O ano de 1968 é considerado um dos anos mais fecundos para a produção cultural, assim como um marco na história da repressão e da censura no Brasil. Foi o ano de promulgação do AI-5, da federalização da censura e da explosão de movimentos sociais e estudantis. Para refletir sobre a importância dessa época, o Arquivo Miroel Silveira

Crédito foto: Cecília Bastos

(AMS) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP promoverá, entre os dias 12 e 15 de outubro, o seminário 1968: Liberdade e Repressão.

Além de refletir sobre a repressão e a liberdade no Brasil, o evento também quer divulgar os documentos do arquivo que já se encontram digitalizados e disponíveis na internet (www.eca.usp.br/ams). São textos com solicitações de censura, data de apresentação das peças, história das companhias, trajetória dos autores e as peças censuradas – as de domínio público e as que tiveram autorização para publicação on-line –, todos na forma original, até com a marcação da censura. “O importante desse resgate é o valor histórico da censura e a

recuperação de textos inéditos, sendo muitos deles o único documento que restou”, explica Maria Cristina Castilho Costa, coordenadora-geral do projeto temático “A Cena Paulista: Um Estudo da Produção Cultural de São Paulo de 1930 a 1970, a partir do Arquivo Miroel Silveira”.

Maria Cristina conta que a censura, em 1968, deixou de ter um caráter de defesa da moral e dos bons costumes para ser repressiva. “Esse foi um ano crítico, pois foi editado o Ato Institucional número 5, o AI-5, e toda a censura passou a ser feita em Brasília. Embora houvesse alguma censura em São Paulo, os funcionários do estado foram transformados em funcionários da censura federal e o teatro sofreu imensamente com a repressão.”

Mesmo tendo sido uma época difícil, com uma censura forte e endurecida sobre a cultura brasileira, Maria Cristina ressalta que os anos 60 foram uma década de muita criatividade e o teatro estava no seu apogeu. “A explosão de tendências de renovação cultural, que já estavam sendo gestadas desde a década de 40 e 50, no teatro e na música, ocorreu com força na década de 60. Tudo se propunha a falar do Brasil, pensar a realidade brasileira, resgatar a cultura popular, o que é regional.” Nesse sentido, o seminário 1968: Liberdade e Repressão vai mostrar que, mesmo sob o domínio da repressão, aconteceram fatos importantes, inclusive a encenação de várias peças de teatro.

Apresentações – O seminário terá a presença de pesquisadores, artistas, jornalistas e críticos. A abertura contará com uma palestra da professora Iná Camargo Costa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e terá a participação da atriz Nídia Lícia, do dramaturgo Zé Renato, ligado ao Teatro de Arena nos anos 60, do professor Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e da poetisa, dramaturga e professora da ECA Renata Pallotini (leia abaixo a programação completa do evento).


Mayra e Cristina: valor histórico

O seminário terá também apresentação de duas peças teatrais que foram censuradas na década de 60, O crime da cabra, de Renata Pallotini, e A lenda de Cepé Tiaraju, do Grupo União e Olho Vivo, de César Vieira, um dos mais antigos grupos de teatro do Brasil, que tem como objetivo principal a troca de experiências culturais com as comunidades carentes da Grande São Paulo.

O crime da cabra trata de uma singela história de um vendedor e um comprador de cabras. O comprador, enquanto vai fazer outro negócio, acaba deixando o dinheiro sobre a mesa e a cabra come. A história gira em torno de discutir de quem é a cabra, pois quem vendeu não recebeu o dinheiro e quem comprou já tinha pago. “Foi considerada subversiva na época, porque entenderam que a autora, Renata Palottini, estava fazendo uma crítica à ditadura que se iniciava”, explica Ferdinando Martins, pós-doutorando e coordenador da área de Gerenciamento da Informação do projeto temático. “As mesas do seminário tratarão de temas relacionados a algumas dessas peças consideradas emblemáticas, dentro do ano de inflexão que foi 1968 para o teatro e a cultura”, ressalta Martins.

Mais informações sobre o seminário 1968: Liberdade e Repressão podem ser obtidas pelo telefone (11) 3091-1607 e na página eletrônica www.eca.usp.br/ams.

 

Cultura em debate

Esta é a programação completa do seminário 1968: Liberdade e Repressão, que será promovido de 12 a 15 de outubro pelo Arquivo Miroel Silveira da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP (avenida Professor Lúcio Martins Rodrigues, 443, sala 10, Cidade Universitária, São Paulo).

Dia 12 de outubro

17h. Abertura do seminário. Encenação de A lenda de Sepé Tiaraju, de César Vieira (Teatro União e Olho Vivo).

Local: Teatro União e Olho Vivo (rua Newton Prado, 766, Bom Retiro, São Paulo).

