O Cemitério da Consolação, em São Paulo, completa 150 anos, o Dia de Finados não está longe e um livrinho sobre lições que se pode tirar de visitas a cemitérios acaba de ser publicado com patrocínio da Prefeitura Municipal pelo professor José de Souza Martins, sociólogo da USP que há quase 30 anos costuma levar seus alunos para conhecer

Crédito foto: José de Souza Martins

túmulos, monumentos e outras formas de arte mortuária. Além disso, especializou-se em fotografia e documenta as visitas com imagens a que os críticos certamente não negam valor. “Gosto de percorrer o Cemitério da Consolação como um dos lugares em que ainda vivem, de maneira fortemente simbólica, muitos personagens da história paulistana, vários dos quais são também personagens de episódios marcantes e decisivos da história brasileira”, diz Martins, que em suas pesquisas inclui visitas a outros cemitérios públicos da cidade, como os do Araçá e São Paulo, todos “amplas salas de

Escultura de Francisco Leopoldo e Silva no túmulo da família de Roberto Simonsen: ideólogo do nacionaldesenvolvimentismo

aula em que se ensina e aprende”.

Na entrevista a seguir, Martins fala sobre suas pesquisas e o livreto recém-lançado, História e arte no Cemitério da Consolação. Publicado pela Prefeitura de São Paulo em comemoração dos 150 anos daquele cemitério – inaugurado em 15 de agosto de 1858 –, o livreto está disponível no endereço www.prefeitura.sp.gov.br. Também é distribuído no Cemitério da Consolação.

Jornal da USP – Nas suas visitas didáticas ao Cemitério da Consolação, o que o senhor busca?

José de Souza Martins – Em nossa cultura, os cemitérios são documentos sobre a estrutura social, as relações sociais consolidadas, o modo mais prático e direto de visualizá-la e compreendê-la sociologicamente. São, também, documentos sobre a mentalidade da sociedade que ali sepulta seus mortos, além de documentarem as transformações históricas pelas quais essa sociedade passou. Na distribuição espacial dos sobrenomes, nas alegorias dos túmulos, nas obras de arte, temos aquilo que um sociólogo definiu como as configurações objetivas de sentido, as consolidações que dizem o que uma sociedade é. Por isso mesmo, desde os anos 70, costumo levar meus alunos aos cemitérios de São Paulo. Os três cemitérios públicos mais ricos de esculturas assinadas por artistas famosos, além das de artistas que se mantiveram anônimos – Consolação, Araçá e São Paulo –, têm sido para mim amplas salas de aula em que não só ensino como também aprendo. Minhas visitas não se limitam ao Cemitério da Consolação que, aliás, completou 150 anos neste ano.

Crédito foto: José de Souza Martins
Obra de Amadeu Zani, na Consolação

JUSP – Na história do Cemitério da Consolação, há um aspecto "sanitário": o senhor pode explicar isso brevemente?

Martins – O sepultamento de mortos em cemitérios disseminou-se no Brasil em meados do século 19, quando se tornou obrigatório por razões sanitárias. Até então, as famílias gradas, brancas, católicas e de origem nobre eram sepultadas nas igrejas e, nelas, hierarquicamente: as da nobreza e ricas (havia nobres pobres) eram sepultadas nas proximidades do sacrário do Santíssimo Sacramento, o lugar mais próximo de Deus a que alguém pudesse aspirar em vida e ordenar no respectivo testamento. Velhas igrejas de São Paulo ainda conservam, no assoalho, as portas dos sepulcros dos mortos antigos, como a do Carmo, a da Boa Morte, as igrejas de São Francisco de Assis e de São Francisco das Chagas. Os limpos de sangue, mas desprovidos de meios eram sepultados cada vez mais longe do sacrário, até o limite da porta de entrada. Os membros das confrarias religiosas, pobres de verdade ou pobres de fingimento, eram sepultados nas respectivas igrejas, geralmente em carneiras. E, por fim, os supliciados na forca e os escravos, sepultados no Cemitério de Nossa Senhora dos Aflitos, cuja capela ainda existe no bairro da Liberdade. Havia confrarias religiosas de escravos, com suas igrejas, como a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que ficava onde é hoje a Praça Antônio Prado, no começo da avenida São João, onde tinham sua igreja e sepultavam seus mortos. E o mesmo ocorria na Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, na Praça João Mendes, onde é hoje o Viaduto Dona Paulina.

