No discurso de aceitação do Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 2007, Oliver Smithies agradeceu a um de seus grandes mestres: o instrutor de aviação Field Morey, que o ensinou a pilotar – o que o cientista faz até hoje, sempre que tem tempo – depois dos 50 anos de idade. “Moreyme ensinou algo mais importante do que voar: especificamente,

que é possível superar o medo com o conhecimento.” A mesma lição se aplica aos cientistas, continuou Smithies. “O medo de cair, que muitos cientistas têm quando estão tentando algo novo, pode ser superado da mesma forma: com o conhecimento.”

Como fez ao receber o Nobel, o carismático professor citou outro de seus mestres na cerimônia de outorga do título de Doutor Honoris Causa pela USP, no dia 18 passado, na Sala do Conselho Universitário, na Cidade Universitária, em São Paulo, solenidade que

A entrega do título a Oliver Smithies, na Sala do Conselho Universitário: obra do geneticista permitiu avanços em pesquisas contra centenas de doenças

integra a programação oficial de comemoração dos 75 anos da Universidade. Smithies abriu a carteira e leu a anotação que leva sempre consigo, trecho de um artigo de Sandy Ogston, seu professor dos tempos de estudante em Oxford: “Porque a ciência é mais do que a busca da verdade, mais do que um jogo desafiador, mais do que uma profissão. É uma vida levada coletivamente na maior proximidade possível, uma escola para a vida em sociedade. Somos membros uns dos outros”. “Eu carrego isso o tempo todo para me lembrar o que significa ser um professor”, disse ao público que lotava a sala do Conselho Universitário para a solenidade.

A proposta de outorga do título foi feita pela Faculdade de Medicina da USP, que justificou a homenagem não apenas pelo Nobel, mas pelas grandes contribuições de Smithies para a ciência e a sociedade. Na década de 1950, ele criou a eletroforese, uma técnica capaz de separar moléculas de DNA e de proteínas para análise. É uma dessas coisas que atualmente são tão corriqueiras para quem as usa que parece que sempre existiram, disse na cerimônia o professor Marcos Boulos, diretor da Faculdade de Medicina. “A eletroforese está no dia-a-dia de qualquer laboratório de bioquímica ou de biologia molecular no mundo inteiro”, completou.

Revolução – Em 2007, Smithies recebeu o Nobel ao lado de Mario Capecchi e Martin Evans pelo desenvolvimento de uma técnica que permitiu modificar geneticamente células-tronco embrionárias em camundongos utilizando a recombinação homóloga. A técnica, batizada de “nocaute”, “consiste em extrair células-tronco de um embrião e colocá-las numa placa de cultura para gerar um animal”, explicou o cientista numa coletiva à imprensa quando participou, em São Paulo, do 1o Simpósio Brasileiro de Tecnologia Transgênica, promovido em março deste ano pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Ou seja, você consegue isolar uma célula-tronco de um embrião e depois fazer com que essa célula-tronco volte a gerar um animal. Com base na técnica da recombinação homóloga, mostrou-se que era possível modificar especificamente o genoma dessas células-tronco embrionárias. Se você juntar as duas coisas, perceberá que é possível modificar especificamente o genoma dessas células e ainda gerar um animal a partir dele, criando assim modelos de doenças genéticas humanas.”

Crédito foto: divulgação
Oliver Smithies, Prêmio Nobel de Medicina de 2007 e Doutor Honoris Causa da USP: “A ciência é mais do que a busca da verdade, mais do que um jogo desafiador, mais do que uma profissão. É uma vida levada coletivamente na maior proximidade possível, uma escola para a vida em sociedade. Somos membros uns dos outros”

