Um abraço fraterno entre os homenageados, no lugar mais alto da Sala do Conselho Universitário, selou o início de um encontro em que a USP celebrou dois de seus mais ilustres professores. Antonio Candido, 90 anos, e José Goldemberg, 80, foram o centro do Simpósio Ciência e Literatura – Duas Visões do Nosso Tempo, realizado no dia 2 de outubro com

Crédito foto: Francisco Emolo

organização do Centro Interunidade de História da Ciência da USP, coordenado pelo professor Shozo Motoyama. Durante todo o dia, muitos palestrantes falaram sobre as longas décadas de atividade ininterrupta nas quais Candido e Goldemberg vêm plantando sua obra, cujos temas e discípulos frutificam nos mais diferentes lugares.

Ao convidar a professora Walnice Nogueira Galvão, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, para falar na primeira mesa do dia sobre a trajetória de Candido como intelectual, sociólogo e professor, o ex-reitor Flávio Fava de Moraes disse uma frase que certamente se aplica também a Goldemberg: “Antonio Candido seguramente dignifica a Universidade de São Paulo, ao contrário de outros que talvez possam ser dignificados por ela”.


No ambiente do cafezinho que precedeu a homenagem, boa parte da história dos 75 anos da USP estava representada por alguns de seus principais personagens. Ao longo da programação, falaram muitos amigos dos homenageados, professores e autoridades, como Celso Lafer, professor da Faculdade de Direito e presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Ricardo Toledo Silva, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) e secretário-adjunto de Saneamento e Energia do Estado, e Marco Antonio Zago, presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Algumas pessoas perguntam por que ambos continuam lúcidos. Goldemberg, que contou essa história (se é que é uma história), disse que sabe a resposta, pelo menos no que lhe toca. “É porque eu nunca me desliguei da Universidade e dos meus colegas. A Universidade é o único lugar, e olha que já freqüentei muitos, onde existe espírito de crítica e de igualdade entre pessoas.”

Esse espírito significa que a crítica se dirige com a mesma franqueza tanto a um acadêmico supostamente importante quanto a um aluno de graduação. Ter uma universidade de vanguarda onde prevalece a crítica franca, disse Goldemberg, é importante para o desenvolvimento do país, e é muito bom que a USP, colocada entre as cem melhores do mundo, progrida sempre no ranking internacional e estabeleça padrões de qualidade para o Brasil.

Pensamento e militância – Coube a Walnice Nogueira Galvão – “uma das incontáveis discípulas” de Candido, apontou Fava – apresentar a longa trajetória do professor, lembrando que “nosso homenageado não gosta de elogios”. Apesar disso, a vida e a obra de Candido já foram celebradas em livros como Esboço de figura, quando ele completou 60 anos (e que inclui poema de Carlos Drummond de Andrade), Dentro do texto, dentro da vida, aos 70, e Pensamento e militância, aos 80. Walnice destacou a importância de títulos fundamentais publicados pelo professor, como Formação da literatura brasileira, de 1959, no qual o mestre defende a sua noção capital de sistema literário como um “sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase”. Walnice salientou que é difícil escolher os melhores dentre tantos livros que Candido publicou, e registrou que “uma de suas conquistas é a clareza da escrita”.

Crédito foto: Cecília Bastos
O físico José Goldemberg e o crítico literário Antonio Candido: homens que dignificam a Universidade e o Brasil

A professora historiou a formação do mestre, que estudou Ciências Sociais e Direito ao mesmo tempo, tornando-se professor assistente de Sociologia na USP em 1942. Defendeu tese de livre-docência em 1945 e doutorado em Ciências Sociais em 1954, com o clássico texto Os parceiros do Rio Bonito. Lecionou Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia de Assis, hoje integrada à Unesp, voltando depois à USP. Foi ainda coordenador do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Candido exerceu múltiplas atividades na vida cultural e acadêmica do Brasil, publicou muito na imprensa – por exemplo, no antigo Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo – “e ainda achou tempo desde cedo para fazer militância política”, disse Walnice. Enfrentou desde a ditadura Vargas até o regime militar de 1964, sendo um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980.

