A Congregação da Faculdade de Medicina da USP homenageou no dia 18 de setembro, uma quinta-feira, sete docentes demitidos ou aposentados durante o regime militar, concedendo o título de Professor Emérito a seis deles – Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Erney Felício Plessmann de Camargo, Michel Pinkus Rabinovitch, Thomas Maack, Luiz Rey

e Pedro Henrique Saldanha – e a Medalha Arnaldo Vieira de Carvalho ao já Professor Emérito Isaias Raw. Depois da solenidade no Salão Nobre presidida pelo diretor Marcos Boulos, com a presença do ministro de Direitos Humanos, Paulo Vanucci, representando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e do secretário da Casa Civil do estado, Aloísio Nunes Ferreira Filho, representando o governador José Serra, ficou no ar uma pergunta: afinal, nesse processo autoritário de desrespeito à

diversidade de pensamento e tentativa de anulação de lideranças e competências, quem sofreu mais? Certamente não foram os professores punidos, apesar das humilhações e dos exílios que se seguiram aos atos militares, pois vários deles disseram nos discursos de agradecimento que a situação ficou muito pior para os professores poupados pela ditadura, mas obrigados a continuar trabalhando num ambiente hostil e calados. 

“Creio que nós nos saímos até bastante bem. Aqueles que não se saíram bem foram os que ficaram aqui, sendo obrigados a enfrentar o que enfrentaram”, disse Luiz Hildebrando da Silva. No entanto, há ainda uma terceira possibilidade, a de que o desconforto, já não físico, mas moral, tenha atingido em grau superior aqueles que, dentro da própria Faculdade de Medicina ou em outras unidades da Universidade, fizeram o jogo da ditadura e “entregaram” colegas de docência e de pesquisa. Segundo Isaias Raw, houve quem apontasse o dedo para professores que depois foram demitidos ou torturados: “Enganaram os militares, que não entendiam nada do assunto”. Para outro homenageado, Pedro Henrique Saldanha, o AI-1 (Ato Institucional número um) simbolizou a vingança e o AI-5, a inveja.

Na saudação aos homenageados, Marcos Boulos, que também representava a reitora Suely Vilela, disse que a faculdade que dirige teve em passado recente uma das fases mais tristes de sua história, em que os direitos mais essenciais foram negados a toda uma geração. Citando o educador Paulo Freire, acrescentou que, diante das desastrosas conseqüências para a Universidade, ninguém pode ficar no discurso da acomodação ou da exaltação do silêncio. Não se pode omitir dos alunos que houve afastamento de mentes privilegiadas e que a perda dessas competências atrasou em muito o crescimento da faculdade. “Até hoje sentimos as conseqüências da arbitrariedade  praticada.” Referindo-se aos professores cassados que já morreram, disse que “não há como reparar o que foi feito, nem voltar no tempo, mas podemos mudar o presente e devolver à nossa instituição, ainda que simbolicamente, suas lideranças perdidas”. Sobre os homenageados presentes, afirmou que faria apenas um esboço da trajetória de cada um: “São trajetórias que, apesar de interrompidas, foram vitoriosas”. E fez.

Crédito foto: Cecília Bastos
Erney Plessman: emigração forçada para os Estados Unidos

Erney de Camargo formou-se médico em 1959 e iniciou carreira estudando a biologia do tripanossoma da doença de Chagas. Foi demitido da Faculdade de Medicina em 1964 por razões políticas, tendo que emigrar para os Estados Unidos. Vinte anos depois, voltou para a USP como professor titular do Departamento de Parasitologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB). É presidente da Sociedade Brasileira de Protozoologia e diretor da Fundação Zerbini.

Isaias Raw é presidente da Fundação Butantan e pesquisador da USP. Foi aposentado em 1969 com base no AI-5. Teve trajetória científica brilhante e continua a dirigir projetos de liderança social.

Luiz Hildebrando da Silva foi preso, processado, cassado e demitido em 1964, quando exercia o cargo de professor associado da Faculdade de Medicina da USP. No exílio, tornou-se professor e diretor de pesquisas no Instituto Pasteur de Paris. Retornou ao Instituto de Ciências Biomédicas da USP e até hoje mantém atividades de liderança científica em Rondônia.