O sepultamento dos mortos nas igrejas, cada vez mais freqüente, com o crescimento da população e a saturação do solo, começou a se transformar num problema. Em documentos de meados do século 19 já aparecem queixas quanto ao fedor nos templos, durante as missas, decorrente da putrefação dos corpos. Aquela foi uma época em que os miasmas decorrentes da putrefação em geral eram considerados nocivos à saúde. No Brasil inteiro as autoridades sanitárias tomaram a decisão de proibir sepultamentos nas igrejas e de criar cemitérios públicos para isso. Foi nesse momento que surgiu o Cemitério da Consolação, num lugar considerado higienicamente distante da cidade.

Crédito foto: Osvaldo José dos Santos/Arquivo Jornal da USP
Martins: ensinar e aprender

JUSP – Que personagens sepultadas ali têm maior relevância do ponto de vista da história do Brasil?

Martins – Depende do ponto de vista. O Cemitério da Consolação tem um grande número de túmulos de personagens da velha cultura do café, vários dos quais responsáveis pela transição do trabalho escravo para o trabalho livre, como Antônio da Silva Prado, o grande e, talvez, o principal responsável pela assinatura da Lei Áurea e pela adoção de um modelo de relações de trabalho apoiado na ideologia da ascensão social pelo trabalho. Foi o que evitou uma transição social brusca, com o fim do escravismo, na adoção do regime de colonato, que assegurou a acumulação primitiva de capital que foi a base da revolução urbana da cidade e foi a base da industrialização. O próprio Antônio Prado se envolveu nesses diferentes episódios, como empresário dos transportes, das finanças e da indústria e não só como fazendeiro. Envolveu-se também como o prefeito que derrubou a cidade de taipa e criou a cidade moderna, culta e economicamente desenvolvida. É dele a construção do Teatro Municipal. Foi a era do engenheiro e arquiteto mulato Ramos de Azevedo, um dos fundadores da Escola Politécnica, principal autor do novo imaginário urbano de São Paulo, também sepultado na Consolação.

Ali estão, também, vários dos grandes empresários, sobretudo industriais, que disseminaram a moderna economia capitalista em São Paulo e no Brasil. Desde Diogo Antônio de Barros até Roberto Cochrane Simonsen. Este, engenheiro formado pela Escola Politécnica, que foi o grande ideólogo do nacional-desenvolvimentismo fundado numa ideologia social do trabalho. Ele foi, também, o criador da Fiesp e da Escola de Sociologia e Política.

Destaco, ainda, Armando de Salles Oliveira, criador da USP.

No Araçá, temos um outro momento da história social de São Paulo. Aquele foi, de início, o cemitério do imigrante estrangeiro, especialmente o italiano, que se beneficiou do progresso social decorrente da nova era do trabalho livre. Muitos pequenos e médios empresários estão lá. É lá que se encontra o túmulo altamente simbólico de Antônio Lerário e sua família. Imigrante italiano, chegou jovem a São Paulo, trabalhou muito, acumulou e tornou-se atacadista de cereais. Mandou que em seu túmulo se gravasse em bronze uma narrativa visual do modo de vida dos camponeses de sua terra e numa torre gravou em painéis igualmente de bronze a história de sua imigração e de sua ascensão social.

Crédito foto: José de Souza Martins
Obra de Raphael Galvez no Araçá celebra o trabalho: expressão de uma era

No Araçá há várias esculturas de bronze, de Raphael Galvez, celebrando o trabalho, um símbolo forte da nova era, de que aquele cemitério foi expressão.

JUSP – Há ali também um grupo de grandes mulheres. Quais delas merecem maior destaque e por quê?