O professor sempre deu, na preparação cuidadosa das aulas, o testemunho de seu respeito ao aluno – “que não está ali para ser embromado”, como citou Walnice. Orientou grupos de alunos para fazer pesquisa em arquivos de escritores como Mario de Andrade e Oswald de Andrade e foi bastante ativo em bancas de teses e dissertações. Sua simples presença nelas atraía o público, interessado em suas argüições atentas e detalhadas – que depois eram entregues, por escrito, ao candidato. “É incalculável o número dos que veio a preparar para o futuro”, disse a professora, que ressaltou ainda o conhecimento musical de Antonio Candido, seja na ópera, seja na música caipira.

Homem público – Ao abrir a conferência sobre a trajetória de José Goldemberg como administrador e homem público, o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Marco Antonio Raupp, pediu “licença”, como gaúcho de Cachoeira do Sul, para lembrar que ele e o homenageado, também gaúcho – de Santo Ângelo –, freqüentaram na adolescência em Porto Alegre o Colégio Estadual Júlio de Castilhos, “grande formador de homens públicos”. “Ao lado da USP, creio que o colégio foi um grande gerador desse sentido de responsabilidade pública de José Goldemberg”, acredita Raupp.

Crédito foto: Cecília Bastos
Participantes do simpósio em homenagem a Candido e a Goldemberg: longas décadas de atividade ininterrupta e formação de discípulos que dão continuidade à obra dos mestres

Na conferência, o diretor da Coordenadoria de Comunicação Social (CCS) da USP, Wanderley Messias da Costa, citou algumas das etapas da trajetória de Goldemberg em cargos como a presidência da Sociedade Brasileira de Física e da SBPC, nas décadas de 70 e 80, a direção do conglomerado de empresas de energia do estado de São Paulo, no governo Montoro (1983–1986), a Reitoria da USP (1986–1990) e ministérios no início dos anos 90. “Quando eleito para reitor da USP, a imagem que passava era de um Boeing 747 pousando na Praça do Relógio”, disse Messias da Costa. As ações da época – como a conquista da autonomia, em 1989, e a reforma do Estatuto, com a criação das Pró-Reitorias – são exemplos que mostram que a imagem era correta, registrou o professor.

Em Brasília, no governo Collor, foi inicialmente ministro da Ciência e Tecnologia e depois da Educação, pasta acumulada com a do Meio Ambiente. No cargo, foi o coordenador da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente, a Rio 92. “No MEC, era o descalabro, um paraíso da fisiologia política e nenhuma política pública”, disse Messias da Costa, seu chefe de gabinete na época. Goldemberg implantou informatização, bancos de dados, censos e nova gestão. “Os sistemas foram ampliados e aperfeiçoados nos governos seguintes, mas o desbravamento dos pioneiros raramente é reconhecido no país.” Goldemberg deixou o governo  quando começaram a surgir as denúncias de corrupção que levariam, em setembro de 1992, ao impeachment de Fernando Collor.

De volta a São Paulo, foi ainda secretário estadual de Meio Ambiente no governo Alckmin e deu seqüência a uma intensa produção acadêmica e científica, debatendo temas e apontando soluções inovadoras em áreas como sustentabilidade, energia e etanol. “O professor Goldemberg sempre traz idéias novas. Dois dos programas de pesquisa mais novos da Fapesp, o de Bioenergia e o de Mudanças Climáticas Globais, têm a ver com os temas que ele sempre tratou”, afirmou na mesa seguinte, sobre “Meio ambiente, energia e o desafio da globalização”, o diretor científico da Fapesp, Carlos Henrique de Brito Cruz, ex-reitor da Unicamp.

