Tanto Soseki como Machado foram mais recatados e discretos que Sterne.”

As relações, segundo Borges, entre o efeito liberador que o exemplo de Sterne deu a Machado e que influenciou Soseki são muito interessantes. “A não-linearidade do texto é fundamental”, explica Borges. “Soseki disse, uma vez, que Sterne era como um ‘pepino-do-mar’, uma ‘holotúria’, animal informe em que não conseguimos distinguir o ânus da boca. Assim como também as digressões alucinantes do conto que nunca acaba do protagonista Tristam Shandy, de As aventuras de Tristam Shandy, de Sterne.”

Outro fator importante de comparação citado pelo professor inglês é a ficcionalidade aberta e deliberada, que quebra a verossimilhança da ficção. “O narrador impossível: defunto ou quadrúpede”, ressalta. “E também a voz insolente para com a aristocracia e os leitores. O tom de sacanagem mal disfarçado.”

Mas é no romance Kokoro, de Soseki, que é possível perceber a transmutação da tática sterneana, que mostra a violação do tempo linear do romance realista por uma larga série de desconversas, demoras, esperas e frustrações. Em Kokoro, Borges explica que o autor mostra que a aprendizagem sentimental do narrador, um estudante desconfiado e cínico, é depurada por quase todo o seu humor. “A linearidade da narrativa é sutilmente violada, com vozes apagadas em lugar da berrante volubilidade sterneana. A frustração da temporalidade beira o suspense, com muitas explicações prometidas e nunca entregues, ou entregues quando já é tarde demais; ou ainda entregues a quem não vai compreendê-las.” Para o professor, tal qual Dom Casmurro, a traição é um tema fundamental de Kokoro, mas é uma traição do personagem consigo mesmo, que é “o mais importante que as verdadeiras ou supostas traições pelos próximos.”

O palestrante concluiu que Machado é interessante não somente como autor brasileiro, como também como escritor do final do século, que lançou mão de um excêntrico, Lawrence Sterne, para instituir uma literatura nacional numa cidade periférica.

Abel Barros Baptista procurou mostrar em sua palestra, “O nacional contingente”, que Machado é perfeitamente possível de se ler mesmo sem nunca se ter vindo ao Brasil. Explicou ainda que um ponto essencial da obra de Machado é o sentimento íntimo que se estabelece como nexo para pensar o Brasil, e que esse sentimento de nacionalismo é pouco produtivo para entender a grandeza da obra. “O importante é perceber a criatividade da obra como uma busca de liberdade de criação do autor, e não apenas lê-lo pelo viés sociológico, uma tendência da literatura brasileira muito tradicional.”

Pós-modernidade – Na mesa-redonda “Machado de Assis: Modernidade e Pós-modernidade”, Paul Dixon, professor de Literatura Hispano-Americana e Brasileira na Purdue University, nos Estados Unidos, sugeriu que o protagonista do livro Dom Casmurro está preso entre dois tempos – o tempo moderno, em que os valores são relativos e a autenticidade fugitiva, e os tempos míticos, em que há verdades inquestionáveis e empresas sólidas. “Ao viver as arbitrariedades modernas, o protagonista sente nostalgia por um mundo heróico e seguro, em que havia sentido universal e gestos admiráveis.”

Dixon também sugeriu existir uma antítese ao demonstrar que Brás Cubas é ambivalente em sua relação com a natureza. Por um lado, sente uma profunda simpatia pelos seres animados e vegetais, e por outro lado parece recuar do mundo natural. “Tal ambivalência tem um aspecto temporal, referindo-se a uma época antiga em que o vínculo com a terra era óbvio e natural e a outra época, em que aqueles laços tendem a ser esquecidos em favor de uma ‘floresta de símbolos’ mais arbitrários”, refletiu.

O palestrante analisou ainda que Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas, ao dar a obra como um “presente aos vermes”, confere um significado duplo ao romance. Primeiramente o significado convencional de que os livros são restos mortais dos autores e os vermes, dos leitores. “Nisto confundem-se corpo morto e livro impresso, e em ambos os casos são material para a fome das minhocas – fato este que o autor não aceita, porque apaga o que resta de si no mundo”, comentou Dixon.

O segundo significado inverte o convencional, quando Brás Cubas define o verme como um ser íntimo e estimado. “A força do ato de ‘dar o livro ao verme’ também é o oposto do convencional. O narrador não está cedendo seu produto para o adversário, que irá apagá-lo, mas sim está oferecendo-o como um exemplar sui generis, composto por um ‘processo extraordinário’, isento da corrosão do verme.” E complementou: “Esse livro, surgido do túmulo, é seu último esforço xamânico, seu segundo emplasto, seu chocalho mágico, sua última cura e última tentativa de estabelecer-se e restabelecer-se”.

Kenneth David Jackson, professor de Português da Universidade de Yale, em sua palestra "A modernidade do eterno em Machado de Assis”, mostrou que, mesmo aparentando afinidades com o romance modernista, as novidades machadianas podem adquirir uma aura de experimentalismo de vanguarda. Para o palestrante, Machado se destaca e se singulariza pela sutileza com que o conceito formal opera sobre a motivação humana. Nos seus romances e contos, consegue abrir um espaço entre estilo e conteúdo. “O chamado novo estilo machadiano ensaia técnicas que ilustram a complexidade da produção literária do último quartel do século 19, práticas que a prosa modernista vai aproveitar passada uma década.”

Jackson propôs a hipótese de que o estilo radicalmente novo na ficção machadiana teria a sua origem não apenas em olhares móveis, mas na adoção de uma perspectiva do eterno, ou seja, do Universo, desde uma distância absoluta de onde o autor observa a comédia humana em todas as suas dimensões e vicissitudes através dos tempos.

 
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