Histórico da Ditadura Civil-Militar do Paraguai

Os antecedentes ao golpe de 1954 no Paraguai, remetem a um quadro de instabilidade política, social e econômica. Depois da Guerra do Chaco (1932-1935), conflito entre Paraguai e Bolívia, o mais sangrento da história moderna da América Latina (LEWIS, 2018), o país ficou economicamente arrasado. Mesmo que o Paraguai tenha saído vitorioso do embate, os efeitos da guerra e da crise econômica repercutiram diretamente na instabilidade política até culminar no golpe de Estado encabeçado pelo general Stroessner, em 1954. De fato, no ano seguinte à instituição do armistício no Chaco, em 1936, eclodiu no Paraguai a “Revolução Febrerista”, encabeçada pelo coronel Rafael Franco. Durante os 18 meses no poder, os “febreristas” lançaram um projeto de reforma agrária e implementaram o reconhecimento de direitos trabalhistas. Contudo, essa sublevação mal emplacou algumas reformas estruturais e foi derrubada por uma contrarrevolução dos liberais. Ainda assim, o episódio marcou o declínio de um longo período de dominação do Partido Liberal na política paraguaia e desencadeou um processo resultante na ditadura do general Higinio Moríngio (1940-1948) e, posteriormente, na Guerra Civil de 1947.

Com o fim do governo de Moríngio, em 1948, iniciou-se um período de dominação do Partido Colorado, que, em tese, persiste até os dias de hoje. Após a renúncia de Moríngio e uma sucessão de presidentes provisórios, tomou posse, em 1949, o presidente eleito Federico Chaves do Partido Colorado. Em meio a uma economia totalmente deteriorada, com o aumento da inflação e da estagnação da produção agrícola e pecuária, seu governo precisou comprar itens básicos de consumo para revender a preços de custo à população, a fim de se evitar uma crise famélica no país. Além disso, a desvalorização cambial, a fuga de trabalhadores especializados e de capitais obstavam a recuperação econômica a curto e longo prazos. Diante desse contexto, Chaves passou a perseguir os opositores e a reprimir as agitações políticas, ao mesmo tempo que procurou mostrar um governo firme o suficiente para atrair novos investimentos estrangeiros; também implementou o controle de preços e concedeu aumentos de salários para manter o poder aquisitivo da maior parcela da população. De todo modo, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita diminuiu significativamente no início de 1954, o mercado paralelo cresceu, tanto o cambial quanto o de produtos básicos e o país foi considerado de alto risco para os investidores, depois de ser decretada a moratória sobre os pagamentos da dívida externa em 1952. Sem o empréstimo de cerca de 5 milhões de dólares, provenientes dos Estados Unidos da América (EUA), a importação de produtos essenciais teria sido impossível (LEWIS, 2018).

Em face da grave crise econômica, o presidente do Banco Central, Epifanio Méndez Fleitas, com o amplo apoio de setores do governo e das Forças Armadas, defendeu a sujeição do Paraguai ao auxílio financeiro do peronismo argentino e do Fundo Monetário Internacional (FMI). Porém, o presidente Federico Chaves se opôs veementemente a essa alternativa. Com isso, Méndez Fleitas se exonerou do cargo e passou a almejar a presidência da República. Para tanto, conspirou juntamente com o então comandante supremo das Forças Armadas, o general Alfredo Stroessner, que havia se destacado na Guerra Civil paraguaia (1947) e não via com bons olhos a expansão e o fortalecimento da Polícia Nacional sob o comando de Chaves (LEWIS, 2018). Em 03 de maio de 1954, uma crise envolvendo o comando da base militar de Campo Grande, próxima da capital Assunção, deflagrou a sublevação das Forças Armadas. Partidários de Stroessner tentaram assumir o controle da unidade, mas acabaram presos por ordens do presidente. Stroessner reagiu, considerando a interferência civil uma afronta aos militares. Assim, teve início o golpe, apoiado pelos EUA, que depôs o então presidente constitucionalmente eleito e desencadeou a Ditadura Civil-Militar no Paraguai. Após os embates na capital Assunção, no dia seguinte, em 4 de maio, Chaves foi forçado a renunciar e enviado como embaixador paraguaio na França. O Partido Colorado indicou à presidência interina Tomás Romero Pereira, o qual permaneceu no cargo até a decisão final de quem deveria assumir o cargo, Stroessner ou Méndez Fleitas. Mediante intensas negociações, o general Stroessner tomou posse em 15 de agosto de 1954 e Méndez Fleitas assumiu novamente a presidência do Banco Central.

