O Grupo de Pesquisa de Jornalismo Popular e Alternativo (Alterjor), criado recentemente no Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, foi fruto da percepção de professores e pesquisadores da unidade da necessidade de se direcionar parte das pesquisas no campo do jornalismo para

experiências alternativas de comunicação. Também foi fruto da percepção de que o jornalismo cada vez mais se afasta dos princípios no qual foi gestado, isto é, os de fomentar o debate e a esfera pública. Em outras palavras, a pressão do mercado transfigurou o interesse público em interesse comercial.

Octavio Ianni, na obra Enigmas da modernidade mundo, define a mídia como o novo “príncipe” da sociedade contemporânea, o “príncipe eletrônico”. Contrariamente às experiências dos outros príncipes – o condottiere, de Maquiavel, e o partido político, o príncipe moderno, de Gramsci –, o “príncipe eletrônico” de Ianni constrói virtualmente a fortuna e a virtu, e transforma, silenciosamente, sociedade em mercado, ideologia em mercadoria e cidadania em consumo.


Percebemos, assim, a transposição de categorias valorativas da esfera econômico-privada para a esfera política-pública. Em outras palavras, a colonização da segunda pela primeira. Em nome da eficiência econômica, ocorrem verdadeiras inversões dos valores éticos liberais: princípios políticos do liberalismo clássico são relativizados; o próprio discurso midiático de crítica moralista da esfera política, como se esta fosse o único locus das práticas aéticas, e a elevação dos interesses das grandes corporações econômicas como interesse público.

A destruição de qualquer perspectiva de transcendência pelas vias políticas por meio da presença maciça de discursos céticos (e até cínicos) tem a função ideológica de apresentar como única alternativa de construção e exercício da cidadania a prática do consumo. Inserir-se no mercado de consumo é participar da “esfera pública” mercantilizada. Com isso, há uma aproximação do discurso publicitário e do discurso jornalístico, evanescendo as fronteiras.

Estrutura mercantil – Edward Hermann e Noam Chomsky, no famoso estudo intitulado Manufacturing consent, definem os meios de comunicação de massa como um “modelo de propaganda” que, nas sociedades de mercado, constroem consensos não por meio de uma intervenção estatal (que é mais visível), mas por mecanismos de filtragem das informações chamados pelos dois autores de “filtros de notícias”. Hermann e Chomsky listam os seguintes filtros: 1) porte e propriedade dos meios de comunicação; 2) propaganda como principal fonte dos recursos dos meios; 3) dependência dos meios das informações fornecidas por fontes oficiais e vinculadas ao poder; 4) bateria de reações negativas como forma de disciplinar a mídia e 5) o “anticomunismo” (filtro ideológico) como religião nacional e mecanismo de controle.

Apesar de o estudo de Hermann e Chomsky ter sido realizado junto aos meios de comunicação estadunidenses, alguns aspectos podem ser generalizados. Um deles é a tendência ao monopólio da indústria da mídia, que hoje atinge patamares globais – seis grandes corporações multimídias controlam a maior parte da produção e do fluxo de bens simbólicos, incluindo produção de notícias, produtos de entretenimento (filmes, CDs etc.) e a internet. As seis grandes corporações – AOL/Time/Warner; News Corporation; Disney; Bertlessman; Viacom; Vivendi-Universal – articulam-se com cerca de 70 impérios regionais (entre os quais se situa a Globo, o Grupo Cisneros, da Venezuela, e a Televisa, do México) e, abaixo destes, 7 mil grupos nacionais. Esse formato piramidal é resultante da transposição da produção de informações para a esfera mercantil, o que é visível quando se observa os objetivos expressos no site do Grupo Vivendi: “O Grupo Vivendi-Universal quer tornar-se a companhia preferida dos consumidores em matéria de criação e difusão de informações, entretenimentos e serviços personalizados em todos os suportes, em todas as telas, a todo momento e em todo lugar, graças a todas as tecnologias”.

O monopólio e a mercantilização configuram os aspectos estruturais que transformam o jornalismo hegemônico de uma atividade de caráter público em uma atividade mercantil. Essa estrutura de produção contamina as decisões na produção jornalística, igualando pautas, enfoques e reduzindo o espectro de fontes consultadas. O jornalista é instado a cumprir rotinas produtivas estabelecidas a partir de critérios comerciais. O grau de autonomia intelectual do jornalista é drasticamente reduzido, senão destruído por completo. Há um espetáculo já montado pelas grandes corporações e o papel do jornalista nesse show é secundário.