Crédito foto: Cecília Bastos
Walnice: respeito aos alunos; e Brito Cruz: novas idéias

Química ou Física? – Ao final do dia, depois de ouvir muitas exposições, mas referindo-se especialmente às dos professores Wanderley Messias da Costa e Glaucius Oliva, diretor do Instituto de Física da USP em São Carlos, que à tarde destacou as atividades do cientista e do pesquisador, Goldemberg disse que ao longo da vida acadêmica algumas pessoas desapontam os colegas e a Universidade, enquanto outros mantêm extrema coerência, sendo este o caso do professor Antonio Candido. “Apesar de ser físico, tenho o mau hábito de ler e li alguns livros dele, convencendo-me de que não é fácil fazer o que ele fez. A crítica literária é difícil, a não ser que trate de temas irrelevantes.”

Em seguida, passou a destacar alguns episódios vividos por ele ao longo dos 60 anos de USP e antes mesmo de ingressar nela. Para começo de conversa, considerou fator importante para a sua carreira de cientista e de administrador ter feito um bom curso secundário em seu estado natal. Deteve-se por alguns instantes para lamentar que ainda hoje existam no Brasil 15 milhões de analfabetos em várias formas de analfabetismo, desde aquele que desconhece as letras do alfabeto até o aluno que freqüentou aulas, mas não é capaz de ler ou de entender o que lê. 

Na época da Segunda Guerra (1939–1945), quando foi testada a bomba atômica, o jovem Goldemberg ficou intrigado ao saber que de um quilo de urânio bem trabalhado se consegue energia suficiente para destruir uma cidade. Passou então a se dedicar ao estudo da química, imaginando que essa era a ciência capaz de explicar o fenômeno – mas na verdade era a física, na qual acabou se especializando na USP e no exterior. A ele se deve o mérito principal da criação do Instituto de Física da USP, embora outros cientistas eminentes o tenham precedido. Oscar Sala, por exemplo, introduziu um acelerador de partículas que funciona até hoje.

O homenageado continuou dizendo que tentou pautar a vida toda – e identificou em Antonio Candido algo parecido – por padrões internacionais. Pois, segundo Goldemberg, é impossível uma pessoa ou um país progredir isolando-se do conhecimento do resto do mundo. Disse que já no início dos anos 50 começou a publicar em revistas científicas, já que são elas que estabelecem o padrão de qualidade. “Isso pautou toda a minha atividade. Como diretor do Instituto de Física e como reitor da USP, tentei estabelecer padrões de qualidade no trabalho científico mediante avaliação. Nós somos avaliados todos os dias e não há melhor método de avaliação do que enviar artigos para publicação em revistas científicas.”

Crédito foto: Cecília Bastos
Wanderley da Costa, Glaucius Oliva e Marco Antonio Raupp: trajetórias vitoriosas de dois grandes homens públicos

Para exemplificar, disse que as revistas mais famosas estão a cada dia mais rigorosas e que o corpo de avaliadores rejeita até 90% dos artigos submetidos. É o caso da revista Science, na qual, aliás, já publicou e continua publicando muitos artigos. Lamentou que o seu esforço de qualificar as pesquisas tenha sido às vezes recebido com incompreensões, mas lembrou que, passados os anos, essas normas acabaram sendo reconhecidas como as melhores por quase todos. Até órgãos do governo federal, como a Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o CNPq, orientam-se agora por critérios semelhantes.

Goldemberg disse ainda que o pouco tempo de permanência no MEC impediu que tivesse o sucesso que desejava ao implantar esses parâmetros, e o tempo é fator determinante nessa área. Veja-se, disse, o caso dos reitores das universidades federais, que permanecem no cargo por quatro anos, durante os quais são irremovíveis. A estabilidade permite trabalhar sem receio de interromper a obra. Disse ainda que algumas ações o fizeram ganhar a inimizade de um importante grupo editorial do país.

Ainda no MEC, Goldemberg tentou introduzir nas universidades federais certa autonomia financeira (não como na USP, que é plena).  A proposta falhou, em parte porque os próprios reitores não se interessaram por ela, preferindo outros caminhos para conseguir recursos. “Autonomia financeira dá muita responsabilidade”, afirmou. Disse que, embora uma de suas atividades esteja voltada para a questão da energia e suas fontes alternativas, não se considera ambientalista. “Não abraço árvores. Meu trabalho se dirige para as causas da degradação ambiental. O país precisa desse estudo.”

