Talvez não seja à-toa que a Argentina tenha se transformado num dos países mais receptivos às idéias de Sigmund Freud no Ocidente – ali se encontra um dos maiores índices de psicanalistas em relação ao tamanho da população em todo o globo. Um dos gêneros nacionais é a explicação do fracasso, que busca entender por que a Argentina não

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alcançou o destino grandioso que se anunciava, por exemplo, no seu nascimento como nação, nas primeiras décadas do século 19. Para o professor americano Nicolas Shumway, autor de A invenção da Argentina – História de uma idéia, que a Editora da USP (Edusp) acaba de lançar, a criação do gênero se deu já em 1845, quando o escritor e educador Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) publicou o seminal Facundo ou civilização e barbárie, sobre a vida do caudilho Juan Facundo Quiroga (1793-1835).


“Nessa explicação do fracasso, Sarmiento identifica três fatores principais. O primeiro é a história: a Espanha é um país atrasado e não serve de modelo”, diz Shumway. Vem então o “gesto edípico” – olha o Freud aí, gente! – de matar o pai, “ou pelo menos de adotar outros pais culturais, e esses modelos Sarmiento encontra na Inglaterra, na França e, sobretudo, nos Estados Unidos.” Parênteses para uma observação irônica do professor, ao dizer que “aqui no Brasil tem tanto psicanalista argentino que sem dúvida as neuroses de vocês têm sotaque” – e o sotaque do castellano do Prata, como se sabe, tem suas imensas e charmosas peculiaridades.

Morto o pai, para o autor de Facundo o segundo problema é o da raça. “Sarmiento é um produto do século 19, um racista típico da época, e acha que os indígenas e os africanos são raças que não podem fazer uma nação moderna”, diz Shumway. Daí vem a idéia da imigração, afinal é preciso cambiar a composição do país. A terceira vertente é a questão da terra. Para Sarmiento, é necessário introduzir um grande projeto liberal em que as terras sejam ocupadas por meio da propriedade privada. “O que ele quer fazer é mudar a Argentina”, considera o professor. Sua visão foi muito criticada por uma oposição nacionalista, que o via como “europeizante” e “estrangeirizante”, palavras-chave no debate político sobre o país. Se a divisão entre nacionalistas e estrangeiristas é útil para a análise, ainda que possa soar simplista, de outra parte é verdade que afetou muito a retórica nacional. “A tal ponto que é impossível falar na Argentina de hoje sem ter Sarmiento como ponto de partida, mesmo que não estejamos de acordo com ele”, reflete Shumway.

Crédito foto: Cecília BastosOposicionistas – Discordar, por sinal, é outro dos esportes nacionais dos vizinhos do Prata. Shumway experimentou essa realidade desde a primeira vez que visitou a Argentina, em 1975, para uma série de entrevistas com ninguém menos do que Jorge Luis Borges, tema de seu doutorado nos Estados Unidos. “Cheguei num momento muito caótico na história”, conta. O mítico Juan Domingo Perón havia morrido no ano anterior, em pleno exercício de seu terceiro mandato na Presidência da República. Sua viúva e vice-presidente, María Estela Martínez de Perón, a Isabelita, veria seu claudicante governo ser derrubado por um golpe militar em março de 1976. “Comecei a perceber que estava num país muito dividido. De um lado, nacionalistas, populistas, esquerdistas; de outro, conservadores, liberais etc. Passei a entender a frase do (escritor) Ernesto Sábato, de que a Argentina é realmente um país de oposicionistas, que gosta muito de briga”, conta. “Fiquei fascinado por essa história de um país que promete tanto, que tem tantos recursos, materiais e humanos, mas que naquele momento realmente não funcionava”, diz.

Shumway fez as entrevistas com Borges – “que foram fabulosas” – e obteve seu doutorado. Porém, a impressão que lhe causara o profundo cisma da Argentina não o abandonava. Decidiu então que escreveria um livro sobre o início dessa grande ruptura, cujo marco é o ano de 1930. Ali ocorre o primeiro dos seis golpes militares do país no século 20. “Começa então realmente uma briga ideológica e também política que ainda tem efeitos na Argentina”, explica o professor. É de lá que surge, só para dar um exemplo, o movimento peronista. “Perón não pode ser entendido sem se levar em conta a experiência da década de 30, que, aliás, na Argentina se chama a ‘década infame’. Os argentinos sempre têm termos dramáticos”, observa.