Colocado nessa situação, muitos profissionais da comunicação optam em utilizar sua função nesta estrutura de poder para auferir vantagens.  Num artigo chamado “Violência midiática: a crise de uma tradição civilizatória”, afirmamos que “a desregulamentação e privatização do conjunto da economia nacional, feitas com mais intensidade na última década do século passado, geraram não apenas um debate ideológico em que os grupos midiáticos claramente apoiaram o lado conservador, mas também uma participação direta dessas empresas no próprio negócio neoliberal. Exemplos: a participação ostensiva da Globo no processo de privatização da telefonia, em associação com grandes grupos privados nacionais e transnacionais; a vinculação negocista de setores da mídia com o Grupo Opportunity, um dos principais players da privatização da telefonia etc.”

Mais adiante, afirmamos que, “recentemente, têm surgido vários sites e publicações destinadas a cobrir os bastidores da mídia. A polêmica entre profissionais do jornalismo é expressa nesses espaços (grosso modo, lidos quase que exclusivamente pela corporação dos profissionais de comunicação), onde a troca de acusações resvala quase sempre pela denúncia de interesses particulares. As acusações sempre tangenciam eventuais interesses particulares – como a participação em negócios privados que envolvem lobbies no governo federal e a defesa de interesses de pessoas com relações promíscuas com o estado”.

Colocado entre a perspectiva cética e/ou cínica e a privatização da função pública que se manifesta pelo uso do poder da estrutura midiática para auferir vantagens, o jornalismo transforma o seu papel de fomentador da esfera pública em mero instrumento de legitimação de posturas anti-éticas.  A autonomia jornalística, condição necessária para que a atividade tenha plena liberdade de informar e criticar sem intervenção dos poderes instituídos, transforma-se em uma postura autárquica, onde a estrutura e os seus integrantes fecham-se de tal forma que se consideram acima da sociedade e com plenos direitos de usar os privilégios instituídos para atuar em função dos seus interesses privados.

Chamaremos esse conjunto de práticas que se coadunam com a estrutura dominante de práxis jornalística hegemônica, cuja perspectiva é justamente consolidar a transfiguração da sociedade em mercado, da cidadania em consumo e da ideologia em mercadoria. Não há vida, portanto, fora da sociedade de consumo.

Práxis alternativa – As nações da América Latina passam por um momento histórico particular, que é a consolidação de regimes democráticos, após várias delas terem participado de interrupções violentas das normalidades institucionais. Esse momento de consolidação da democracia cria espaços para a manifestação de novos atores sociais, que reivindicam uma democracia para além da normalidade institucional, que vá também para a construção efetiva de igualdade de oportunidades. Há uma pressão crescente pela reformulação dos contratos sociais estabelecidos nessas sociedades e é sintomático que vários presidentes eleitos venham de camadas mais pobres dessas sociedades e também expressem valores culturais e identitários diferentes dos hegemônicos.

Assim, percebe-se um movimento contrário à tendência global de mercantilização total da esfera pública e a plena supremacia dos valores da esfera econômico-privada.  Esse movimento não se dá pela confrontação de projetos político-ideológicos solidificados, como no período da Guerra Fria (capitalismo versus comunismo), mas pela pressão de grandes massas excluídas pela sua plena inclusão. É o rompimento das amarras de Tântalo, figura da mitologia grega que, por desobediência aos deuses do Olimpo, foi condenado a ficar amarrado em um lago onde só poderia ver as frutas e a água sem, entretanto, poder usufruí-las.

A práxis jornalística alternativa tem como perspectiva a reconstrução da esfera pública a partir dos valores da igualdade de oportunidades, da eqüidade, da democracia radical e da subordinação dos interesses econômico-privados aos interesses coletivos. Não se trata apenas e tão-somente de defesa dos valores da democracia institucional, mas de uma atitude radicalmente democrática, que passa pela abertura dos espaços midiáticos a todos os segmentos sociais, rompendo com o cerco da agenda de fontes oficiais; pela plena referência na produção das informações no sujeito-cidadão e não no sujeito-consumidor.

Para tanto, a práxis jornalística alternativa é uma confrontação com a atual estrutura midiática monopolizada e que coloca o jornalismo como mais uma atividade mercantil. Os projetos alternativos de jornalismo podem configurar-se como elementos de construção de uma esfera pública alternativa, que esteja antenada com as demandas da maioria da sociedade.

Esse objetivo central norteará as pesquisas, estudos e eventos do Alterjor, que pretende ser uma contribuição do curso de Jornalismo da ECA para que os futuros profissionais não só tenham competência para atuar no mercado de trabalho, mas também um grau de reflexão suficiente para atuar no sentido da transformação.

Afinal, como afirmou o poeta Ferreira Gullar: “A história humana não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas; nas ruas de subúrbio, nas casas de jogo, nos prostíbulos, nos colégios, nas ruínas, nos namoros de esquina. Disso quis eu fazer a minha poesia, dessa vida obscura e injustiçada”.

Dennis de Oliveira são professores da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 
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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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