Antes de Goldemberg falar, o professor Glaucius Oliva apresentou longo trabalho, mostrando todas as fases da vida do homenageado, desde a infância em Santo Ângelo, a transferência aos 17 anos com a família para São Paulo, a carreira na USP, os cursos no exterior, as publicações científicas, até a aposentadoria, que não interrompeu a carreira de pesquisador. Goldemberg agradeceu e comentou: “Oliva deve ter passado horas na internet procurando informações sobre mim”.

 

“Homens excepcionais, no Brasil e no mundo”

O professor Antonio Candido não fez pronunciamento, mas ouviu todas as exposições dos participantes de mesas-redondas sobre literatura, ciência e globalização e sobre seu trabalho como crítico literário. Ao final do dia, apenas comentou à reportagem da Agência USP de Notícias que “essas homenagens causam orgulho porque mostram a generosidade dos colegas a professores que trabalharam na Universidade”. Disse que, em relação a Goldemberg, a homenagem era mais do que justificada porque trata-se de um homem que “soube fazer a ciência servir à sociedade”. “No meu caso, acho que não mereço tanto, mas quanto menos a gente merece, mais a gente gosta.”

Presidindo uma das mesas, o bibliófilo José Mindlin disse que sua amizade com Antonio Candido é muito antiga e a única frustração que lhe sobrou vem do fato de nunca ter sido aluno formal do crítico literário. “Mas vivo aprendendo muita coisa com ele. Estou certo de que se sentirá constrangido ao ouvir isto ‘de corpo presente’, mas todos conhecem a sua cultura para justificar o respeito que tenho por ele.”

O professor Nicolau Sevcenko, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, discorreu sobre ciência e literatura no contexto da globalização, notando de início que Candido e Goldemberg são mais que mestres – “são homens excepcionais, assim reconhecidos no Brasil e no mundo”. Sobre a globalização, disse que, embora o termo venha sendo usado apenas nos últimos 30 anos, a origem do que ele significa está no rearranjo da economia mundial logo após a Segunda Guerra. O ex-presidente norte-americano Dwight Eisenhower definiu a situação da época como “complexo-militar-industrial-tecnológico”. Nos anos 60, o filósofo Herbert Marcuse acrescentou à fórmula o termo “tecnológico-acadêmico” para assim definir a importância do papel das universidades na estrutura do poder mundial.

O expositor apontou depois “as três dimensões avassaladoras da revolução tecnológica”: sistemas cibernéticos; desenvolvimento de computadores e sistemas digitais; e pesquisa racional que resultou nos satélites estacionários. Outros três fatores teriam concorrido para o rearranjo mundial: altos investimentos militares; benefício a grandes empresas; fortalecimento dos Estados Unidos. Resumo das conseqüências dos impactos econômico-culturais: “A nossa imaginação está abaixo da práxis; eticamente, somos todos inintencionalmente culpados, com a dignidade reduzida e sem tempo para reflexão”.

A situação seria a mesma para a ciência e para a literatura, as áreas representadas na solenidade pelos homenageados José Goldemberg e Antonio Candido. Sevcenko referiu-se a eles como professores que se opuseram a essa “lógica perversa, para orgulho da Universidade de São Paulo e da minha geração, ‘geração sem palavras’, como a designou o mesmo Antonio Candido”. Sem palavras porque nos governos militares muitos professores e pesquisadores foram cassados, calados e exilados.

Outro expositor do dia, Marcos Silva, professor de Metodologia da História da USP, apresentou um estudo sobre o personagem Lucrécio Barba de Bode, do romance Numa e a Ninfa, sátira política de Lima Barreto. O Barba de Bode viveu as vicissitudes do começo da vida republicana no Brasil – um país que, naquele final do século 19 e início do 20, carecia de melhor educação tanto quanto este do final do 20 e início do 21.

 
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