A estranha relação entre o narrador-personagem e o leitor em Memórias póstumas de Brás Cubas, a integração de formas literárias como a memória ficcional e a crônica nos romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires, a tragédia de Otelo que marca Dom Casmurro. São essas questões, entre tantas outras, que tornam a obra de Machado de Assis

Crédito foto: Francisco Emolo

(1839-1908) uma incógnita infinita. A cada leitura e releitura há sempre uma nova descoberta e uma nova reflexão.

É a aventura de conhecer Machado de Assis que a Editora da USP (Edusp) e a Nankin Editorial estão propiciando com a publicação de uma série de livros com estudos, pesquisas e ensaios sobre o escritor. Desde o início deste ano em que se lembra o centenário da morte do escritor, já foram publicados cinco livros: Narradores de Machado de Assis, de Gabriela Kvacek Betella, As sugestões do conselheiro, de Gilberto Pinheiro Passos, Machado de Assis: o romance com pessoas, de José Luiz Passos, Recortes machadianos, de Ana Salles Mariano e Maria Rosa Duarte de Oliveira, e Um defunto estrambótico, de Valentim Facioli. “Até o final do ano, pretendemos completar a série com mais cinco livros, alguns deles reeditados”, observa o professor Plinio Martins Filho, diretor-presidente da Edusp. “Independente de qualquer

homenagem, é sempre tempo de valorizar o trabalho de Machado de Assis.”

Defunto estrambótico – Memórias póstumas de Brás Cubas é uma das obras que mais têm chamado a atenção de pesquisadores de diversos países. No estudo Um defunto estrambótico, Valentim Facioli faz uma abordagem curiosa. Mostra como Machado opera uma relação estranha entre seu narrador-personagem e o leitor. Trata-se de uma brincadeira, um capricho, um desrespeito ou uma fraude? “A primeira vez que topei com Brás Cubas, esse estrambótico e escandaloso defunto-narrador-personagem, foi mesmo uma topada”, conta Facioli. “Pensava que ia ler um movimentado romance histórico e de aventuras sobre o fundador de Santos, no litoral de São Paulo, nos meados do século 16.”

Facioli conta que esperava uma extraordinária aventura, mas, na época, tinha 12 ou 13 anos, levou um susto com a dedicatória ao verme. “Ainda assim continuei e insisti, esperando a aventura que imaginei chegasse logo, mas não chegava.” Adulto, o pesquisador voltou a ler e reler o livro. E percebeu que “essa é uma obra que nunca envelhece, oferecendo sentidos novos”. Na introdução do estudo de Memórias póstumas de Brás Cubas, Facioli orienta: “A leitura atenta e conseqüente de Machado de Assis é um dever de cultura, uma obrigação para qualquer brasileiro que se queira de fato letrado, pois o escritor deixou um patrimônio civilizador e crítico dessa mesma civilização – com sua necessária carga de negatividade –, frente ao qual nenhum de nós pode se dar ao luxo de ficar indiferente ou simplesmente de o ignorar.”


As sugestões do conselheiro, de Gilberto Pinheiro Passos, 152 páginas, R$ 20,00; Machado de Assis: o romance com pessoas, de José Luiz Passos, 296 páginas, R$ 35,00

Realidade brasileira – Narradores de Machado de Assis, de Gabriela Kvacek Betella, traça uma análise dos pontos de vista dos narradores das crônicas machadianas a partir de 1880, identificando-os com os narradores de seus romances memorialistas em primeira pessoa, sem esquecer a importância do narrador em terceira pessoa. “Machado encontrou uma forma muito lógica para expor uma visão madura da realidade brasileira de seu tempo, perspectiva que, em muitos aspectos, permanece válida até os dias de hoje, principalmente quando se acentua a sua noção de totalidade”, esclarece Gabriela.

Em As sugestões do conselheiro (2a edição), Gilberto Pinheiro Passos estuda o conjunto de elementos de origem francesa nas duas obras de Machado de Assis em que o conselheiro Aires é o personagem. O interesse do autor está na transformação operada pelo texto novo das inúmeras referências à literatura francesa, e também alemã e italiana, que ocorrem em menor escala, a que recorre o narrador machadiano para tentar dar conta das complexidades e dos problemas vividos pelos personagens. “Não há dúvida de que Machado de Assis, autor dos mais conscientes do uso das ferramentas de seu ofício, via tais intromissões como algo bem maior do que mostra de erudição pitoresca”, observa Passos. “Ainda que assim fosse, elas já teriam uma significação a ser elucidada. Na verdade, suas citações e glosas balizam de maneira orgânica as narrativas.”

Narradores maduros – No livro Machado de Assis: o romance com pessoas, José Luiz Passos, professor do Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Berkeley, na Califórnia, apresenta um ensaio sobre os protagonistas de Machado de Assis. Passos questiona a tendência para o disfarce das heroínas dos primeiros romances de Machado de Assis. Também pesquisa o fascínio da tragédia de Otelo, que marcou a concepção de Dom Casmurro. “O convívio continuado com a imaginação de um leitor cuja visão do humano é freqüentemente considerada como infernal e lancinante despertou meu interesse em entender como os seus personagens se enfrentam à própria imagem que fazem do valor do indivíduo e, mais especificamente, da pessoa moral”, diz Passos.

Organizado pelas professoras da PUC de São Paulo Ana Salles Mariano e Maria Rosa Duarte de Oliveira, o livro Recortes machadianos traz as contribuições de diferentes pesquisadores sobre a obra machadiana. São estudiosos da PUC e da Unesp que as autoras apresentam como leitores especializados. A seleção dos artigos norteou-se pela perspectiva da leitura, entendida como a reflexão crítica sobre a instância do leitor no universo de Machado de Assis.

Um defunto estrambótico, de Valentim Facioli, 184 páginas, R$ 20,00; Narradores de Machado de Assis, de Gabriela Kvacek Betella, 240 páginas, R$ 28,00; Recortes machadianos, de Ana Salles Mariano e Maria Rosa Duarte de Oliveira (organizadoras), 248 páginas, R$ 30,00.

 

Legítimo kohinoor


O Otelo brasileiro de Machado de Assis, de Helen Caldwell, Ateliê Editorial, tradução de Fábio Fonseca de Melo, 226 páginas, R$ 42,00

Kohinoor é um diamante indiano, famoso por seu tamanho, tomado pela Coroa Britânica em 1849, por ocasião da anexação da península do Punjab. É a essa jóia que a estudiosa norte-americana Helen Caldwell compara Machado de Assis no estudo The brazilian Othello of Machado de Assis – A study of Dom Casmurro. Um livro que traz uma análise inusitada, apresentada na University of Califórnia Press em 1960, tornando-se uma referência em análises de expoentes da crítica machadiana. Esse ensaio alarga a dimensão do elemento shakespeariano na obra de Machado de Assis e, o mais curioso, serviu de referência para grandes críticos como Antonio Candido, Silviano Santiago, John Gledson, Roberto Schwarz e Alfredo Bosi.

Agora, o livro está sendo apresentado pela Ateliê Editorial em tradução de Fábio Fonseca de Melo. O Otelo brasileiro de Machado de Assis agora permite aos estudantes e estudiosos acompanharem as questões polêmicas de Dom Casmurro. Helen Caldwell defende Capitu como inocente do adultério de que Bento lhe acusa, mudando o ponto de vista tradicional do romance. “A iniciativa desta tradução deve-se ao professor Joaquim Alves de Aguiar, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP”, esclarece Melo.

 
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