Histórico da Ditadura Civil-Militar Argentina

A última ditadura argentina (1976-1983) teve início, por meio de um golpe de Estado, em 24 de março de 1976, o qual depôs a então presidenta da República María Estela Martínez de Perón, também conhecida como Isabelita Perón. No período em que vigorou o autodenominado “Processo de Reorganização Nacional”, uma Junta Militar, composta pelas três armas das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), assumiu o poder e, em seguida ao golpe, indicou o general Jorge Rafael Videla para presidir o país. A partir de então, desencadeou-se um regime pautado na desindustrialização, no endividamento externo, em sua autolegitimação, na centralização do poder nas mãos dos militares, com participação direta dos civis oriundos das elites nacionais, e no Terrorismo de Estado. Durante a última ditadura argentina, além do ditador Videla (1976-1981), estiveram a frente desse processo os generais, Roberto Eduardo Viola (1981-1981), Leopoldo Galtieri (1981-1982) e Reynaldo Bignone (1982-1983). Estima-se que mais de 30 mil pessoas tenham sido mortas durante essa ditadura (SADER; JINKING, 2006).

Antecedeu o golpe de 1976 um cenário político conturbado e de caos econômico. As justificativas para a autolegitimação do regime também já se ensaiavam em período anterior a março daquele mesmo ano. As intervenções militares não eram um dado novo na História argentina, desde 1930. Em 1966, a autodenominada “Revolução Argentina”, um dos golpes militares anteriores a 1976, encabeçado pelo general Juan Carlos Onganía, junto com seus aliados civis, foi marcado por um governo autoritário e modernizador, inspirado no modelo brasileiro de 1964, o qual configurou a primeira tentativa de formular um modelo argentino de regime civil-militar. O fracasso dessa experiência levou a uma rápida restauração do poder civil em 1970 e ao consequente retorno de Juan Domingo Perón ao poder, em 1973.

Com o regresso de Perón, os arquitetos do golpe de 1976 demostraram a incapacidade dos governos autoritários anteriores em implementar projetos refundadores, diante de uma sociedade extremamente politizada e mobilizada. Mas, a morte de Perón, em julho de 1974, teve efeitos catastróficos sobre a sociedade argentina. Durante o governo de sua sucessora, Isabelita Perón (1974-1976), a inflação registrava alta de preços entre 500 e 800% (NOVARO; PALERMO, 2007). Mesmo após diversas trocas no Ministério da Economia, não foi possível conter os efeitos negativos da crise sobre a população, tampouco reverter a agitação popular, a ação das guerrilhas armadas e a reação dos sindicatos. O déficit público correspondia a 12% do PIB e registrava-se um assassinato político a cada cinco horas (NOVARO; PALERMO, 2007). Para os militares, as elites nacionais e o capital estrangeiro, era necessário encerrar o “círculo vicioso” composto por crises políticas e econômicas, governos militares inoperantes e a consequente restauração de governos civis de caráter populista.

Em contraposição à chamada “Revolução Argentina”, o regime inaugurado em 1976 tomou para si a função messiânica de garantia da ordem. Com base em um discurso de autolegitimação, de guerra contra a “subversão” e contra o “populismo” e, igualmente, com base no caos econômico e social, foi conferida  “carta branca” aos militares, em 1976, a fim de se produzir mudanças profundas na economia, nas instituições, na educação, na cultura e nas estruturas sociais, partidárias e sindicais. Nesse contexto, o programa proposto pelo Ministro da Economia do regime, o civil José Alfredo Martínez de Hoz, não estava destinado a obter bons resultados econômicos e sim efeitos reformuladores sobre o funcionamento da sociedade. Esse programa foi uma mistura de receitas neoliberais, conservadoras e desenvolvimentistas, cujos pontos de convergência eram proporcionar a intervenção seletiva do Estado, introduzir mudanças estruturais nas relações de poder, desmantelar o setor industrial, ampliar a primazia do setor financeiro, de modo a integrar o país no circuito mundial de capitais. Tais objetivos foram corroborados, conquanto o programa tenha conseguido uma vitória efêmera sobre a inflação. De fato, ainda no segundo trimestre de 1976, as taxas de inflação voltaram a subir acompanhadas da queda dos salários, o que demonstrou a falta de uma estratégia bem definida de longo prazo (NOVARO; PALERMO, 2007).

Concomitantemente, a “Doutrina de Segurança Nacional” identificou um inimigo interno comum: a “subversão”, expressa pela guerra de guerrilhas. Para conter as propaladas ameaças dos guerrilheiros peronistas e de uma revolução marxista, o regime se utilizou da “Guerra Suja”, ou seja, recorreu aos métodos dos serviços militares secretos franceses, aplicados na Argélia e na então Indochina, pautados no desrespeito a todas as convenções internacionais e legalidade, ações encobertas de terrorismo, sequestros e assassinatos, práticas sistemáticas de torturas e extensão do “teatro de operações” de combate aos grupos armados para além dos limites territoriais do país. Isso decorreu, principalmente, da difusão sistemática de doutrinas estadunidenses de “contrarrevolução”, de ódio ao comunismo e da ameaça representada pela Revolução Cubana. Ao menos 3 mil oficiais argentinos foram treinados em escolas militares estadunidenses entre 1960 e 1975. Somou-se a isso, devido à passividade e consentimento das autoridades e forças de segurança, a ação de organizações paramilitares de extrema-direita, como a Triple A (Aliança Anticomunista Argentina), grupo de inspiração fascista, fundado por José Lopez Rega, Ministro do Bem-Estar Social de Juan Domingo Perón. A “Triple A” disponibilizava periodicamente listas de pessoas que deveriam deixar o país. Caso contrário, seriam assassinadas (NOVARO; PALERMO, 2007).

