“Estou cego.” Nenhuma frase poderia ser mais conveniente para iniciar um filme, ou melhor, um Ensaio sobre a Cegueira. O semáforo abre e todos os carros se movem. Apenas um fica, imóvel como o motorista. “Algo inundou meus olhos”, diz. Envolto em dúvida e prestes a entrar em desespero, o Primeiro Homem Cego é ajudado a voltar para casa por um

estranho. Tudo o que ele vê é uma espécie de brilho num mar branco. “É como nadar em leite”, descreve.

O estranho que supostamente o ajuda, na verdade aproveita a situação para roubar o carro, mas o contato com o primeiro lhe roubará a visão. A cegueira começa a se espalhar feito uma epidemia. Mesmo o médico que examina o Primeiro Homem Cego – e julga ser conseqüência de uma neurose – não escapa. Na manhã seguinte ele estará imerso em leite branco.

“O pânico espalhou a cegueira ou a cegueira espalhou o pânico”, conta o filme. À medida que a misteriosa cegueira atinge mais pessoas, o governo decide colocá-las em quarentena. A Mulher do Médico, apesar de não estar cega, mente para acompanhar o

marido. Seus próximos meses serão passados em um sanatório abandonado – local que também não poderia ser mais apropriado. Ela será a única testemunha do que está por vir.

Essa história foi escrita pelo Nobel de Literatura José Saramago, em 1995. Desde então, o livro alimenta a imaginação dos leitores com imagens do caos que se seguiria a uma perda massiva da visão. Privado de seu sentido mais básico, o homem ficaria perdido, obrigado a lutar pela sobrevivência de forma primitiva. Seria um retrocesso histórico quase absurdo. A obra nos mostra como a humanidade depende da visão e como a estrutura social ruiria sem ela. Mas não somente disso fala o livro. Já nos anos 90, a crítica desse Ensaio era categórica: “Acho que não ficamos cegos”, escreveu Saramago. “Acho que sempre fomos cegos. Cegos apesar de conseguirmos ver. Pessoas que conseguem ver, mas não enxergar”.

Na versão cinematográfica, o espectador é guiado pelos olhos da Mulher do Médico, interpretada por Julianne Moore, tornando-se cúmplice de seu testemunho. Por meio dela, se vê a falência do que a sociedade atual ainda preserva como valor e moral. O sanatório não tarda a se tornar um lugar hostil, onde as pessoas desconfiam umas das outras. Sem ver o próprio estado em que se encontram, homens e mulheres sujos e nus, como animais, tomam a tela do cinema. A história lembra um experimento social. A pouca ordem que existe é precária. Os cegos, submetidos a racionamentos de comida, organizam-se em alas. Até onde as pessoas são capazes de ir para sobreviver? Como a sociedade se reconstruiria nessa situação?

A resposta vem quando o Rei da Ala Três, personagem de Gael García Bernal, assume o controle dos alimentos. O esteio de seu poder é a posse de um revólver, única arma do local. Para distribuir os alimentos, ele exige ser pago com os bens que as pessoas ainda possuem. Mas isso implica um problema óbvio: qual será a moeda de troca quando todos os pertences já tiverem sido entregues?

“Esta é uma história que deve inspirar diversas questões, mas não nos dá resposta alguma”, conta Meirelles. “Ela levanta questionamentos sobre a evolução humana, nos faz refletir criticamente, mas não aponta para nenhuma direção específica. Assim como na história, cada um tenta descobrir a própria estrada a seguir”, explica.

Segundo o diretor, as imagens são dispersivas: “a gente realmente se perde, (a visão) nos afasta de nós mesmos". Para se preparar para as filmagens, Meirelles lembra que participou de um exercício com o elenco, que inclui Danny Glover (como narrador da história, a voz do autor), Alice Braga e Mark Ruffalo. Por cerca de quatro horas e meia, todos ficaram vendados, e nem todos suportaram a experiência. "Algumas pessoas ficavam chorando”, conta Meirelles. “Depois de uma hora, não agüentavam ficar com aquela venda sem saber onde estavam".

Ao invés de fazer um filme sombrio, Meirelles construiu cenas com uma luminosidade excessiva. Há cenas tão brancas que as linhas que definem os objetos ficam quase imperceptíveis. A “treva branca” que caracteriza a cegueira da história parece predominar na tela. Jogos com luz, sombra, imagens desfocadas e fora de enquadramento compõem a estética do longa e funcionam como conceitos. “Nossa estética humana é baseada em nossa capacidade de enxergar”, lembra Glover. “A maneira como as pessoas saem desse tipo de experiência (a cegueira) é fundamental, e acho que tudo se relaciona à idéia de que se não entrarmos nos séculos 21 e 22 com uma nova ética, ficaremos perdidos.”

 
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