Essas descobertas se deram na década de 1980. Os três cientistas “revolucionaram nossa forma de fazer pesquisas em genética humana”, diz a professora Lygia da Veiga Pereira, chefe do Laboratório de Genética Molecular do Instituto de Biociências da USP. “É uma ferramenta muito poderosa para entendermos os mecanismos por trás de diferentes doenças e para podermos desenvolver e testar novas terapias.” Hoje existem camundongos “nocaute” para mais de 500 doenças, como câncer, diabete e doenças neurovegetativas, que são utilizados para entender melhor esses males e testar novas terapias. “O impacto de sua descoberta sobre a elucidação das funções dos genes e suas interações, e ainda na elaboração de tentativas terapêuticas para doenças genéticas, é incalculável. As suas descobertas já trouxeram muitos benefícios para a pesquisa e continuarão a trazer ao longo de muitos anos”, concorda Natássia Vieira, doutoranda do Instituto de Biociências e pesquisadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP.

Antes da descoberta, para fazer esse tipo de pesquisa era necessário contar apenas com modelos naturais que tivessem mutações. “A possibilidade de criar os modelos como você quer é fantástica, porque permite estudar qualquer doença humana”, diz a professora Mayana Zatz, pró-reitora de Pesquisa da USP e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano. “Outra aplicação muito grande é que você pode tentar fazer terapias gênicas, celulares, a partir de células-tronco, que é meu interesse particular.”

Incansável – Nascido na Inglaterra em 1925, Oliver Smithies naturalizou-se americano e leciona atualmente na Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill, nos Estados Unidos. “Conheço a USP há mais de 40 anos. Quando era um jovem professor na Universidade de Wisconsin, fizemos grandes estudos em conjunto com pesquisadores daqui”, afirmou numa breve entrevista, após receber o título de Doutor Honoris Causa. Outra colaboração é mantida desde 1996 com o Departamento de Cardio-Pneumologia da Faculdade de Medicina. “Ele não apenas mandou linhagens de animal, mas transferiu a tecnologia. Hoje, esse grupo trabalha sem custo com a tecnologia transferida”, conta o professor Euclides Ayres de Castilho, representante da congregação da unidade no Conselho Universitário.

Crédito foto: Francisco Emolo
Boulos: invenção hoje corriqueira

Pesquisador incansável, aos 83 anos Oliver Smithies continua dando provas de vitalidade e de que o medo de cair não o intimida a buscar sempre o novo. Chegou a São Paulo na manhã do dia 18 e poucas horas depois estava na Cidade Universitária com toda a disposição e sem aparentar cansaço. Sua esposa, a também cientista Nobuyu Maeda, o acompanhava. No dia 20, sábado, o professor fez ainda a conferência de encerramento da 11a São Paulo Research Conference sobre Medicina Molecular e Farmacogenética, no Centro de Convenções Rebouças.

O novo Doutor Honoris Causa ressaltou que estava muito feliz por ser homenageado às vésperas dos 75 anos de criação da USP. “Isso significa que eu tinha 8 anos de idade quando esta universidade foi fundada”, disse, provocando risos na platéia. “Smithies dá um testemunho de uma vida dedicada à ciência com os olhos voltados para a sociedade”, declarou na solenidade a reitora Suely Vilela.

Em sua passagem por São Paulo em março, registra reportagem da revista Pesquisa Fapesp, o cientista deu uma palestra no Pavilhão Armando Arruda Pereira, no Parque do Ibirapuera, e exortou os jovens pesquisadores a trabalhar muito, inclusive aos sábados, domingos e feriados. “Um sábado perfeito inclui pilotar o avião, almoçar com a mulher e, à tarde, trabalhar no laboratório”, disse. Na palestra, mostrou cópias das páginas dos cadernos em que fez suas anotações ao longo de mais de 60 anos como geneticista. Ao exibir uma delas com data de um dia 1º de janeiro, aproveitou para dizer novamente que é preciso trabalhar sempre, não importando se há festas pelo caminho. Um exemplo foi a pesquisa sobre a recombinação homóloga – que acabou levando ao Nobel –, iniciada em 1982 e concluída somente três anos depois, como mostram suas anotações. “O que há na próxima página? Eu não sei, e é isso que torna a ciência algo tão excitante.”

 
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