Para consolidar o regime, o ditador precisou controlar duas instituições-chave, as Forças Armadas e o Partido Colorado (LEWIS, 2018). Segundo Paul Lewis (2018, p. 280): “O primeiro dava-lhe a força bruta que os ditadores requerem, enquanto o segundo lhe propiciava a base popular de que poucos governos militares desfrutaram”. De fato, o poder do “stronato” residiu, justamente, na coesão de uma estrutura de poder interdependente, composta pelos militares, governo e o partido. Cada um desses setores desempenhou um papel fundamental na repressão, no controle político e na mobilização de setores populares. A unificação dessa estrutura de poder nas mãos de Stroessner fez com que ele fosse ao mesmo tempo presidente da República, comandante das Forças Armadas e presidente honorário do Partido Colorado. Esse fator garantiu também a longevidade e estabilidade do regime, sob a forma de um Estado corrupto, repressivo e onipresente (LAMBERT, 1997).

A fim de construir tal unidade o ditador neutralizou as principais forças dentro do Partido Colorado e o reorganizou completamente. Em pouco tempo, esse partido tornou-se monolítico, típico de regimes totalitários (LEWIS, 2018). Os seguidores de Méndez Fleitas, denominados “epifanistas”, foram expurgados, exilados ou presos. O próprio presidente do Banco Central foi destituído e exilado em 1955. As alas democráticas dos colorados, apoiadores do ex-presidente Chaves e opositores do acordo com o FMI, congregados no “Movimiento Popular Colorado” (MOPOCO), foram igualmente perseguidas, sob a justificativa da “luta contra o comunismo”. A facção paramilitar de extrema-direita do partido, o “Guión Rojo”, liderada pelo então ministro do interior, também foi afastada do poder no início da década de 1960, em meio a um escândalo policial.

Entre os militares, apenas os simpatizantes de Stroessner eram mantidos nas fileiras do Exército. O ditador inspecionava pessoalmente as instalações militares, ratificava as aquisições de equipamentos e controlava as promoções, bem como as atribuições de seu corpo de oficiais. Além disso, os militares contavam com inúmeros privilégios, aos quais se somavam os benefícios da corrupção institucionalizada, do contrabando, do tráfico de drogas e do “loteamento de cargos” em todas as esferas do governo, principalmente em empresas estatais. Temendo o risco de um golpe de Estado ou de um atentado contra sua vida, Stroessner criou um regimento de escolta presidencial fortemente armado. Esse organismo foi alvo de recentes investigações por parte da “Dirección General de Verdad, Justicia y Reparación” da “Defensoria del Pueblo” paraguaia, pois, mantinha uma rede de mulheres, adolescentes e crianças como escravas sexuais a serviço do ditador Stroessner. As vítimas eram sequestradas, mantidas em cárcere privado e depois desaparecidas, muitas delas foram brutalmente assassinadas. Stroessner concedeu, ainda, asilo político a diversos criminosos de guerra nazistas, demonstrando as suas simpatias ideológicas pelo nazi-fascismo europeu.

Nesse processo de consolidação, com o afastamento dos rivais, a perseguição dos oposicionistas e o controle sobre o Partido Colorado, Stroessner submeteu-se sucessivamente ao escrutínio das urnas, mas sem candidatos de oposição. Essas eleições tinham resultados no mínimo questionáveis. A partir da queda dos regimes ditatoriais personalíssimos de Fulgêncio Batista em Cuba (1959) e de Marcos Pérez Jiménez na Venezuela (1958), bem como em razão da pressão estadunidense, o regime de Stroessner viu-se obrigado a permitir alguma oposição moderada ao governo ditatorial, como forma de evitar uma nova Revolução Cubana no continente (LEWIS, 2018). Na passagem da década de 1950 para 1960, o estado de sítio foi suspenso e concedeu-se anistia a alguns exilados políticos, com exceção dos opositores e partidos de esquerda. O Partido Liberal e algumas dissidências, que se encontravam exilados, foram permitidos e legalizados.

No entanto, o período de “pseudo-abertura” do regime durou pouco tempo. A greve geral de trabalhadores em 27 de agosto de 1958 foi duramente reprimida e o estado de sítio novamente instaurado. A chegada clandestina de jovens opositores ao Alto Paraná, através da fronteira com a Argentina, com o objetivo de formar grupos de resistência armada contra o regime, foi decisiva para justificar o recrudescimento da repressão implementada por Stroessner. A resistência mais decidida contra o “stronato” partiu dos trabalhadores urbanos e rurais, dos grupos de guerrilha armada, do movimento estudantil e da Igreja católica, mas, sob a égide da “guerra contra o comunismo” e com o emprego de uma força notoriamente desproporcional, Stroessner conseguiu rapidamente dizimar todo e qualquer foco de instabilidade.

