1968 foi um ano em que se vivia na consciência do perigo e de expansão dos limites. Não sei exatamente em que momento percebemos que se estava tensionando muito e a situação estava virando contra a gente. As palavras de Tânia Rivitti, coordenadora de cursos do Centro Universitário Maria Antonia (Ceuma) da USP,

Crédito foto: Osvaldo José Santos/Aquivo Jornal da USP

ajudam a compor o painel de um ano inesgotável – “o ano que não terminou”, como definiu o jornalista Zuenir Ventura – e que continua suscitando discussões pelos seus acontecimentos e repercussões mundo afora. Tânia, a USP e a rua Maria Antonia, na Vila Buarque, em São Paulo, estão ligadas em várias dimensões por conexões entre passado e presente. Em 1968, aos 18 anos, ela era aluna de História na Universidade e participava ativamente de uma rotina de cursos, passeatas e manifestações que não raro tinham ponto de chegada ou partida naquela rua. Ali estava o prédio que abrigava a então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, desde a metade do ano ocupada por estudantes que viviam praticamente em assembléia permanente.

Nos dias 2 e 3 de outubro, um violento confronto envolveu grupos abrigados ali e no Instituto Mackenzie, na calçada em frente. A “batalha da Maria Antonia” deixou um morto e dezenas de feridos de lado a lado. Também acelerou a retirada dos cursos da USP do centro da cidade e sua transferência para o campus do Butantã, que já estava em

A rua Maria Antonia em 1968, palco da histórica batalha entre estudantes da USP e do Mackenzie: um ano inesgotável

andamento. Tânia Rivitti é uma das organizadoras da programação do evento “1968 Vou Ver”, que o Ceuma – órgão da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP – promove a partir desta segunda-feira, dia 6. Mesas de debates, mostra de filmes, lançamento de livros e uma exposição fotográfica com imagens inéditas integram o encontro (veja abaixo a programação completa do evento).

Enquanto muitas programações têm debatido 1968 desde maio, o mês que marcou há 40 anos as primeiras manifestações na França, não por acaso o Ceuma escolheu outubro, quando ocorreram o confronto e o fechamento da Faculdade de Filosofia. Entretanto, a organização procurou não cair nas armadilhas do saudosismo – de um lado, lamentando o que seria o fim da efervescência e a posterior vitória da “acomodação”; de outro, ostentando um certo “orgulho do negativo”, como quem carregasse uma espécie de troféu por ter enfrentado o que seriam as piores circunstâncias políticas da história do país. “Vamos olhar para o que 1968 representa e a memória disso, mas também ligar a discussão com o contemporâneo, para não ficarmos num mito saudosista. Queremos que as propostas que o Centro Universitário Maria Antonia faz, já que está ligado à Universidade e tem preocupação com o ensino, ressoem também para os jovens da atualidade, discutindo com eles a herança de 1968 e as questões que fazem sentido hoje”, diz Tânia.

Essa preocupação está manifestada nas mesas de debate. À exceção da primeira – “Nós vivemos” –, as demais terão ao menos um participante que não esteve diretamente envolvido nos acontecimentos. Serão pessoas que já têm um distanciamento de 1968 e que se debruçaram sobre a época como estudiosos, privilegiando uma das faces da Universidade: a pesquisa. “As análises envelhecem. Isso não é estranho à academia. É parte da reflexão reavaliar de tempos em tempos”, diz João Carlos de Carvalho, assistente de direção do Ceuma. Um desses pesquisadores é Samir Pérez Mortada, que apresentou em 2002, no Instituto de Psicologia da USP, a dissertação “Memória e política: um estudo de psicologia social a partir do depoimento de militantes estudantis”.

Crédito foto: Hiroto Yoshioka
Imagem inédita da época, mostrada no evento: Maria Antonia em chamas

Também haverá representação do Mackenzie, para que se discuta a idéia recorrente de que o confronto de outubro opôs uspianos e mackenzistas como sinônimos de esquerdistas e direitistas. “Não acho justo e razoável afirmar que foi um confronto Mackenzie contra USP. Dizer que um era de direita e outro de esquerda é simplificar”, considera o professor Marcel Mendes, aluno da universidade presbiteriana em 1968 e atual diretor de sua Escola de Engenharia (leia texto abaixo).

