Reparem nessa ostentação de antenas parabólicas, casas de alvenaria, motos. Entrem e observem: na cozinha, geladeira, microondas e mais eletrodomésticos; na sala, TV de plasma, som e tudo o mais que denuncia status econômico acima da  média da cidade. Da cidade de Pedra Branca, no sertão cearense, 260 quilômetros de Fortaleza, 42 mil habitantes. O

Crédito foto: Márcia Moraes

bairro é o que concentra as famílias de cortadores de cana-de-açúcar. Não da cana de lá, que não há, mas da cana-de-açúcar de Leme, interior paulista, 190 quilômetros da capital, 85 mil habitantes, dos quais boa porcentagem de migrantes nordestinos. Oito meses por ano eles trabalham nos canaviais, outros quatro meses recebem salário-desemprego, depois recomeçam o ciclo de migração em busca de cana para cortar. O dinheiro que ganham vai para as famílias ou fica com os lojistas de Leme. Essa história é contada pela professora Márcia Azanha Ferraz Dias de Moraes, do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da

Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, em Piracicaba, que coordena o Grupo de Extensão em Mercado de Trabalho, criado para realizar estudos sobre as várias culturas e setores que têm relação com o agronegócio.

O trabalho agrícola passa por grandes transformações no Brasil. Questões ambientais e sociais até há pouco tempo eram pouco consideradas, dando-se preferência aos cuidados com custos e outros  problemas estritamente econômicos. Agora, todo sistema de produção é obrigado a levar em conta a preservação do ambiente e as relações trabalhistas. Essa é uma tendência mundial que se acentuou com a globalização, que levou as nações a competir pelo mesmo mercado. Os países que já respeitavam o ambiente e as questões sociais reclamavam estar sujeitos a  custos maiores que os demais, exigindo que normas e regulamentos fossem obedecidos por todos os segmentos e países. A própria sociedade brasileira começa a atuar com firmeza nesse sentido, por intermédio principalmente do Ministério Público e do Ministério do Trabalho.

A professora Márcia vem se dedicando a pesquisas sobre corte de cana-de-açúcar desde o mestrado. O  seu grupo já tem quatro estudos prontos e mais dois em finalização. Num deles, levantaram os indicadores da cana usando dados secundários, isto é, de bancos de dados do governo, e também números próprios, resultantes de pesquisas de campo realizadas em Leme, em Pedra Branca e até na Flórida, nos  Estados Unidos.

Crédito foto: Márcia Moraes
Pedra Branca, no Ceará: do interior nordestino para os canaviais paulistas

Analfabetos – No Estado de São Paulo há boas notícias, outras nem tanto. Entre as boas está a de que 95% dos empregados na lavoura canavieira trabalham com carteira assinada. Comparado com a economia nacional, este é um índice alto e mais alto ainda em relação ao setor agrícola. A situação melhorou muito dos últimos cinco ou seis anos para cá, tanto no que se refere aos trabalhadores de usinas como aos fornecedores independentes. Nas usinas a situação de modo geral é melhor, porque elas lideram o processo, enfrentam maiores pressões, têm melhor estrutura e estão mais próximas do consumidor, que também as pressiona.

As pesquisas da Esalq consideram três frentes de trabalho: produção de cana, de açúcar e de álcool. Segundo dados do IBGE, na lavoura canavieira trabalhavam, em 2006, 532 mil empregados, dos quais cerca de 200 mil em São Paulo. O estado representa 65% da produção nacional, enquanto Alagoas e Pernambuco, onde o cultivo da cana e a produção de açúcar se iniciaram historicamente, essa atividade agora representa apenas 10%. Lá também é maior a informalidade, de 25%, aliás condizente com a realidade social regional.

Outro dado importante salientado pela pesquisadora é a baixa porcentagem de trabalho infantil, um ganho importante dos últimos anos. Ele representa 0,56% da mão-de-obra total, ou 3.530 pessoas, quando em 1992 era de 9%.