O movimento sindical sofreu interferência direta, com a imposição de uma liderança fantoche na “Central Paraguaya de Trabajadores” (CPT), tendo por objetivo afastar a influência dos comunistas sobre os sindicalizados. Antes da greve geral de 1958, os principais líderes do “Partido Comunista Paraguayo” (PCP) foram presos arbitrariamente e mantidos sequestrados na sede da “Comisaría Tercera” no centro de Assunção. Das organizações de guerrilha, que consideravam a luta armada como a única possível para a derrocada da ditadura, destacaram-se a “Frente Unido de Liberación Nacional” (FULNA), apoiada pelo PCP e por Cuba e o “Movimiento 14 de Mayo” (M-14), formado por setores radicalizados dos partidos Liberal e Febrerista, que pretendia desencadear uma convulsão popular e camponesa e um consequente golpe de Estado contra Stroessner. Todavia, esses grupos de guerrilha, ao invés conseguirem o apoio dos camponeses, acabaram sendo delatados por eles e, consequentemente, reprimidos. Estima-se que cerca de 400 membros das guerrilhas foram mortos nas ações de repressão do Exército paraguaio (NICKSON, 2013).

Um outro pólo de resistência foi o da Igreja católica, principalmente, na organização das “Ligas Agrarias Cristianas” (LACs), onde se congregavam setores camponeses, trabalhadores sem terras e alas progressistas católicas, porém, a violência política e a repressão nem sequer poupou a instituição religiosa e as delações acabaram por facilitar a desarticulação desses movimentos. Até mesmo o campus da Universidade Católica do Paraguai foi invadido por forças militares, em 1972, para dissolver uma manifestação contrária ao regime (LEWIS, 2018). Além da Igreja, as manifestações organizadas pelo movimento estudantil chamaram a atenção para a vinculação ideológica do regime com os interesses imperialistas e foram, da mesma forma, reprimidas de forma violenta. Muitos dirigentes estudantis foram presos, torturados e arbitrariamente processados com base em leis de segurança nacional ou por profanação do estado de sítio (SADER; JINKINGS, 2006).

Ante a violência e a repressão, com a oposição completamente sufocada, Stroessner procurou legitimar-se pela estabilização econômica (LEWIS, 2018). O ditador sentia-se forte o suficiente para impor ao povo paraguaio, em 1957, um dos primeiros planos de estabilização monetária proposto pelo FMI, apoiado pelos EUA, que consistia em políticas de austeridade em gastos sociais e um auxílio financeiro de 11 milhões de dólares, de modo a controlar a inflação (NICKSON, 2013). Em troca do aporte financeiro internacional, a ditadura restringiu o crédito, eliminou subsídios, efetivou o controle de preços e o congelamento dos salários. Essas medidas eram bastante impopulares, motivo pelo qual a violência política era diuturnamente empregada e legitimada com base em programas de melhorias internas da infraestrutura, basicamente rodoviária, que serviram para atrair investimentos estrangeiros, bem como deram ensejo ao slogan do regime: “Paz y Progreso con Stroessner” (LEWIS, 2018).

A política de estabilização do FMI, consequentemente, fez a dívida externa do país subir  para mais de 80 milhões de dólares durante a década de 1960 e a inflação voltou a crescer nos anos de 1970. Enquanto os proprietários de terras, empresários e funcionários públicos de alto escalão enriqueciam, a classe trabalhadora assistiu à queda do seu precário padrão de vida, a desigualdade social aumentou e, também, a concentração de renda (LEWIS, 2018). Os níveis de crescimento do país atingiram altos índices principalmente por meio da crescente influência brasileira. A construção da usina binacional de Itaipu, a construção da Ponte da Amizade e a outorga do porto de Paranaguá isento de qualquer imposto, visavam diminuir a influência argentina sobre o Paraguai, bem como estreitaram os laços entre as ditaduras brasileira e paraguaia e promoveram o crescimento econômico favorável aos capitais de ambos os países (NICKSON, 2013). Em 1967, o Partido Colorado convocou a oposição moderada para formar uma Assembleia Constituinte, uma vez que a constituição impedia novas reeleições de Stroessner. Finalmente, a nova Constituição apenas institucionalizava o “stronismo” e modificava o obstáculo que impedia a continuidade da liderança do ditador (SADER; JINKINGS, 2006).