Ao escrever, Shumway foi constatando que grande parte do debate dos anos 30 tinha raízes em questões do século 19: a história, os heróis nacionais e a herança do período estavam na arena e definiam as posições. “Eu tinha obviamente que explicar tudo isso e as notas de rodapé iam crescendo mais rápido que o texto. Dessas notas de rodapé saiu A invenção da Argentina”, relata. O livro é uma análise de textos e de idéias que influíram na história social e política do país e, embora focado no século 19, traz também comentários sobre a Argentina moderna. “Antes de mais nada, para mostrar que o país é herdeiro dessa retórica do século 19.”

Crédito foto: reproduçãoA invenção da Argentina foi publicado nos Estados Unidos em 1991, sendo escolhido pelo jornal The New York Times o livro notável do ano, além de ter sido premiado pela Latin American Studies Association. Sua primeira edição em espanhol saiu em 1993, e em 2004 o autor lançou uma versão revisada e ampliada na língua de Sarmiento e Borges. “Fiquei surpreso com o êxito do livro porque ele ainda vende bem nos Estados Unidos e na Argentina”, diz o professor, que revela ter também se surpreendido com a solicitação da Edusp para a tradução em português, que traz novos acréscimos e correções. Sua leitura pode ser um excelente caminho para começar a desfazer alguns dos estereótipos e mitos que alimentam a relação de fascínio e repulsa, aliás típica de vizinhos, mantida entre brasileiros e argentinos.

Entre 1995 e 2007, Nicolas Shumway dirigiu o Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade do Texas, em Austin, na qual atualmente é chefe do Departamento de Espanhol e Português. Foi professor visitante da USP em 1999 e 2002. Na semana passada, voltou à Universidade para participar do Seminário Internacional Intercâmbios Políticos e Mediações Culturais nas Américas, cuja organização foi coordenada pela professora Maria Ligia Coelho Prado, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), e concedeu entrevista ao Jornal da USP.

Sempre em crise – O século 19 é um período crítico na história argentina. Aliás, mais um parêntese para a observação de Shumway de que a palavra “crise” sempre está na boca da nação. “Há um amigo que comenta, toda vez que visito a Argentina: ‘Nicolas, nunca estuvimos peor’”, conta. Entre 1820 e 1861, sucederam-se diversas guerras civis e não houve, a não ser por um breve lapso de tempo, um governo nacional aceito por todas as províncias. A grande briga política se dava entre os unitários, que defendiam o controle e a hegemonia de Buenos Aires sobre todo o país, e os federalistas, que queriam a autonomia política e administrativa das províncias. A oposição também refletia uma espécie de defesa das formas de existência encarnadas por cada facção: a primeira na vida urbana e a segunda, na rural.

Crédito foto: reproduçãoJuan Manuel de Rosas, líder do Partido Federal, governava desde 1835, sendo derrubado após a derrota para Justo José de Urquiza na batalha de Caseros, em 1852. Urquiza e seu sucessor, Santiago Derqui, governaram uma confederação da qual o então estado de Buenos Aires não participava. Em 1861, as forças de Bartolomé Mitre, governador de Buenos Aires, derrotaram os confederados. No ano seguinte, Mitre – que havia sido aliado de Urquiza na luta contra Rosas, mas logo se converteu em seu adversário – tornou-se presidente da nação argentina unificada. Foi sucedido, em 1868, por ninguém menos que Domingo Faustino Sarmiento, o autor de Facundo. Sarmiento duplicou o número de escolas públicas no país e criou cerca de cem bibliotecas. Em seu período de governo terminou a Guerra do Paraguai, da qual a Argentina saiu com territórios antes paraguaios – como, aliás, o Brasil também. Coerente com suas idéias de que era preciso mudar a raça do país, incentivou a imigração de europeus.

“Uma das coisas que acho interessantes da Argentina é que é um país que enquadra tudo em termos históricos. Você pode encontrar ainda hoje em Buenos Aires pessoas que dizem que são rosistas e outras que se dizem sarmientistas”, observa Shumway. “O paradigma retórico dessa briga, mesmo que nos pareça pouco relacionada com o momento atual, inclui essa visão histórica.” O que havia no século 19, define, eram dois partidos com duas visões distintas e claras do que deveria ser o destino nacional.