Luiz Rey foi dispensado em 1969 das funções de docente da Faculdade de Medicina com base no AI-5. Foi consultor da Organização Mundial da Saúde (OMS) por mais de 20 anos e erradicou a esquistossomose da Tunísia. Atualmente é pesquisador emérito da Fundação Osvaldo Cruz.

Professor de Histologia e Embriologia da Faculdade de Medicina, Michel Rabinovitch foi nomeado professor de Biologia da Universidade de Brasília (UnB) em 1964, mas não chegou a tomar posse, pois foi cassado um dia antes, sendo obrigado a partir para os Estados Unidos. Em 1969 foi nomeado professor associado de Biologia Celular da Escola de Medicina da New York University. Desde 1997 está na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Crédito foto: Cecília Bastos
Luis Hildelbrando, com Aloísio Nunes Ferreira: “Nós nos saímos bem”

Pedro Saldanha, graduado em História Natural pela UERJ e doutor em Ciências Biológicas pela USP, foi demitido em 1964 com base no AI-5, processado e absolvido. Em 1966 foi contratado como professor assistente junto ao Departamento de Química Fisiológica e Física Química Aplicada na Faculdade de Medicina. Tornou-se professor adjunto do ICB em 1975 e professor  titular em 1983.

Thomas Maack foi preso em 1964, depois libertado, mas obrigado a deixar o Brasil. Em 1969 foi contratado professor pela Escola Médica da Universidade Cornell, em Nova York, onde mais tarde se tornou titular do Departamento de Fisiologia e Medicina. É membro da Associação Brasileira de Ciências desde 2000 e se dedica à pesquisa e formação de médicos.

Sentido – Reconhecimento de erro, pedido de desculpa, gesto de reconciliação, gesto de reparação? Quem homenageava e quem era homenageado não se decidia claramente sobre o sentido da solenidade no Salão Nobre da Faculdade de Medicina, ou não encontrava a palavra mais apropriada para expressá-lo. Se para o diretor Boulos o ato tinha caráter político, de mostrar aos jovens alunos, por meio do exemplo dos pesquisadores afastados, que a verdade sempre triunfará, para Isaias Raw serviu para tirar de sua cabeça a impressão de ter sido enjeitado por longos anos, antes mesmo do golpe de 64, por ter o hábito de, onde quer que esteja,  contrariar o status quo, conforme disse. Rabinovitch entendeu que se  tratou de resgate histórico, bonito, um reconhecimento de que alguma coisa errada havia ocorrido num tempo dominado por um grupo de direita, xenófobo e intolerante (“Colocaram lá embaixo um crucifixo para espantar os satanases que estavam ameaçando a faculdade, nós”), tempo que precisa ser exorcizado. O ministro Vanucci viu na homenagem um gesto de reconciliação, pois em direitos humanos, segundo disse, procura-se a transição do mundo de guerra para o mundo de paz. Aloísio Nunes Ferreira preferiu interpretar o dia como elogio aos professores “que não aderiram ao cardeal, não aderiram ao general e não aderiram ao capital”.

Crédito foto: Cecília Bastos
Michel Rabinovitch: resgate histórico dos “satanases”

Luiz Hildebrando da Silva contou uma história, não exatamente de conciliação: “Gostaria de lembrar algo que está em contradição com o convite enviado para esta solenidade, que era uma reparação aos sofrimentos e dificuldades que nós tínhamos passado, os oito demitidos pelo governo militar, (documento) assinado, aliás, pelo senhor governador do estado, Adhemar Pereira de Barros”. Continuou dizendo que queria homenagear Samuel Pessoa, “mestre dos demitidos”, que, ao saber da punição, jurou  nunca mais pôr os pés na faculdade. E cumpriu a promessa. Mais ainda: sempre que passava diante do prédio, punha a cabeça para fora do carro e gritava “p. q. p. à Faculdade de Medicina” (o orador não usou essa redução, pelo contrário, desdobrou a expressão com muita ênfase). Samuel Pessoa dizia que trabalhar com cobra (como trabalhava, no Instituto Butantan) não dava IPM (Inquérito Policial Militar), mas trabalhar com gente dava. Luiz Hildebrando concluiu a fala assim: “Esse era o fantasma de Samuel Pessoa. Nesta data solene que atravessamos hoje, espero que, como em Hamlet, ele possa descansar em paz e dizer: após esta noite poderei voltar”.

