Histórico da Ditadura Civil-Militar do Peru

Os antecedentes desse processo remontam a um período de profundas mudanças ocorridas no Peru durante o final da década de cinquenta e ao longo da década de sessenta. Com o fim da ditadura militar de Manuel Arturo Odría (1948-1956), que foi um governo militar de caráter populista, houve uma grande explosão demográfica e a expansão da participação política. O Peru deixou de ser um país eminentemente oligárquico para se tornar um regime democrático de base relativamente ampla, em grande medida devido à industrialização em substituição às importações. Esse período também abriu caminho para a intensa participação do capital estadunidense na economia, representando 47% das exportações e 62% do controle de todo capital financeiro peruano (COTLER, 2015). No período compreendido entre o final da ditadura Odría e o golpe de Estado do general Alvarado, em 1968, as forças políticas no Peru se re-organizaram. Surgiram movimentos campesinos de luta por terras e contra a concentração fundiária, organizados principalmente sob a “Confederación de Campesinos del Perú” (CCP) e a “Federación Nacional de Campesinos del Perú” (FENCAP). A FENCAP era filiada ao partido de centro “Alianza Popular Revolucionaria Americana” (APRA), enquanto a CCP era basicamente formada por membros da extrema-esquerda da APRA, a chamada “APRA-Rebelde”, que, posteriormente, passou a ser uma dissidência armada denominada “Movimiento de Izquierda Revolucionaria” (MIR). Além das confederações campesinas, os trabalhadores urbanos se organizavam na “Confederación de Trabajadores del Perú” (CTP), que congregava 75% de todos os trabalhadores organizados do país (ALEXANDER, 2007).

No entanto, foi com o triunfo da Revolução Cubana, em 1959, que as organizações de trabalhadores e campesinos se radicalizaram, na tentativa de imitar o exemplo cubano. Surgiram, ainda, no início da década de sessenta, movimentos armados como o próprio MIR e o “Ejército de Libertación Nacional” (ELN), formado por uma dissidência do Partido Comunista Peruano (PCP). Durante o primeiro mandato do então presidente Belaúnde Terry, as Forças Armadas peruanas receberam aval amplo e irrestrito, além de auxílio financeiro, do poder executivo, das oligarquias e burguesias internas e do governo dos EUA, para reprimir e desmantelar os focos de guerrilha nas selvas. Por volta de 1965 todos os movimentos de guerrilhas haviam sido dizimados. Porém, ao combaterem esses grupos radicalizados, os militares se depararam com a necessidade de realizar reformas estruturais, como parte de uma nova tendência da Doutrina de Segurança Nacional das Forças Armadas, em decorrência da extrema pobreza da maioria da população. Dentro da Igreja católica também crescia uma onda reformista, desde a década de cinquenta, como forma de reduzir os conflitos sociais. Assim, influenciados pela Igreja, tendo em vista o alarmante nível de pobreza e a insatisfação popular no interior do país e para evitar novamente o emprego das Forças Armadas em um confronto direto, diante da mobilização generalizada e violenta dos camponeses, criou-se, por meio do “Centro de Altos Estudios Militares” (CAEM), uma consciência nacionalista e reformista entre o alto-comando militar e os tecnocratas civis. Desenvolveu-se, portanto, um certo consenso sobre a defesa de um desenvolvimento planejado, com base na reorganização e nacionalização de setores estratégicos da economia, a fim de se garantir a soberania nacional e combater o inimigo interno do comunismo (COTLER, 2015).

Nesse contexto, o presidente Fernando Belaúnde Terry da “Acción Popular” (AP), o qual havia vencido, nas eleições de 1963, Víctor Raúl Haya de la Torre da APRA e o ex-ditador Manuel Odría da “Unión Nacional Odriista” (UNO), acabou cada vez mais isolado e sem apoio popular, pressionado tanto pelos militares como pelo Congresso Nacional oligárquico, contrário a qualquer medida de reforma agrária ou de nacionalização das minas de cobre e dos campos de petróleo. As tensões advindas da classe trabalhadora também cresciam. Entre 1966 e 1968, as alas de trabalhadores à esquerda da CTP, controlada pela APRA, cindiram e conseguiram congregar aproximadamente 110 mil trabalhadores em uma nova organização denominada “Confederación General de Trabajadores del Perú (CGTP) (ALEXANDER, 2007). Com isso, a cúpula militar passou a considerar que o sistema parlamentar democrático era um obstáculo para implementação das reformas estruturais necessárias para conter as ondas reivindicatórias e a forte influência das organizações de esquerda sobre a classe trabalhadora. Por conseguinte, após uma série de escândalos políticos, incluindo o acordo espúrio com a empresa exploradora de petróleo estadunidense “International Petroleum Company” (IPC), Belaúnde Terry foi deposto, em 03 de outubro de 1968, sem qualquer resistência.