Pesquisas de campo realizadas pelo grupo coordenado por Márcia constataram alterações significativas, e positivas, no que se refere às condições de trabalho de migrantes, que todo ano chegam do Nordeste, do Norte e ainda de outros estados, como Minas e Paraná. Embora ainda haja casos de contratações intermediadas pelos “gatos” e não estejam totalmente afastados os casos de alojamentos em condições precárias, o certo é que a maioria dos empregadores cumpre as normas e regulamentos do Ministério do Trabalho. A pesquisadora chama a atenção para o risco de exagerar nas críticas negativas, sem considerar que globalmente a situação está incomparavelmente melhor do que alguns anos atrás. Em São Paulo não se encontram mais casos de trabalhadores rurais vivendo em condições semelhantes às de escravos. Mais importante que a situação conjuntural dos trabalhadores, que não é homogênea, é a questão estrutural, assim considerada a mecanização do corte de cana, que, sem dúvida, ameaça de desemprego pelo menos 100 mil pessoas.

Crédito foto: Márcia Moraes
Opulência e festa no interior: motos, caminhões e trabalho na pesquisa realizada na Esalq

Fogo – A mecanização da colheita de cana é inexorável  e tem muito a ver com a legislação sobre a proibição da queima no campo. A norma oficial estadual, reforçada em alguns casos por legislação municipal, prevê o fim do fogo até 2021 nas terras planas, e até 2030 nas outras terras, menores, mais inclinadas ou íngremes. No entanto, estabeleceu-se um pacto entre usinas e o governo do estado para antecipar a extinção da queima para o período entre 2014 e 2017. Se o ambiente sai beneficiado pelo fim do fogo na roça, a dispensa de empregados é conseqüência lógica, pois sem a queima não há colheita manual, e uma máquina faz o serviço de 80 empregados. É certo que no estado de São Paulo 50% da colheita já é mecanizada e, diante da lei e dos custos mais baixos, as usinas aceleram o processo. Entre as conseqüências da mecanização prevê-se, ao lado positivo para a ecologia, certa concentração fundiária, mas também abertura de mercado no aluguel de máquinas e chances de trabalho para mecânicos e demais setores que dizem respeito à manutenção das máquinas.

A associação dos usineiros prevê 100 mil baixas e não resta dúvida de que perderão o emprego os trabalhadores menos preparados, começando pelos analfabetos absolutos, sem escolaridade alguma, que no país todo eram, em 2005, 155 mil, acrescidos depois pelos analfabetos funcionais, com no máximo três anos de escola, que somam mais 121 mil. Portanto, o panorama previsível é o de uma demanda forte e crescente por mão-de-obra qualificada (operadores de colhedeiras sofisticadas, mecânicos, eletricistas, eletrotécnicos) e, simultaneamente, a necessidade de demissões. Preocupados, governo, empregadores e instituições criadas para educar trabalhadores como Senac e Senai movimentam-se, criando cursos de qualificação profissional. A prefeitura de Piracicaba faz a sua parte, tendo aberto mil vagas.

Crédito foto: Márcia Moraes

O grupo de Márcia, formado por quatro professores da Esalq, duas professoras de outras universidades (Federal de São Carlos, campus de Sorocaba, e Federal de Mato Grosso), mais quatro alunos de pós-graduação e seis de graduação, entrevistou em Leme, cidade-dormitório com seis usinas ativas, agentes e 80 cortadores de cana vindos em maioria de Pedra Branca, para saber o que pensavam da mecanização da lavoura. A resposta dominante foi que continuariam a vir mesmo com a ameaça de desemprego. Nesse caso, o impacto negativo maior será sentido na cidade  de origem, Pedra Branca, que não apenas sobrevive com os recursos remetidos pelos seus migrantes como graças a eles conquistou um modo de vida superior à média do interior cearense. Também perderão as lojas populares de Leme, pois os cortadores de cana representam 30% de seus fregueses. Uma parcela dos entrevistados confirmou que continuará saindo da cidade de origem, mas para tentar a vida em outros estados. A pesquisa não está totalmente consolidada e continua. Na Flórida, o grupo brasileiro de pesquisa constatou que, pelo menos no tocante à cana-de-açúcar e ao fabrico de açúcar e álcool, o Brasil pode dar lições aos norte-americanos. As máquinas que eles usam são importadas do Brasil, que, no entanto, se socorre de tecnologia desenvolvida no exterior, nos estados e na Austrália.