A postura nacionalista encontra suas raízes naquela época, mas seu grande momento se dá nos anos 1930, quando atuam vários escritores e pensadores importantes. Homens como Raúl Scalabrini Ortiz (1898-1959) e Arturo Jauretche (1901-1974) embasaram o discurso peronista. Na “década infame” é publicada, em 1933, outra obra fundamental: Radiografía de la pampa, de Ezequiel Martínez Estrada (1895-1964). Estrada é outro pessimista que, a exemplo de Sarmiento, condena a miscigenação e exprime a idéia de que de alguma forma a Argentina é um país contrafeito – ou feito contra si mesmo.

Crédito foto: reprodução“Confesso não me sentir à vontade com o termo ‘populismo’, pois ele invoca imagens de demagogia, antiintelectualismo e governo pela multidão – especialmente na Argentina moderna, onde ‘populismo’ é usado muitas vezes como sinônimo de ‘peronismo’”, escreve Shumway no livro. “Continuo, porém, a empregá-lo porque, quando definida de forma estrita, a palavra pode ajudar muito em nossa discussão da Argentina do século 19.” Uma vertente importante desse discurso está imbuída “de um impulso nativista que tenta definir a Argentina em termos da sua cultura popular, particularmente a cultura dos gauchos e das classes humildes”.

O poeta Bartolomé Hidalgo (1788-1822) é conhecido como inventor da poesia gauchesca e já expressava uma ideologia antiportenha em seus textos. Porém, o primeiro a realmente politizar essa literatura e tratar a figura do gaucho como o argentino autêntico, vitimizado e abandonado é José Hernández (1834-1886), opositor de Sarmiento e autor do clássico Martín Fierro, cuja primeira parte é publicada em 1872. “A literatura gauchesca é um fenômeno curiosíssimo e não tem equivalente em nenhuma outra parte da América”, diz Shumway.

Eliminação – “Não há formas de escapar de Sarmiento”, reforça o professor, para falar de outra herança do século 19 que invadiu o 20. “Ele diz que a oposição dos rosistas é um câncer que tem que ser extirpado.” Essa imagem terrível – de corte, de eliminação – foi retomada, por exemplo, na guerra suja travada pela mais recente e funesta ditadura militar, a que derrubou Isabelita e só deixou o poder depois da derrota para a Inglaterra na Guerra das Malvinas, em 1982, legando um país arrasado economicamente e sangrado por cerca de 30 mil desaparecidos. “Quem sabe o que fazer com o câncer? O médico, o autorizado, o inteligente, o preparado. Por outra forma, o paciente, que é o país, não sabe o que precisa. Então os salvadores da pátria têm que eliminar esse câncer, mas fazendo tudo pelo ‘bem’ do paciente”, compara.

Mesmo o populismo fez a defesa de uma categoria especial de salvadores da pátria – os caudilhos – ao dizer que de alguma forma eles são os verdadeiros representantes do povo, que sabem intuir o seu sentimento e depois falar em seu nome. “Scalabrini Ortiz defende muito a idéia de que o caudilho é mais democrático do que a democracia, porque este é um sistema de governo que fica aprisionado pela burguesia”, diz Shumway. Para o professor, o gênio de Juan Perón, o caudilho por excelência do século 20, estava em dialogar com os mais diferentes e antagônicos movimentos, obtendo acordos entre eles.


A invenção da Argentina – História de uma idéia
, de Nicolas Shumway, tradução de Sérgio Bath e Mário Higa, Edusp, 408 páginas, R$ 48,00

Mais Sarmiento: quando embaixador nos Estados Unidos, o líder estudou como o país estava “resolvendo” a questão indígena. A “solução” incluía – quando não o extermínio puro e simples – o deslocamento forçado de imensas populações para longe de suas regiões de origem, o que contribuiu para o fim de muitas nações indígenas. “A Argentina fez basicamente a mesma coisa”, diz Shumway. Os quilmes, por exemplo, foram retirados do quente norte para o frio sul. Aos padecimentos do traslado se somou o rigor da umidade dos invernos, desconhecida para eles. Os quilmes desapareceram, embora seu nome seja evocado numa cidade, num time de futebol e numa popular marca de cerveja. “A questão indígena é uma tragédia, mas não sei o quanto ela está presente no imaginário nacional argentino”, afirma o professor.