Dia 13 de outubro

14h. Abertura: Suely Vilela (reitora da USP), Carlos Henrique de Brito Cruz (diretor-científico da Fapesp), Ruy Alberto Corrêa Altafim (pró-reitor de Cultura e Extensão Universitária da USP), Mayana Zatz (pró-reitora de Pesquisa da USP), Armando Corbani Ferraz (pró-reitor de Pós-Graduação da USP), Luiz Augusto Milanesi (diretor da ECA), Amílcar Zani Netto (presidente da Comissão de Pesquisa da ECA), Maria Cristina Castilho Costa (coordenadora do projeto temático A Cena Paulista e do Arquivo Miroel Silveira) e Olga Mendonça (diretora da Biblioteca da ECA). 

15h. Conferência de Abertura: Iná Camargo Costa (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP).

16h. Lançamento de livros: Censura, repressão e resistência no teatro brasileiro, de Maria Cristina Castilho Costa (organizadora), Palavras Proibidas – Pressupostos e subentendidos na censura a peças teatrais, de Mayra Rodrigues Gomes, e Na cena paulista, o teatro amador – Circuito alternativo e popular de cultura (1927-1945), de Roseli Figaro Paulino (organizadora).

Dia 14 de outubro

10h30. Videoconferência com Portugal e França sobre censura ao teatro brasileiro, português e francês.

14h. Sessão 1. Mesa-redonda sobre conjuntura social, política e cultural de 1968. Coordenação: Maria Cristina Castilho Costa (ECA). Convidados: César Vieira (diretor do Teatro União e Olho Vivo), Maria Arminda do Nascimento Arruda (FFLCH), Sérgio Salvia Coelho (crítico teatral do jornal Folha de S. Paulo), Valmir Santos (crítico teatral do jornal Folha de S. Paulo) e Sérgio de Carvalho (ECA).

16h30. Sessão 2. Mesa-redonda sobre o impacto da censura sobre a produção teatral em 1968. Coordenação: Marco Antônio Guerra (ECA). Convidados: Nydia Licia (atriz), Carlos Fico (UFRJ), Maria Thereza Vargas (escritora) e Renata Pallottini (ECA).

20h. Encenação: O crime da cabra, de Renata Pallotini

Dia 15 de outubro

14h. Sessão 3. Mesa-redonda sobre as representações sociais no teatro paulista de 1968. Coordenação: Roseli Figaro Paulino (ECA). Convidados: Francisco Alambert (FFLCH), José Renato Pécora (diretor de teatro), Ferdinando Martins (ECA) e João Quartim de Moraes (Unicamp). 

16h30. Sessão 4. Mesa-redonda sobre a relação entre os meios de comunicação de massa e a produção teatral. Coordenação:

Mayra Rodrigues Gomes (ECA). Convidados: Chico de Assis (autor e ator), Jefferson Del Rios (crítico teatral), Marcelo Ridenti (Unicamp) e José Eduardo Vendramini (ECA).

18h30. Encerramento: Maria Cristina Castilho Costa (ECA), Mayra Rodrigues Gomes (ECA) e Roseli Aparecida Figaro Paulino (ECA).

 

A censura burlada em O rei da vela

Através dos documentos que conserva, o Arquivo Miroel Silveira da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP traz importantes revelações da censura à cultura brasileira, desde a década de 20 até os anos 60. Uma das peças mais importantes do teatro brasileiro e que sofreu forte censura foi O rei da vela, de Oswald de Andrade, publicada em 1937. Segundo o pós-doutorando Ferdinando Martins, a peça teve como censor Coelho Neto, um sujeito mais esclarecido que a maioria dos censores, que contou detalhes da encenação para a equipe do projeto temático “A Cena Paulista: Um Estudo da Produção Cultural de São Paulo de 1930 a 1970, a partir do Arquivo Miroel Silveira”.

Coelho Neto já tinha assistido a uma apresentação anterior de O rei da vela e teve que participar de mais uma sessão com outros dois censores. Em vários momentos, o personagem principal, um boneco gigante, levantava sua saia e mostrava suas partes íntimas, o que seria considerado atentado ao pudor pelos censores. Coelho Neto afirma que, querendo burlar a censura e liberar a peça, porque também era artista, conseguia que os outros censores não prestassem atenção àquele peculiar momento da peça, cochichando ao pé do ouvido dos colegas de trabalho. Martins explica que esse fato mostra até que ponto chega a irracionalidade da censura e como ela tinha um caráter aleatório. “Apesar dos procedimentos da censura em vários momentos, o que está em questão são os valores pessoais de cada censor.”

Outro fato interessante é a busca de autores por suas peças perdidas no tempo. É o caso do dramaturgo Carlos Queiroz Teles, que teve A ponte, de 1958, censurada e perdida, e a encontrou novamente no Arquivo Miroel Silveira. O processo de censura mais antigo do aquivo é o da peça Bric a Brac, de Bastos Tigre e Antonio Lago, de 1926. Na peça Ben-Hur, de 1943, uma adaptação de Hilário de Almeida, a primeira cena foi censurada por exaltar Roma e os romanos.