Pluralidade – Os prédios da Maria Antonia atraíam na época não apenas alunos da USP, mas estudantes de outras universidades, militantes políticos e pessoas que para lá iam participar do que estava ocorrendo. “Aqui era o alvo maior de todo o regime militar de São Paulo”, considera Tânia Rivitti. O professor Franklin Leopoldo e Silva, do Departamento de Filosofia da hoje chamada Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que havia ingressado como estudante em 1967, também estava no cenário dos acontecimentos. “Minha participação foi quase que de espectador. Eu não pertencia a nenhum partido ou tendência, e constituía aquilo que na época se chamava a base”, diz. “Aos poucos, pela própria experiência do que ia acontecendo, eu e outros conhecíamos as coisas e íamos apreendendo o significado político daquilo.”

Para o professor, 1968 “teve uma riqueza de significados e uma pluralidade que nada do que veio depois e tentou se legitimar a partir dele na verdade herdou e conservou”. “Não há ninguém nem nenhum grupo que possa se dizer com legitimidade pleno herdeiro de 1968. Pode haver uma inspiração, uma ligação, mas junto com isso há sempre também uma distorção”, diz. A pluralidade marcou ainda a falta de um projeto político definido – um “programa único de 1968”. “Não era possível agregar todas aquelas cabeças e experiências e fazer daquilo uma unidade”, considera. “Eu vejo nisso uma riqueza que depois se dispersou.”

Crédito foto: Cecília Bastos
O professor Marcel Mendes, do Mackenzie: uspianos serviram os militares

Na USP, a batalha da Maria Antonia levou à mudança definitiva dos cursos para a Cidade Universitária, o que desagregou não apenas o núcleo do movimento estudantil, mas um pólo que reunia outros movimentos políticos e sociais que combatiam o governo militar. O episódio foi um dos pretextos para o endurecimento do regime, que em dezembro promulgou o Ato Institucional número 5, que restringiu as liberdades civis.

Em outros países que viveram o clima de protestos e manifestações da época, 1968 também não terminou bem. “De fato, aconteceu tudo o que podia acontecer de negativo do ponto de vista político em várias partes do mundo”, diz Leopoldo e Silva. “Agora, o que tem que ser visto de outro lado é a resistência proporcional ao ataque. Se fizermos o balanço objetivo, realmente não se conseguiu o que foi pretendido, mas houve a experiência de resistir a partir da consciência de que se defendia uma causa, e uma causa que não era pequena. Havia um confronto, e as forças que venceram tiveram a quem derrotar. Hoje não há a quem derrotar, e isso faz diferença.”

O evento “1968 Vou Ver” será realizado no Centro Universitário Maria Antonia (rua Maria Antonia, 294, Vila Buarque, São Paulo). Mais informações podem ser obtidas pelo telefone 3255-7182, ramal 38, e no endereço eletrônico www.usp.br/mariantonia. A entrada é gratuita, com distribuição de senhas uma hora antes do início dos debates e exibições dos filmes. A exposição fotográfica permanece até o dia 18 de janeiro de 2009, de terça a sexta-feira, das 12h às 21h, sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h. Entrada também gratuita.

 

 “Havia esquerdistas no Mackenzie”

A “batalha da Maria Antonia” é muitas vezes lembrada como um embate em que, de um lado, só havia esquerdistas – a USP – e do outro, apenas direitistas – o Mackenzie. Essa imagem, entretanto, não corresponde à realidade. “O Mackenzie não era um lugar inteiramente dominado pela direita. Pelo contrário, havia um movimento forte de esquerda em vários cursos e às vezes as entidades estudantis estavam em mãos do pessoal de esquerda”, diz o professor Franklin Leopoldo e Silva, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que vai participar de uma das mesas de debate do evento. “Havia uma tensão bastante grande e é claro que as pessoas que faziam esse tipo de movimento lá corriam um risco muito maior.”

O docente lembra que a origem dos grupos paramilitares que se infiltraram no movimento estudantil não era a universidade presbiteriana, mas locais como a Faculdade de Direito da USP, por exemplo. “Eles se estabeleceram no Mackenzie porque, do ponto de vista dos interesses que governavam a direção, pendia-se para a direita, o status quo e o apoio à ditadura”, considera. A então reitora do Mackenzie, Esther de Figueiredo Ferraz, recorde-se, viria a ser ministra da Educação entre 1982 e 1985, no último governo da ditadura.