O Terrorismo de Estado instalado durante a última ditadura argentina, caracterizou-se pela criação de pelo menos 364 campos de concentração e de centros clandestinos de detenção e extermínio, os quais funcionavam em instalações públicas ou privadas, quartéis, unidades penitenciárias e até escolas, onde as pessoas eram mantidas sequestradas por razões políticas, em sua grande maioria sem qualquer relação com a luta armada (SADER; JINKING, 2006). A atuação limitada de grupos guerrilheiros, como o Exército Revolucionário do Povo (ERP) e os Montoneros, foi utilizada de forma distorcida para legitimar a matança sistemática ocorrida na Argentina durante esse período. A “guerra revolucionária”, no início de 1976, já havia sido totalmente contida, conforme demonstrado pela comparação entre o número de mortos pelas forças militares na época, o rápido declínio das atividades guerrilheiras e o avanço desproporcional da repressão (NOVARO; PALERMO, 2007).

Além de grupos guerrilheiros, intelectuais, estudantes, religiosos, organizações operárias e sindicais que resistiram à última ditadura, destacou-se a atuação do movimento pelos Direitos Humanos denominado Mães da Praça de Maio, formado em 1977. Era constituído por mulheres que saíam às ruas de Buenos Aires em busca de seus filhos desaparecidos. Junto com as Mães da Praça de Maio, em 1977, foi formado o movimento Avós da Praça de Maio, grupo de mulheres que tiveram suas filhas e noras sequestradas ainda grávidas e seus netos, nascidos em centros clandestinos de detenção, entregues a famílias de repressores (SADER; JINKING, 2006).

Diante da ampla resistência, das denúncias de violações aos Direitos Humanos, da grave crise econômica, com quebra dos bancos, taxas recordes de desemprego, colapso do sistema cambial (“tablita”) e estagnação total da economia e, ainda, diante do fracasso do objetivo programático de estabilização nacional, apesar de toda política repressiva, já no fim da década de 1970 e início da década de 1980, o regime ditatorial militar dava sinais de declínio. Em 1981, o ditador Jorge Rafael Videla e o Ministro da Economia Martínez de Hoz renunciaram e, para presidir o país, a Junta Militar indicou o general Roberto Viola (1981), em seguida substituído pelo general Leopoldo Galtieri (1981-1982). Nesse momento, os partidos políticos já se reagrupavam em uma ação política conhecida por Multipartidária, a qual se apoiava na possibilidade de recuperação da representatividade dos partidos a partir da exclusão do poder militar. No mês de julho de 1981, a Multipartidária lança a sua convocação ao país, com grande repercussão, anunciando a transição democrática.

Na tentativa frustrada de prolongar a sobrevivência do regime, após uma greve geral, o general Galtieri declarou guerra contra o Reino Unido, em abril de 1982, e tentou ocupar as Ilhas Malvinas, reivindicando a soberania histórica da Argentina sobre este território. A derrota na Guerra das Malvinas fez com que o entusiasmo e o orgulho nacional, uma vez inflados pela conquista da Copa do Mundo de 1978, se esfacelassem. Rapidamente, após a derrota, passou-se a considerar necessário dar explicações aos familiares das vítimas da repressão e ao próprio país. Termos como “luta anti-subversiva” e “garantia da ordem” foram substituídos por “repressão ilegal” e “Terrorismo de Estado”. Mesmo assim, a Junta Militar decidiu manter as coisas como estavam e indicou o general Reynaldo Bignone (1982-1983) à presidência, o qual elaborou a Lei de Auto-Anistia para impedir que militares fossem julgados pelos seus crimes e, ainda, decretou a destruição dos arquivos que comprometiam o regime. Em setembro de 1983, foi eleito como presidente, por eleições gerais, Raúl Ricardo Alfonsín e, em 6 de dezembro de 1983, a Junta Militar assinou a ata de sua dissolução.

Durante o governo Alfonsín (1983-1989), foi anulada a Lei de Auto-Anistia, foram assinados decretos que possibilitaram o julgamento dos militares pelos crimes de lesa-humanidade cometidos, tendo sido criada a CONADEP (Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas). O relatório final da Comissão levou à condenação de militares integrantes da cúpula do regime, incluindo o general Videla, pelos crimes praticados durante seu governo. No entanto, a perspectiva de justiça durou pouco. Em 1986, ainda no governo de Alfonsín, foi aprovada a Lei do Ponto Final, que sancionava a impunidade dos militares e interrompia os processos judiciais. O ímpeto por medidas de justiça, reparação e memória, foi retomado durante o governo de Néstor Kirchner (2003-2007), o qual anulou a Lei do Ponto Final, o que possibilitou a reabertura dos processos contra os repressores. Segundo dados da Procuradoria de Crimes de Lesa Humanidade, órgão do Ministério Público argentino, houve, até dezembro de 2017, cerca de 200 julgamentos condenatórios por delitos cometidos por agentes da última ditadura, incluindo a sentença de condenação do ditador Videla à prisão perpétua, em 2010 (Procuradoría de Crímenes contra la Humanidad, 2017).

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