Em 1988, aos 75 anos, Stroessner foi “reeleito” para o seu oitavo mandato presidencial. Entretanto, desde 1982, a brusca desaceleração econômica, com a volta da inflação na casa dos 30% e o término da construção da usina de Itaipu, que encerrou um ciclo de investimentos estrangeiros, davam sinais da crise do regime (LEWIS, 2018). A crise econômica que se iniciava e o declínio do governo ditatorial possibilitaram o reagrupamento de movimentos sociais. Os trabalhadores reuniram-se no “Movimiento Intersindical de Trabajadores” (MIT), em resposta às fraudes e intervenções na CPT; os pequenos proprietários rurais, trabalhadores sem terra e populações indígenas organizaram-se no “Movimiento Campesino Paraguayo” (MCP), para se defenderem da “grilagem” de terras, da espoliação pelos latifundiários e da invasão, inclusive dos grandes agropecuaristas brasileiros. Com isso, o núcleo de poder de Stroessner, militares que consideravam a fidelidade ao ditador acima da fidelidade ao Partido Colorado, tornou-se cada vez mais arbitrário. A censura e o controle sobre a mídia intensificou-se, estendendo-se às grandes empresas de comunicação do país que expunham os incontáveis casos de corrupção no governo (LEWIS, 2018).

Nesse contexto, em 03 de fevereiro de 1989, Stroessner foi derrubado por um golpe de Estado, encabeçado pelo general Andrés Rodriguez, o segundo na cadeia de comando e sogro do filho mais novo do ditador. Assim como o poder ditatorial foi consolidado com base na articulação entre as Forças Armadas e o Partido Colorado, da mesma forma se deu a sua derrocada. O golpe contra Stroessner foi deflagrado em defesa da “dignidade” dos militares e após a reunificação dos colorados. Obviamente, as bandeiras que foram adotadas, da democratização, proteção aos direitos humanos e defesa da Igreja católica, estavam no final da lista de prioridades do general Rodriguez (NICKSON, 1997). Efetivamente, Rodriguez foi beneficiado pelos proveitos do tráfico de drogas e do enriquecimento ilícito durante toda ditadura, mas, quando Stroessner, em meio à crise econômica nacional e em face do cenário internacional de abertura política democrática, tentou impor que seu filho mais velho, o coronel Gustavo Stroessner, o sucedesse na presidência na eleição de 1993, os militares consideraram tal opção inaceitável. Além de estar implicado em diversos casos de corrupção, especulava-se nos quartéis do país, que o filho do ditador era homossexual e isso foi considerado uma afronta ao “orgulho” e à “honra” dos militares (LEWIS, 2018). Oficialmente, ele não possuía as credenciais necessárias para comandar o país. Assim, com o amplo apoio das Forças Armadas, o general Rodriguez destituiu Stroessner do cargo e convocou nova eleição em um curto período de tempo, de modo que qualquer oposição não teria tempo hábil para se articular. Rodriguez saiu vitorioso no pleito e manteve-se no cargo até 1993, denotando que não houve uma verdadeira ruptura com o período ditatorial (LEWIS, 2018). Após a eleição de 1993, tomou posse o primeiro presidente civil eleito no Paraguay em mais de 35 anos. O empresário Juan Carlos Wasmosy foi eleito também pelo Partido Colorado.

Alfredo Stroessner, imediatamente após o golpe de Estado que o destituiu, rumou para o Brasil, onde recebeu asilo político e permaneceu até falecer em 2006, sem nunca ter sido processado ou julgado. Seu filho Gustavo Stroessner também se asilou no Brasil, onde diversos pedidos de extradição foram veementemente negados pela justiça brasileira. Os crimes praticados pelo filho do ditador foram considerados prescritos em 2010. Contudo, a agitação social por memória e justiça no Paraguai ganhou maior ímpeto, em 1992, com a descoberta do “Arquivo do Terror”, os arquivos secretos da polícia “stronista”, encontrados na cidade de Lambaré. Os documentos, comprobatórios de crimes de lesa humanidade e de intensa participação da ditadura paraguaia na Operação Condor, foram transferidos para o Palácio de Justiça da capital e deram origem ao “Centro de Documentación y Archivo para la Defensa de los Derechos Humanos” (CDyA), viabilizando pesquisas sobre a repressão durante o período stronista (SILVA, 2018). Em 2004, em respostas às demandas sociais de vítimas da ditadura e dos organismos de direitos humanos, foi criada a “Comisión de Verdad y Justicia” (CVJ), a qual emitiu o seu informe final em 2008, dando conta de cerca de 20 mil vítimas da ditadura, 4 mil delas assassinadas (PARAGUAI, 2008). Com a chegada de Fernando Lugo ao poder, em 2008, foram implementadas medidas de reparação e justiça às vítimas da ditadura e as funções da CVJ foram orientadas para a investigação das violações de direitos humanos, preservação da memória das vítimas e identificação de responsáveis pela repressão. Para tanto, foi criada, em 2009, a “Dirección General de Verdad, Justicia y Reparación”, um órgão de gestão independente para continuar o trabalho da CVJ e resguardar a integridade dos documentos descobertos. Mesmo com o golpe parlamentar perpetrado contra Fernando Lugo, em 2012, esse órgão continua ativo, realizando investigações com relação aos crimes perpetrados pelo “stronato”.