As cores de abril
Os ares de anil
O mundo se abriu em flor
E pássaros mil
Nas flores de abril
Voando e fazendo amor

Três de abril de 2006. Amanhecer do outro lado do oceano sem as cores de abril, sem o sol difuso do outono brasileiro foi o desafio de Atílio Avancini em seu primeiro dia japonês. O fotógrafo bem que lembrou da canção de Vinicius e Toquinho. Colocou a Nikon FM 10 a tiracolo e saiu pela primeira vez pelas ruas de Kyoto.

O canto gentil
De quem bem te viu
Num pranto desolador
Não chora, me ouviu
Que as cores de abril
Não querem saber de dor

E de repente se deparou com um abril de sol vermelho, irradiando entre as flores das cerejeiras. Só aí se deu conta de que estava em plena primavera. O professor Ikunori Sumida e sua esposa Yoshiko, que o orientaram em seus primeiros dias no Japão, recomendaram: “Comece já a fotografar porque essa paisagem dos sakuras (cerejeiras) em mankai (na plenitude) é

efêmera”.

O fotógrafo se deixou levar pela paisagem e pela canção.

Olha quanta beleza
Tudo é pura visão
E a natureza transforma a vida em canção
Sou eu, o poeta, quem diz
Vai e canta, meu irmão
Ser feliz é viver morto de paixão

Entre as fotos dessa primeira saída em Kyoto está a imagem que abre o livro Entre gueixas e samurais, de Atílio Avancini, editado pela Editora da USP (Edusp) e Imprensa Oficial do Estado. A imagem – uma flor de cerejeira em primeiro plano nascendo no tronco de uma árvore e uma pessoa ao fundo, andando de bicicleta – mostra o fotógrafo mergulhando na arte oriental. E convidando o leitor a contemplar a natureza.


As imagens de Atílio Avancini: conduzido pela cultura japonesa, olhar capta cenas de rara beleza

De centenas de imagens, Avancini propicia uma seleção de 72 fotos. Orientado pelo amigo jornalista Gutemberg Medeiros, o fotógrafo decidiu documentar as suas impressões sobre o Japão em 12 crônicas/relatos, uma em cada mês. Lecionou Cultura Brasileira na Kyoto University of Foreign Studies (Kufs), conhecida como Kyoto Gaidai, que mantém convênio com a USP. A composição entre textos e fotos flui em Entre gueixas e samurais com leveza e plenitude.

O saber ver – O fotógrafo Cristiano Mascaro, que também documentou o Japão em uma recente exposição, assina a contracapa do livro. “Logo após seu surgimento, a fotografia veio proporcionar aos eternos viajantes um meio de registro inovador de suas andanças pelo mundo”, observa. “Felizmente essa prática, apesar das inúmeras e novas possibilidades surgidas ao longo destes últimos quase 200 anos, ainda persiste e surpreende, como neste Entre gueixas e samurais.”

Na avaliação de Mascaro, Avancini passa ao largo de certas tendências que têm inspirado mal o uso da fotografia, oferecendo um retrato de simplicidade comovente do povo japonês. “E isso nos é revelado em belas imagens no mais puro estilo de fotografia de rua. Seu depoimento a respeito do que viu em Hiroshima, evocando a tragédia da bomba atômica, é particularmente tocante. Entretanto, está nas fotografias da vida cotidiana o recado mais importante e oportuno, principalmente nesta época em que muitos fotógrafos, sobretudo os jovens, almejam tornar-se artistas de bienal.”

Mascaro lembra que a reportagem ainda é um dos mais importantes papéis que a fotografia tem a cumprir. “Como esta de Avancini, que, caminhando pé ante pé pelas ruas, leva-nos a observar, por meio de suas ‘anotações’, instantes preciosos que o passante distraído jamais poderia usufruir. E dessa maneira resgata e enfatiza uma condição essencial da criação em fotografia: o saber ver.”

Milenar e moderno – “Como repórter, mergulho na realidade urbana para extrair uma visão subjetiva do mundo”, observa Avancini. “Quando reflito calmamente sobre alguns cliques, percebo que posso ir além dos limites de minha experiência. Sempre amei as cidades e seus cidadãos. E fotografar é pôr a teoria de lado e partir em direção à prática. ‘Ver é um desfrute do olhar, deixa os pensamentos conceituais em repouso’, já dizia Henri Cartier-Bresson.”