Martins – Várias mulheres sepultadas no Cemitério da Consolação mereceriam destaque pelo papel que tiveram na história social da cidade de São Paulo e do estado. Em primeiro lugar, a injustiçada Marquesa de Santos, que doou o dinheiro necessário para a construção da capela do cemitério, perto de seu túmulo. Ela atuou sobretudo no sentido de diversificar e modernizar as relações de gênero na cidade após o seu banimento da corte pela nova imperatriz, dona Amélia. A marquesa estimulou e disseminou os saraus lítero-musicais como meio da sociabilidade de encontro entre moças e rapazes da alta sociedade, até então presos ao costume arcaico do casamento entre primos. Outra mulher que destaco é Dona Olívia Guedes Penteado, protetora das artes e dos artistas, que recebia em seu palacete, em Paris, os jovens brasileiros estudantes de artes. Seu túmulo se destaca, aliás, por ter a mais bela escultura cemiterial de São Paulo, O sepultamento, de Victor Brecheret.

No Cemitério do Araçá, destaco o túmulo da poetisa Francisca Júlia, excelente autora, que se matou e que teve a poesia bloqueada pelas críticas do modernismo presunçoso de Mário de Andrade. Sobre seu túmulo foi erguida uma das primeiras esculturas de Brecheret, Musa impassível, título de um de seus poemas. Essa escultura foi removida e restaurada na Pinacoteca do Estado, onde passou a ser exibida. No lugar, sobre o túmulo de Francisca Júlia foi erguida uma cópia exata, em bronze.

JUSP – Do mesmo modo, há intelectuais, escritores, poetas, artistas. É possível destacar algumas dessas figuras em poucas linhas?

Crédito foto: José de Souza Martins
Túmulo de Luisa Crema Marzoratti: imagem delicada

Martins – Na Consolação estão Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Paulo Prado (mecenas da Semana de Arte Moderna), Eduardo Prado, escritor e inspirador do personagem Jacinto de Tormes, de A cidade e as serras, de Eça de Queirós.

JUSP – No caso dos "chapeleiros", o que dizer da importância histórica para São Paulo daquele medalhão que traz a fábrica desenhada?

Martins – O medalhão no túmulo corporativo dos operários da antiga Fábrica de Chapéus de João Adolfo Schritzmeyer, uma das mais antigas indústrias de São Paulo, é a única imagem que se tem da fábrica, que ficava no Vale do Anhangabaú, aproximadamente onde está a saída do Metrô Anhangabaú. É uma imagem antiga. Provavelmente, se baseia numa fotografia.

JUSP – No livreto que o senhor publicou, algumas passagens são densamente poéticas. Há poesia em cemitérios?

Martins – Muitos túmulos na Consolação, no Araçá e no São Paulo celebram o amor e não a morte, a poesia e não o perecimento. Na Consolação, o túmulo da jovem pianista chopiniana Luiza Crema celebra a vida na imagem delicada e sensual esculpida em mármore branco e na placa de bronze que contém um poema de sua mãe, poetisa decadentista italiana. No Araçá, além do túmulo de Francisca Júlia, os anjos esculpidos em bronze para o sepulcro da família Cutrale, por Raphael Galvez, proclamam o triunfo da ressurreição sobre a morte. No cemitério São Paulo está o mais instigante monumento ao amor dos cemitérios de São Paulo. Maria Cantarella, ao ficar viúva, encomendou a Alfredo Oliani a escultura Último adeus, com que celebra seu amor pelo marido, falecido em 1942. Um homem, no vigor da idade, deitado sobre a mulher, beija-a apaixonadamente. Ele está vivo e ela está morta. Nesses três cemitérios paulistanos há numerosos túmulos, concebidos por grandes artistas, em que o erótico, a vida, o belo e o sublime sobrepõem a eternidade de uma concepção poética da vida à transitoriedade imposta pela morte. Documentos de fundamental importância para compreender a mentalidade dos paulistas que protagonizaram a nossa chegada ao mundo moderno, não só como mundo do dinheiro, mas sobretudo como mundo da poesia e da vida em abundância.

 
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