Para Nicolas Shumway, a história da Argentina é a história de uma grande cidade – Buenos Aires – e de um país que por muitas vezes foi desenvolvido. Martínez Estrada, por sinal, dizia que se tratava de uma nação com a cabeça de Golias e o corpo de um anão. “No Brasil, que eu saiba, nunca houve uma cidade ou região que dominasse o país, e nesse sentido a história brasileira se parece mais com a dos Estados Unidos”, acredita o professor. “Buenos Aires é uma cidade que tem algumas coisas supersofisticadas. Às vezes você pode se imaginar numa grande cidade européia. Mas, se precisar de algum serviço público, vai ver que está num país de terceiro mundo”, compara Shumway, para quem a capital portenha tem alguma coisa de teatro, de fachada.

Na discussão sobre temas atuais como a globalização, ainda há ecos das antigas posturas que opõem civilização e barbárie, nacionalistas e estrangeirizantes, cultura autóctone e cultura imposta de fora. “O debate na Argentina sempre tende a ser mais exagerado e mais agressivo do que no Brasil. No discurso popular da Argentina, ou uma coisa é genial ou é uma m..., e entre genial e m... não existe nada”, define Shumway. O professor aponta, entretanto, que, na recente disputa com os produtores rurais, o governo Kirchner – do casal, por que não? – tentou reciclar a retórica populista-nacionalista dos anos 30 e da esquerda dos anos 60 e 70 contra a “oligarquia golpista” e “antiargentina”. “O interessante é que não funcionou. Não sei se estamos vendo o momento final desse discurso”, observa, salientando que, de qualquer forma, a briga entre cidade e campo parece ainda não ter sido resolvida.

Pode ser que, contrariando o amigo do professor americano, a Argentina já tenha estado pior em outras ocasiões. Porém, a idéia de um destino grandioso justificava-se no início do século 20, quando o país ostentava a quinta renda per capita do mundo e era mais próspero do que Itália ou Espanha. Para Nicolas Shumway, porém, a Argentina “nunca perdeu a sua capacidade para surpreender”. Exemplo recente está no colapso de 2001, quando o então presidente Fernando De La Rúa renunciou às vésperas do Natal e quatro sucessores passaram pelo cargo até a primeira semana de janeiro de 2002. “Houve uma crise econômica como nunca se tinha visto antes. Mas de repente vieram seis anos de crescimento descomunal”, diz o professor. Previsões? “A única que ouso profetizar é que as profecias sempre se enganam. A Argentina sobreviveu ao longo de todas as crises do século 20, mas sempre um pouco pior. Agora, por exemplo, ela não tem a promessa de 1920. Mas repito: é um país que tem a capacidade de surpreender.”

 

A gênese dos hermanos

MARCELLO ROLLEMBERG

Brasil e Argentina, os dois principais países do continente sul-americano, sempre trocaram olhares enviesados. Ora com uma ponta de inveja, ora com destemida soberba, os dois hermanos não se furtam a se mirar e – muitas vezes – a se imitar. A Argentina viveu, na era Menem, um período de prosperidade artificial, de paridade do então austral com o dólar que criou um equívoco de riqueza que deu no que deu. O Brasil também viveu sua paridade 1 real = 1 dólar, veio a maxi de FHC – e escapamos por um fio. Aqui nós tínhamos nossos generais-presidentes? Lá também. A democracia deles chegou antes da nossa – um ano, para ser bem exato, mas a nossa está tendo uma travessia menos traumática. Afinal, Collor à parte, nossos presidentes (os mais recentes) pelo menos se mantêm no cargo até o final do mandato. E não sofrem com panelazos constantes.

De qualquer forma, o tom de curiosidade e o desejo de compreender o vizinho sempre fizeram parte das relações entre Brasil e Argentina. É justamente nesse ponto que se cobre de interesse o livro do pesquisador americano Nicolas Shumway, a Invenção da Argentina, da Edusp. Resistindo à tentação – por vezes fácil de se cair, mas muito difícil de se livrar – de analisar o período histórico mais instigante da história daquele lado de lá do rio da Prata, o peronismo, que até hoje tem forte eco pelas ruas, cafés e urnas portenhos, Shumway faz os ponteiros da história andar ainda mais para trás, e vai buscar no século 19 as raízes da nação argentina, sua gênese. E sai dessa sua viagem no tempo com um trabalho essencial para entendermos nosso vizinho adepto a parrilladas e mate amargo.