Senhoras católicas – Manifestações de apoio à censura são um outro capítulo da história da repressão política no país, revela também o Arquivo Miroel Silveira. No processo de A semente, de Gianfrancesco Guarnieri, é possível perceber a reação dos que eram contra a peça. O arquivo guarda abaixo-assinados e telegramas de apoio enviados ao governo pela Federação Mariana Feminina, que reuniu 12 mil moças de São Paulo. “Apoiamos o ato de censura de vossa senhoria em relação à peça A semente, desejosas de evitar a subversão da ordem pública e a disseminação de linguagem rasteira”, lê-se no telegrama.

Outro processo em que constam manifestações semelhantes se refere à peça Perdoa-me por me traíres, de Nelson Rodrigues, datada de 1956. A história fala de um marido pedindo perdão para a esposa por ela ser adúltera e ele ser incapaz de satisfazê-la. Martins explica que esse processo traz todos os pareceres do censor, assim como despachos do então governador de São Paulo, Jânio Quadros, pedindo a interdição. Tem também um debate ocorrido entre os intelectuais Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes, Sábato Magaldi e o órgão de censura, além da própria intervenção, que foi parar no nível federal. “A classe teatral de São Paulo, reunida em assembléia, vem respeitosamente apresentar à vossa excelência o protesto pela interdição de Nelson Rodrigues Perdoa-me por me traíres”, dizia o telegrama. Sem contar o abaixo-assinado das senhoras católicas, com 117 páginas de assinaturas.

 

Uma fonte de pesquisas e descobertas

O Arquivo Miroel Silveira tem possibilitado uma enorme gama de pesquisas acadêmicas e produções literárias, assim como a descoberta de questões importantes relacionadas ao teatro e que estão além da própria censura. O grupo temático é composto de 25 pesquisadores, entre iniciação científica e pós-doutorado.

Um dos eixos temáticos é Censura em Cena, coordenado por Maria Cristina Castilho Costa. Segundo o pós-doutorando Ferdinando Martins, há uma preocupação com a reconstrução histórica e sociológica da vida cultural na cidade de São Paulo e a relação dessa vida cultural com a história dos meios de comunicação de massa.  Como resultado, será lançado o livro Censura, repressão e resistência no teatro brasileiro, coletânea de entrevistas com os censores, atores, autores, diretores e críticos teatrais sobre a censura no Brasil.

O Poder e a Fala é outro eixo de pesquisa, coordenado pela professora Mayra Rodrigues Gomes. Trata-se de estudo das palavras censuradas, mostrando focos privilegiados e pensando-os à luz de contextos sócio-históricos. Mayra vai lançar durante o evento o livro Palavras proibidas – Pressupostos e subentendidos na censura teatral, um estudo das palavras censuradas nas peças do AMS.

Mayra explica que há muitas palavras que foram sistematicamente censuradas, como “amante”. “O nosso trabalho faz todo um levantamento para entender algumas dessas palavras, recuperando sócio-histórica e etimologicamente o contexto da palavra, assim como também um levantamento quantitativo para entender o porquê da censura sob determinada palavra.”


Roseli: foco no teatro amador

Há casos em que a cena toda é vetada. Também há vários tipos de censura: moral, política, de ordem social e religiosa. Mayra conta que, do total das palavras até agora analisadas, 52% foi censura moral e diz respeito à sexualidade, modo de vestir e falar.

A professora Roseli Figaro Paulino coordena o eixo de pesquisa Na Cena Paulista, o Amador, que busca estudar o teatro amador e o operário. “Criamos essa linha de pesquisa por haver necessidade de trazer à tona a produção amadora de São Paulo no período abrangido pelo arquivo – uma produção pouco estudada, mas de enorme relevância para a compreensão das questões culturais que circulavam na época que assistiu ao surgimento e à consolidação da metrópole”, explica.

Segundo Roseli, o Arquivo Miroel Silveira indica a existência de dois circuitos paralelos, “aquele dos teatros do centro da cidade, dos espetáculos de arte teatral do circuito oficial e comercial, e aquele que acontece nos bairros proletários, nos teatros, clubes, circos, paróquias, sindicatos, associações de trabalhadores e moradores; teatro de expressão cultural, atividade social que congrega e permite fortalecer laços comunitários e estreitar sociabilidades”. Também conta com uma obra que deverá ser lançada no seminário, Na cena paulista: o teatro amador – Circuito alternativo e popular de cultura (1927-1945). O livro reúne os dados de pesquisa já levantados, mostrando o perfil de atividades dos grupos de teatro popular e amador, formados por imigrantes e trabalhadores. “O circuito alternativo e popular de cultura do teatro amador colaborou para a formação de artistas, de linguagem teatral brasileira e de público. Contribuiu também para preparar profissionais que atuaram no rádio, no cinema e na televisão”, reflete Roseli.

 
PROCURAR POR
NESTA EDIÇÃO
O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]