“Quando houve o confronto, o Mackenzie era realmente uma base de grupos paramilitares que acabaram se estabelecendo ali com apoio de uma parte dos alunos, não a totalidade. Houve uma organização, não resta dúvida, e evidentemente supõe-se que com o apoio da direção do Mackenzie. Essas coisas não podiam acontecer dentro da escola sem que a direção ao menos soubesse”, diz Leopoldo e Silva, salientando ainda a omissão das autoridades de segurança pública.

Essas simpatias não eram desconhecidas de quem então circulava pela instituição, como Marcel Mendes, estudante na época e hoje diretor da Escola de Engenharia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Os integrantes da direção eram ligados ao governo do estado e ao regime militar. O Mackenzie tinha posições políticas e ideológicas bastante conservadoras e, se a direção fosse se definir por um lado, não seria à esquerda, mas à direita”, diz o professor.

Mendes lembra, entretanto, que não havia um confronto institucional entre as universidades, mas embates de grupos que tinham posições ideológicas opostas. “Naquele momento, o prédio da USP na Maria Antonia sediava segmentos do movimento estudantil que tinham até seu lado clandestino e armado”, afirma, e que por isso despertavam o antagonismo mais radical dos adeptos do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e outros grupos de direita. “Lembro claramente o José Dirceu (então estudante de Direito da PUC de São Paulo e presidente da União Estadual dos Estudantes) sacudindo o portão e gritando”, conta. Havia inclusive estudantes do Mackenzie acampados na Faculdade de Filosofia, que eram vistos como “traidores” pelos direitistas.

Do ponto de vista institucional, aliás, vale lembrar que professores da USP foram cassados em 1969 com anuência da direção da própria Universidade. Houve representantes uspianos que serviram no primeiro escalão dos governos militares muito antes de Esther Ferraz – como Luís Antônio da Gama e Silva, ex-reitor que foi ministro da Educação e em 1968 ocupava o Ministério da Justiça, no qual foi sucedido por Alfredo Buzaid, ex-vice-reitor e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP.

O professor Mendes cita nomes como Rubens Paiva e Fernando Gasparian, que nos anos 50 presidiram o Diretório Acadêmico da Escola de Engenharia (Gasparian foi também presidente da União Estadual dos Estudantes) e tiveram no Mackenzie sua formação política e uma ampla atuação política de esquerda, “sem nunca ser cerceados em seu espaço de liderança”. Em 1964, o Diretório Central dos Estudantes tinha uma diretoria ligada à esquerda, destituída pouco depois do golpe. “Em 1968, os Diretórios Acadêmicos da Engenharia e da Arquitetura eram de direita, mas o da Faculdade de Direito era de esquerda”, cita. De resto, lembra, havia infiltração do CCC e de outros grupos paramilitares em muitas universidades, como na própria USP e na PUC.

Arsenal – Dadas as simpatias da direção do Mackenzie pelo governo militar, esses estudantes e infiltrados circulavam por ali com mais facilidade e desenvoltura. A circunstância facilitou a entrada de matérias-primas próprias para a fabricação de coquetéis molotov e outros artefatos utilizados como armas no confronto dos dias 2 e 3 de outubro de 1968. “Um pequeno arsenal foi preparado nos laboratórios da Escola de Engenharia e na Escola Técnica para ser utilizado no dia 3, que já amanheceu em pé de guerra”, diz Marcel Mendes. As janelas e platibandas dos prédios mackenzistas, mais altos e por isso em posição estratégica superior à Faculdade de Filosofia, se transformaram em plataformas de lançamento até de cilindros de concreto usados em testes de engenharia. Num dado momento, grupos do Mackenzie conseguiram entrar num prédio em construção ao lado do edifício da USP, e dali telhas, vidros e até louças sanitárias se transformaram em armas arremessadas nos inimigos.

Na rua, valia tudo nos embates corpo a corpo: paus, pedras, pernas de mesas e cadeiras. No final da manhã do dia 3, o estudante secundarista José Guimarães morreu ao ser atingido por um tiro cuja origem nunca foi comprovada. Centenas de homens da Força Pública, a pedido da reitora Esther, protegiam o campus do Mackenzie por dentro, mas não intervinham na batalha. Não apenas eles tinham armas de fogo, mas também os paramilitares e, supõe-se, alguns militantes da esquerda. O confronto terminou com a virtual destruição do prédio da Faculdade de Filosofia, atingido por focos de incêndio.