A autodenominada “Revolução de Cima”, encabeçada pelo general Juan Velasco Alvarado, iniciou suas reformas estruturais na sociedade peruana com a nacionalização do complexo petrolífero da IPC. A concordância de que era necessário introduzir mudanças na base da economia e da sociedade também abriu caminho para a nacionalização de outros setores produtivos, bem como à criação de cooperativas agrícolas e de organização de trabalhadores  (COTLER, 2015). Ademais, o pacote de medidas econômicas do governo militar, visando a um desenvolvimento racional e planificado, foi denominado “Plan Inca”, pelo qual o regime tentava manter o seu caráter mediador, descrito no slogan: “nem capitalista, nem marxista-leninista”. Diante do crescimento descontrolado dos movimentos de massa e, com o intuito de controlar as greves e as organizações sociais, o regime promoveu a criação do “Sistema Nacional de Apoyo a la Movilización Social” (SINAMOS), com o discurso de facilitar a implementação da social democracia com participação popular plena. Mas, na prática, a sua organização vertical e hierárquica não possibilitou aos militares controlar as mobilizações populares e muitas organizações criadas no âmbito da SINAMOS passaram a agir independentemente, fora das diretrizes oficiais do governo.

Tais medidas colocaram o governo militar peruano em rota de colisão com os interesses econômicos estadunidenses. Entretanto, Alvarado conseguiu contornar os confrontos diretos na política externa, concedendo parcelas da exploração mineradora e petrolífera às empresas transnacionais, em troca de empréstimos e investimentos externos. Mesmo assim, não conseguiu conter o advento de uma crise econômica e a alta da taxa de inflação, impulsionada pelo aumento dos gastos públicos. Com o golpe de Estado de 1973 no Chile, o regime peruano se viu militarmente ameaçado e acordou um programa de compras de armamentos soviéticos, reavivando as tensões internacionais com os EUA. Por isso, tendo que lidar com as pressões internas e externas, Alvarado recorreu ao autoritarismo, silenciou os meios de comunicação e reprimiu as greves e os movimentos sociais que buscavam representatividade no governo. Aproximadamente 30 líderes sindicais foram deportados (COTLER, 2015). Em um ato para tentar recuperar sua popularidade, Alvarado expropriou uma empresa mineradora estadunidense. O caminho unilateral tomado pelo general levou à divisão política dentro da cúpula das Forças Armadas. Em 1975, os chefes das regiões militares depuseram Alvarado e nomearam Francisco Morales Bermúdez. A troca do presidente simbolizou a volta do alto-comando militar ao poder de fato e, assim, se iniciava a segunda fase (1975-1980) da ditadura militar peruana.

O regime de Bermúdez objetivava implementar reformas econômicas de caráter liberal acompanhadas de medidas de austeridade para conter os gastos públicos. Logo nos primeiros meses de 1975, dois pacotes de reajustes econômicos intensificaram a oposição popular ao governo recém-instaurado. Até o final de 1976 nove pacotes econômicos, de mesma natureza,  foram encaminhados e generais apoiadores de Alvarado foram deportados, por denunciarem o perfil “contrarrevolucionário” da nova ditadura (COTLER, 2015). Visando buscar apoio da APRA e um certo consenso político, as ações do governo acabaram por isolá-lo entre a direita e a esquerda, bem como por reativar a política partidária no país. Porém, diante da crise econômica e a pressão externa dos EUA por medidas econômicas mais radicais e austeras, ainda em 1976, a ditadura de Bermúdez declarou as greves ilegais, o que afetava nitidamente as organizações de esquerda, dos estudantes e principalmente os sindicatos. Os líderes sindicais responderam com a unificação dos sindicatos e a convocação de uma greve geral. Imediatamente, foi declarado estado de emergência, toque de recolher, o fechamento de jornais e estações de rádios independentes. A forte repressão contra os trabalhadores, camponeses e estudantes ligados às organizações de esquerda abriu caminho para imposição de um conjunto de medidas econômicas exigidas pelos bancos transnacionais, com relação à dívida externa peruana, então na casa dos US$ 4 bilhões. Em troca, pelo governo ter cumprido as exigências dos banqueiros, foi concedido um novo empréstimo ao Peru de US$ 400 milhões para “aliviar” os problemas financeiros do regime (COTLER, 2015, p. 684).