 

Malária e outros males

Pelo menos quatro dos professores homenageados na Faculdade de Medicina, no dia 18 de setembro, dirigiram suas pesquisas para doenças tropicais, principalmente a malária amazônica: Erney Plessmann de Camargo, Michel Rabinovitch, Luiz Hildebrando Pereira da Silva e Luiz Rey. O Centro de Pesquisa do Instituto Pasteur de Paris, do qual Luiz Hildebrando foi diretor, constituiu um centro de encontro e de trabalho desses e de outros cientistas brasileiros. Pesquisa avançada sobre malária e outras doenças parasitárias também se faz em Porto Velho (Rondônia), onde um grupo da USP liderado por Erney e com participação de Luiz Hildebrando trabalha há mais de dez anos.

Antes da homenagem na Medicina, Erney disse que o projeto vai muito bem, que está satisfeito com o apoio que vem recebendo de todo o país, mas não é possível prever quando a malária deixará de ser um grande problema de saúde. Disse que a  floresta amazônica é bem diferente da mata do Centro-Sul do país, onde o progresso concorre para acabar com o mosquito causador da doença. Na Amazônia é impossível exterminá-lo e o único recurso é tratar o paciente. Uma coisa preocupa Erney, mas não muito: o desmatamento na Amazônia. Ele disse que é grande a capacidade da floresta de se recompor, e a prova disso são grandes áreas que já foram desmatadas várias vezes por índios, mas anos depois não há mais sinais de devastação.

No discurso de agradecimento à homenagem da Congregação da Faculdade de Medicina, Luiz Rey lembrou que se formou médico em 1944, indo exercer funções na área da saúde pública. Atuou no estudo de epidemias parasitárias na Amazônia e outras partes do Brasil; foi assistente de Samuel Pessoa de 1951 a 1964, quando foi obrigado a sair, indo para o México como professor de Parasitologia e depois para a Tunísia a serviço da OMS.

Crédito foto: Cecília Bastos
Isaias Raw, com a medalha de Arnaldo: “Os militares não entendiam nada”

“Pecados” de Raw – O professor Isaias Raw confessou (em entrevista, depois no discurso) que na vida acadêmica cometeu dois “pecados” mortais, dando a entender que eles concorreram para o seu afastamento forçado do país na era militar. O primeiro foi ousar  dizer que se o Brasil quisesse crescer deveria primeiro reformular o ensino de ciências, a partir da escola média. A fim de dar o exemplo de um curso experimental em ciências, ocupou com o seu departamento a metade do quarto andar do prédio da Medicina e parte da garagem, e ali estruturou uma editora, que veio a ser a Editora da USP (Edusp), que publicaria os livros apropriados para o novo ensino das ciências.

O segundo “pecado” mortal teria sido estender a reforma ao ensino da medicina e até a estrutura da Universidade. Segundo o diretor do Instituto  Butantan, a educação não vai bem no Brasil porque se cobra informação em vez de capacidade de pensar. Além disso, há preocupação demais com a formação de profissionais para áreas em que não há nem haverá empregos, Direito, por exemplo, enquanto falta gente para empregos que exigem mãos, braços e tecnologias.

Isaias Raw assegura que a USP passou por uma refundação no momento em que o seu curso experimental de química foi transferido para  o Instituto de Química, na Cidade Universitária. Até lá só haveria um condomínio formado pelas três unidades mais antigas: Direito, Medicina e Politécnica. No entanto, com o advento dos atos institucionais e a cassação de professores, ele inclusive, venceu a inveja daqueles que não suportam ver coisa melhor que a deles, e o seu esforço foi liquidado, enquanto ele ia formar médicos em Nova York. Raw disse ainda que, antes disso, houve na Medicina uma tentativa de levar para o quinto andar do seu prédio a então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FLCH). Num fim de semana, os alunos derrubaram os andaimes, puseram tudo abaixo e assim acabou a história.

Isaias Raw está convencido de que existe no Brasil um pot-pourri de universidades particulares que nada representam, enquanto as públicas estão fracionadas, sem massa crítica. Mesmo na USP, segundo ele, há campi no interior sem diálogo entre ciências, departamentos e laboratórios. Ribeirão Preto e São Carlos seriam as honrosas exceções.

 
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