O prédio, que desde 1949 abrigava a unidade, foi destinado a outros usos pelo governo do estado. Em 1993 o edifício principal foi devolvido à USP, que o reabriu com o nome de Centro Universitário Maria Antonia, dedicado à discussão e novas experiências em cultura, arte e direitos humanos.

Leia matéria sobre a “batalha da Maria Antonia” publicada na edição 833 do Jornal da USP (disponível aqui).

 

Reflexões sobre os conflitos

Esta é a programação completa do evento “1968 Vou Ver”, que o Centro Universitário Maria Antonia promove nesta semana.

Dia 6, segunda-feira

* 19h. Abertura. Debate com Paulo Vannuchi (ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos), Ruy Alberto Corrêa Altafim (pró-reitor de Cultura e Extensão Universitária da USP), Rosa Iavelberg (diretora do Centro Universitário Maria Antonia), José Gregori (presidente da Comissão Municipal de Direitos Humanos) e Alípio Freire (jornalista).

* Abertura da exposição de fotografias. Serão exibidas imagens emblemáticas, várias delas inéditas e coloridas, feitas por Hiroto Yoshioka, dos conflitos que envolveram estudantes e a polícia nas imediações da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, além de registros de marcantes montagens de peças teatrais como Os fuzis da senhora Carrar e 1ª Feira Paulista de Opinião. Curadoria de Carolina Soares.

Dia 7, terça-feira

* Mostra de filmes

12h. Vale a pena sonhar (2003, 74’), de Sheila Grisotti e Rudi Böhm.

14h. Caparaó (2006, 77’), de Flávio Frederico; A experiência cruspiana (1986, 26’), de Nilson Couto e Ricardo Wagner.

16h. Um por cento (1967, 25’); Universidade em crise (1966, 25’); A humilhação e a dor (1986, 30’), de Renato Tapajós.

18h. Jango (1984, 117’), de Silvio Tendler.

* 20h. Mesa de debates “Nós vivemos”. Depoimentos de participantes dos embates políticos da época e na Universidade, com Franklin Leopoldo e Silva, Luiz Carlos de Menezes, Lauro Ferraz e Rose Nogueira.

Dia 8, quarta-feira

* Mostra de filmes

12h. Memória para uso diário (2007, 94’), de Beth Formaggini.

14h. Você também pode dar um presunto legal (1971, 39’), de Sérgio Muniz; Vala comum (1994, 30’), de João Godoy.

16h. Que bom te ver viva (1989, 100’), de Lucia Murat.

18h. O Velho – A história de Luiz Carlos Prestes (1997, 105’), de Toni Ventura.

* 18h30. Conversa com autores e sessão de autógrafos. Estarão presentes autores de títulos que tratam dos principais acontecimentos político-culturais da época e suas repercussões na atualidade. Mediação de Tânia Rivitti.

* 20h. Mesa de debates “Nós escrevemos”. As pesquisas e reflexões sobre o período, elaborados posteriormente por historiadores, sociólogos e cientistas políticos. Com Irene de Arruda Ribeiro Cardoso, Marcelo Siqueira Ridenti e Samir Pérez Mortada.

Dia 9, quinta-feira

* Mostra de filmes

12h. O Velho – A história de Luiz Carlos Prestes.

14h. Jango.

16h. Caparaó; A experiência cruspiana.

18h. Você também pode dar um presunto legal; Vale a pena sonhar.

* 20h. Mesa de debates “Nós lemos”. O quadro das idéias, autores e questões presentes nos debates da época. Com Alípio Freire, Walnice Nogueira Galvão, Vladimir Safatle e Paulo Eduardo Arantes.

Dia 10, sexta-feira

* Mostra de filmes

12h. Um por cento; Universidade em crise; A humilhação e a dor.

14h. Hércules 56 (2007, 94’), de Silvio Da-Rin.

16h. Vlado – 30 anos depois (2005, 85’), de João Batista de Andrade; 15 filhos (1996, 20’), de Maria Oliveira e Marta Nehring.

18h. Em nome da segurança nacional (1984, 48’), de Renato Tapajós; Sonia morta e viva, a trajetória de uma geração (1985, 50’), de Sérgio Waismann.

* 20h. Mesa de debates “Nós fizemos arte”. O panorama do agitado ambiente cultural. Com Nelson Aguilar, Renato Tapajós, Julio Medaglia e Silvana Garcia.

 
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