Existem no Brasil 430 usinas que trabalham com cana-de-açúcar, número elevado se comparado com unidades que operam na fabricação de óleo, energia ou outros produtos. Há ainda 60 mil produtores de cana independentes (que não têm relação trabalhista com usinas, mas fornecem matéria-prima para elas). Na fabricação de álcool e de açúcar são 500 mil. Portanto, no setor canavieiro trabalham 1 milhão de pessoas.

O projeto de pesquisa liderado pela professora Márcia está vinculado à Fundação de Estudos Agrários Luiz de Queiroz (Fealq), fundação que administra todas as pesquisas da Esalq e liberou o grupo para consultoria. Os estudos serão estendidos a outras culturas, de preferência com auxílio da Fapesp e CNPq.

 

Semente de uva na carne

Uma professora peruana com formação em Engenharia de Alimentos na Universidade Nacional Agrária de Lima, trabalhando na Esalq desde 2003, depois de concluir o mestrado na Unicamp, está consolidando uma pesquisa sobre produto antioxidante de carnes derivado da semente e da casca de uva. É Carmen Josefina Contreras Castillo, do Departamento de Agroindústria, Alimentos e Nutrição, que um dia foi conhecer a cidade catarinense de Videira e percebeu que cultivadores de uva, por puro acaso, usavam sobras das prensas como antioxidantes. Curiosa, a pesquisadora decidiu examinar que partes das uvas tinham maior poder de proteção da carne, constatando que se encontrava na casca e na semente, embora também esteja presente em menor grau no líquido. Levou amostras da uva para o laboratório em que trabalha na Esalq, fez a secagem, a  moagem, a extração e procedeu às análises químicas a fim de determinar os compostos ativos. O efeito antioxidante não tardou a aparecer quando colocado em amostras de carne de frango moídas (coxa e sobrecoxa, ideais no caso pelo alto teor de gordura que possuem). Os experimentos foram feitos em várias concentrações, quando a professora observou que em concentração muito baixa o produto apresentava efeito oposto ao pretendido, isto é, concorria para a degeneração mais rápida da carne, mas em concentrações maiores sem dúvida preservava o produto testado.

Carmen tem agora um produto antioxidante natural em condições de substituir com vantagem os sintéticos, cujas amostras ela adquire no exterior a fim de fazer a comparação com o seu achado (ou achado dos produtores de uva catarinenses). Essa é a última etapa da sua pesquisa; a partir daí, estará em condições de apresentar a tecnologia a empresas fabricantes de alimentos, especialmente à base de carne, para uso industrial.

O processo de oxidação ocorre em qualquer tipo de carne (ou de outros produtos), mas é mais acelerado na de aves porque nelas há maior quantidade de ácidos graxos poliinsaturados, explica a pesquisadora. Ácidos graxos são bons do ponto de vista nutricional, e o organismo precisa deles. Mas no armazenamento o processo de oxidação de acelera, manifestando-se no odor característico, gosto e aspecto geral. O seu estudo com antioxidante de uva busca estimar a vida útil da carne, a sua validade. Para ser válido o teste precisa ser feito nas condições em que o produto será apresentado aos consumidores, relativamente a temperatura, embalagem, proximidade de outros produtos, etc.

Divulgação – Toda pesquisa tem uma finalidade. Esta pretende alcançar as donas de casa que preparam alimentos e precisam de boas  técnicas de preservação dos produtos. Para elas e quaisquer interessados na pesquisa Carmen dará um curso de três dias, de 7 a 9 de outubro, no laboratório da Esalq onde trabalha. Os inscritos, no máximo 40, que é o limite da capacidade física do ambiente, poderão acompanhar de perto o processo de fabricação do antioxidante natural, sua aplicação e efeito na carne. Além do laboratório de alimentos propriamente dito, o espaço é acrescido de uma planta piloto de processamento de carnes, equipado com modernos moedores e refrigeradores adquiridos com recursos da Fapesp.

 
PROCURAR POR
NESTA EDIÇÃO
O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]