As fotos conseguem captar a busca do equilíbrio de uma sociedade que tem na essência uma cultura milenar e, ao mesmo tempo, passa por um inquietante processo de transformação. É o Japão que se renova a cada dia, mas que leva para o tempo da modernidade o silêncio dos templos budistas, a imponência do Monte Fuji e a delicadeza das cerejeiras.

“Os testemunhos recolhidos neste livro representam um Japão ambivalente”, avalia Shiro Iyanaga, músico e professor da Kyoto Gaidai. “A cultura nipônica tem tragado alimentos tão híbridos que nem consegue digeri-los. As idéias e os princípios antagônicos, porém, sabem conviver neste estranho calmo caos. A beleza das fotografias e a transparência dos textos traduzem uma nova visão da sociedade japonesa, apresentando não só um registro, mas também uma radiografia, que conduzem o leitor à descoberta de uma perspectiva inédita do país.”

A busca da harmonia entre o milenar e o moderno fica em evidência não só pelas fotos, mas por um projeto gráfico sutil. Cada texto é aberto por um ideograma, que foi encomendado ao artista japonês Junichiro Eto. Um trabalho que foi respeitosamente cuidado por outra artista, Marcela Souza, uma jovem estudante da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Marcela reverenciou a energia de cada ideograma com um fundo vermelho. Uma cor para lembrar o sol nascente. A seqüência das imagens estabelece um diálogo. Há ainda a proeza das fotos de páginas duplas conseguirem uma leitura sem ruídos, sem divisão.


Entre gueixas e samurais, de Atílio Avancini, Edusp e Imprensa Oficial do Estado, 206 páginas, R$ 80,00

As páginas oferecem uma composição clara. O leitor observa a imagem da esquerda e a da direita, que conseguem ser autônomas e, ao mesmo tempo, se fundem em uma única paisagem. Ao abrir o livro, o leitor se depara com a delicadeza da textura do papel-arroz. E se surpreende com uma foto impressa em vermelho. É um menino, em um parque de Tóquio, dando os seus primeiros passos, brincando com a névoa. “A paisagem muda rápido. No início da primavera – regida pelas árvores floridas, as famílias saem às ruas para apreciar o belo espetáculo da natureza. Tudo é começo na terra do sol nascente”, descreve Avancini.

 

Fotografar no momento decisivo

Parece que o Japão se aprumou para ser fotografado por Atílio Avancini. As paisagens trazem a luz exata de cada estação. É outono no quimono cinza, nos chinelos caminhando entre as folhas das ruas. Verão no desfile das sombrinhas coloridas que brincam nos ombros das mulheres. Primavera na alegria das crianças que correm pelos parques. E inverno na sombra das pessoas que se movimentam dentro dos prédios ou espaços públicos.

Avancini foi buscar, no Japão moderno, o mito das gueixas e samurais. E, o mais curioso, conseguiu captar a essência da tradição no cotidiano das festas e no movimento das pessoas nas ruas e parques. Sob o foco de Henri Cartier Bresson, o fotógrafo soube detectar o momento decisivo da fotografia. E conseguiu registrar o tempo que passou. De repente, uma aparição: um cavaleiro vestido de quimono aparece. Veloz, numa fração de segundos, o samurai. As gueixas não estão apenas nos quimonos floridos, mas no olhar das moças que se deixam fotografar.

O cotidiano encanta o fotógrafo. Enquanto atravessa Kyoto de bicicleta, ouve o som de um sax. Vai atrás. E encontra um músico no meio de um arrozal com a partitura apoiada no guidão da bicicleta. É um alfaiate que descansa tocando o clássico da MPB Manhã de carnaval, de Luiz Bonfá e Antonio Maria (canção gravada em 1959 como trilha sonora do filme Orfeu negro).

Nesse ritmo, Avancini decide dar um movimento diferente para as suas aulas de Cultura Brasileira. Passa a levar o violão e a tocar bossa nova. “Até aquele momento, os alunos ficavam sempre calados, dispersos. Foi Garota de Ipanema que os despertou”, conta.

Fotografar, lecionar, revelar as fotos uma a uma no silêncio do laboratório, tocar, compor, jogar tênis como um meio de integração, escrever. Toda essa rotina disciplinada está no livro Entre gueixas e samurais, publicado como uma homenagem da USP ao centenário da imigração japonesa. “As imagens e os textos contribuem para reafirmar os laços culturais de nações tão distantes e tão próximas”, explica o professor Sedi Hirano, presidente da Comissão do Centenário da Imigração Japonesa da USP.

 
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