Reza o Artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São todas dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”. Passados 60 da aprovação pela Assembléia Geral das Nações Unidas, as idéias esboçadas

pelo canadense John Peters Humphrey continuam distantes da realidade, retratada nos jornais em manchetes sobre trabalho infantil, escravo, saúde precária, pessoas subsistindo não se sabe como, e altos índices de concentração de renda. Neste mês, o debate sobre problemas sociais será feito não apenas no âmbito político-eleitoral, mas inclui também os cinemas de 11 capitais brasileiras, levando o “espírito de fraternidade” a um número maior de pessoas. Começa nesta segunda a “3a Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul”, iniciativa da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, com curadoria do cineasta Francisco Cesar Filho.

Segundo ele, a idéia do evento é utilizar o cinema, enquanto mídia e linguagem privilegiada, para difundir questões relacionadas a direitos humanos em países sul-americanos que apresentam problemas muito semelhantes. Para isso, selecionou um grande leque de subtemas relacionados à questão principal, para “não bater só nas teclas óbvias”. Como os direitos humanos são muitas vezes ignorados, decidiu-se criar

Deserto Feliz, de Paulo Caldas, na abertura

a mostra em 2006, para conscientizar a população e desnudar a cruel realidade da América do Sul. O filme de abertura em São Paulo, Deserto Feliz, de Paulo Caldas, cumpre justamente essa função. Ele mostra de forma dura e seca o tráfico de animais e a exploração sexual de meninas. O longa recebeu os prêmios de Melhor Direção, Fotografia, Direção de Arte, do Júri Popular e de Crítica no último Festival de Gramado.

Na programação Ao todo são 50 títulos, dez deles escolhidos por meio de convocatória, algo até então inédito no festival. O curador precisou garimpar entre os 182 trabalhos inscritos, vindos de 11 países e 12 estados brasileiros, e conta que teve surpresas felizes. Ele destaca Cidade de Papel (Chile, 2007), dirigido por Claudia Sepúlveda Luque, que acompanhou durante anos um conflito ambiental na cidade de Valdívia. O documentário começa com a descoberta, em 2004, de centenas de cisnes mortos no Santuário do Rio Cruces, devido à contaminação por uma indústria de papel. Caracterizado como “sedutor” pelo cineasta, o longa Sonhos Distantes (Peru, 2006), de Alejandro Legaspi, recupera a trajetória de Negro, 11 anos, e Gringo, dez, narrada no curta Encontro de Homenzinhos. Cerca de 20 anos depois, o diretor encontrou os dois personagens, antes garotos que trabalhavam num mercado de frutas de Lima, hoje pessoas mudadas, com outros sonhos, num país que já não é mais o mesmo. O filme foi o representante latino-americano do último Festival de Amsterdã, a “Cannes do documentário”.

Serão exibidos ainda filmes como O Aborto dos Outros (Brasil, 2008), dirigido por Carla Gallo, que percorre situações de aborto dentro de hospitais públicos e mostra os efeitos da criminalização para as mulheres; Dia de Festa (Brasil, 2006), de Toni Venturi e Pablo Georgieff, acompanhando os dias que antecederam e sucederam sete ocupações lideradas pelo MSTC no Centro de São Paulo; e MBYA, Terra Vermelha (Argentina), assinado por Philip Cox e Valeria Mapelman, passado na selva argentina, onde duas comunidades indígenas lidam dia a dia com a intromissão do “mundo dos brancos”.


J., de Eduardo Escorel, sobre um líder comunitário

Destaque também para a série Marco Universal – Direitos Humanos: A Exceção e a Regra, um projeto de documentários que reúne uma série de diretores renomados. Alexandre Stockler flagra uma história de adolescentes que vivem no lixo de São Paulo em Vidas no Lixo; Kiko Goifman foca a violência contra travestis em Amapô; Eduardo Escorel mostra a fragilidade da rede de proteção de direitos humanos a partir da história de um líder comunitário perseguido em J; Sandra Kogut relata a mudança na qualidade de vida em uma comunidade de Niterói após a chegada do Capitão Romeu em Cavalão; e Tetê Moraes fala sobre a ocupação do MST em Fruto da Terra. Destaque para Flor na Lama, de jovens da ONG Spectaculu, que mostra visões de dentro da periferia do Rio de Janeiro.

Outra novidade da mostra é a oficialização das homenagens, direcionadas neste ano para a produtora argentina Cine Ojo. Encabeçada pelos cineastas Marcelo Céspedes e Carmen Guarini, é marcada por trabalhar com temáticas ligadas aos direitos humanos e traz cinco títulos para exibição. São eles: Jaime de Nevares, a Última Viagem (1995), sobre os 30 anos de luta do bispo por justiça e liberdade; H.I.J.O.S., a Alma em Dois (2002), que questiona o passado e o presente da Argentina, ambos de Carmen e Céspedes; Eu, Madre Alice (2001), de Alberto Marquardt, que acompanha uma religiosa francesa seqüestrada pela ditadura militar; O Diabo entre as Flores (2004), de Carmen, que mostra a chegada de um ex-repressor ao povoado de Escobar; e Pulqui, um Instante na Pátria da Felicidade, de Alejandro Fernández Mouján, inédito no Brasil, sobre o primeiro avião de motor a jato projetado e construído na Argentina.

Por fim, o festival conta com uma retrospectiva histórica, que traça um panorama das seis décadas de existência da Declaração Universal dos Direitos Humanos com enfoque em questões que envolvem crianças e adolescentes. A sessão traz os clássicos Tire Dié (Argentina, 1960), de Fernando Birri, sobre a vida de moradores dos bairros periféricos de Buenos Aires; Os Esquecidos (México, 1950), dirigido por Luis Buñuel, história de um adolescente marcado pela miséria e falta de perspectivas, que se envolve num assassinato; e Palace II (Brasil, 2001), de Fernando Meirelles e Kátia Lund, em que os personagens Acerola e Laranjinha bolam um crime supostamente perfeito, entre outros. O destaque vai para Delinqüente (Colômbia, 1978), com direção de Ciro Durán, que mostra crianças que vão para as ruas de Bogotá para roubar, mendigar e se prostituir (na quinta, Durán vem a São Paulo para debate após a exibição).

A mostra acontece de segunda a domingo no Cinesesc (r. Augusta, 2.075, Cerqueira César, tel. 3087-0500) e na Cinemateca (Largo Senador Raul Cardoso, 207, Vila Clementino, tel. 3512-6111). Entrada franca. Programação completa em www.cinedireitoshumanos.org.br. Na quarta, às 17h, a Cinemateca exibe Os Esquecidos em sessão orientada para pessoas com deficiência visual.

 
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