Nova identidade – O trabalho de Shumway parte de uma idéia que, se não é de todo original em seu nascedouro, se mostra brilhante em sua composição: a criação da identidade argentina no século 19, logo após a  independência das “Províncias Unidas da América do Sul” – que viriam a ser a Argentina –, em 9 de julho de 1816. Uma identidade que, de todo, difere em muito do mapeamento do DNA do Brasil como nação soberana. Ao romper os laços coloniais, cada uma das novas nações independentes da América do Sul teve que forjar rapidamente sua identidade. Shumway considera um fator muitas vezes esquecido nas  histórias econômicas, sociais e políticas dessa gênese da identidade argentina a peculiar mentalidade divisória criada por intelectuais e políticos acerca de seu próprio país que nascia. Nomes como Bartolé Mitre, Bernardino Rivadavia, José Artigas, Domingo Sarmiento e Mariano Moreno foram os primeiros a formular uma idéia de seu país. Mas, como aponta Shumway, essa herança ideológica é uma mitologia de exclusão em lugar de um ideal unificador. Diferentemente do que aconteceu no Brasil, por exemplo, onde a importância da raça era preponderante para a formação da identidade nacional e o pluralismo regional dava um tom de nação, na Argentina os embates entre criollos e espanhóis e, mais detidamente, a preponderância de Buenos Aires sobre todos os outros territórios foram um divisor de águas. Jorge Luís Borges escreveu certa vez: “A Argentina é Buenos Aires. O resto são índios e desertos”. Essa frase de efeito do autor de O Aleph traduz muito caracteristicamente como o portenho via – como uma paisagem distante, vista de uma ponte metafórica – as outras províncias do país. E essa visão distante e um tanto pernóstica é fundamental para se compreender a identidade nacional e psicológica de seguidores de “Santo Maradona”. A Argentina cresceu e se fez país a partir de, como diz o pesquisador americano, “ficções-diretrizes” que, apesar de não poderem ser comprovadas e de serem tão artificiais quanto as ficções literárias, são necessárias para dar aos indivíduos um sentido de nação, de povo, uma identidade coletiva e um objetivo nacional. Uma dessas ficções é anotada por Shumway: “Sob esse aspecto surge em primeiro lugar a relativa modéstia de seu principal objetivo, e de sua principal ficção-diretriz: trazer a Europa para o Cone Sul. Em vez de criar algo novo, construir uma nova Jerusalém e atuar como uma luz para orientar nações, eles se limitaram a buscar recriar a Europa e a América Latina, não como uma idéia nova, mas como derivação bem-sucedida”. Talvez essa frase de Shumway justifique uma piada mordaz – mas não de todo inverídica – acerca dos argentinos: aquela que diz que “um argentino é, na verdade, um espanhol que pensa que é inglês mas que age como italiano.” Macaqueando uma realidade que não é a sua e não sendo nenhum desses povos europeus, na verdade, o argentino acabou se esquecendo de ser o que sempre deveria ter sido: argentino. O livro de Nicolas Shumway se encarrega de lembrar a nuestros hermanos sua verdadeira vocação.

Outros espelhos – A Editora da USP não tem apenas o livro de Shumway para auxiliar na melhor compreensão da identidade e da história argentinas. Não tão recentes, mas ainda em catálogo, a Edusp apresenta outros dois volumes que ajudam a compor um painel mais amplo da personalidade de um país tão próximo e, ao mesmo tempo, tão distante de nós. Os Intelectuais e a Invenção do Peronismo, de Federico Neiburg, e A Ditadura Militar Argentina 1976-1983, de Marcos Novaro e Vicente Palermo, tratam de dois temas muito mais próximos e mais discutidos da história argentina. Mas nem por isso menos interessantes ou menos surpreendentes. Falar de Juan Domingo Peron e de generais travestidos de ditadores sanguinários  como Jorge Videla ou Leopondo Galtieri está longe de ser um clichê ou de requentar uma história muitas vezes debatida. É uma forma de perceber melhor o que se passou do lado de lá, como se nossos vizinhos se mirassem em outros espelhos, mostrando sempre um novo contorno de rosto, uma ruga ainda não retocada - e uma história ainda por ser melhor compreendida.

 
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