Mesmo assim, a oposição da sociedade civil continuou crescendo e se proliferando em organizações e manifestações públicas. O conflito social intensificou-se colocando em risco a ordem imposta pela ditadura de Bermúdez. A chegada de Jimmy Carter ao governo estadunidense (1977-1981), aumentou a pressão pelo restabelecimento da democracia e pela pacificação social. Em 1977 o Peru assinou um acordo de estabilização econômica com o Fundo Monetário Internacional (FMI), concomitante à adoção de novas medidas econômicas para redução de gastos públicos, causando demissões em massa, redução do padrão de vida dos trabalhadores e descontentamento generalizado por parte da população. Cada vez mais isolado, o governo de Bermúdez convocou eleições, em 1978, para uma Assembléia Nacional Constituinte. O desempenho dos partidos de esquerda demonstrou uma força sem precedentes e alcançou 30% dos votos. O resultado foi a elaboração, em 1979, de uma nova Constituição “semipresidencial” (COTLER, 201, p. 690-691). A Assembleia Nacional imediatamente requisitou à ditadura de Bermúdez a convocação de eleições gerais e que ele colocasse a nova Constituição em vigor. Após embates políticos, as eleições foram marcadas para maio de 1980 e, assim, a ditadura militar peruana chegou ao fim.

Os militares mantiveram o controle da transição política no país, apostaram em Haya de la Torre, da APRA, como sucessor civil natural, pois este possuía a força política necessária para apaziguar os conflitos sociais, mitigar as lutas de classes no Peru, instaurar uma “social-democracia” e manter sob controle a forte influência da esquerda sob os setores populares. Contudo, Haya de la Torre faleceu poucos dias após a dissolução da Assembleia Constituinte. Portanto, a principal força política, para disputa das eleições, era o ex-presidente Belaúnde Terry da AP, que havia sido deposto pelos militares doze anos antes e retornou do exílio no momento da abertura política. A vitória eleitoral esmagadora de Belaúnde Terry foi seguida de um acordo com as Forças Armadas, pelo qual as estruturas de poder dentro da instituição permaneceriam inalteradas, mas os Ministérios das três armas seriam distribuídos entre generais reformados contrários ao golpe de 1968 e apoiadores do presidente eleito. Entre 1980 e 1985, com a adoção de medidas econômicas neoliberais, a dívida externa cresceu, o PIB diminuiu 11,3%, o desemprego chegou a 18%, os salários caíram 31%, paralelamente ao crescimento do setor informal e da taxa de inflação de 66% e cerca de 50% da população foi reduzida à extrema pobreza (COTLER, 2015). A força de trabalho foi fragmentada e a organização sindical foi erodida. Isso levou à radicalização dos trabalhadores e as ondas de greves gerais chegaram a durar meses.

Nesse contexto de grande agitação, houve o recrudescimento das atividades guerrilheiras de grupos como o Sendero Luminoso (PCP-SL) e o “Movimiento Revolucionario Túpac Amaru” (MRTA). Essas ações em certa medida afastaram definitivamente os militares da esquerda e das populações camponesas e, portanto, afastaram qualquer possibilidade de um novo golpe militar contra Belaúnde Terry. A extrema violência política adotada pelas Ditaduras Civis-Militares do Cone-Sul foi adotada no Peru por um regime democraticamente eleito. As organizações de guerrilha somente foram dissolvidas no final da década de noventa, sob a ditadura de Alberto Fujimori (1990-2000). Porém, em 1984, o presidente Belaúnde Terry já havia autorizado as Forças Armadas a realizarem operações “antissubversivas” em todo território nacional. O governo legitimava suas ações com o discurso de que aquelas eram as únicas ações possíveis diante do desastroso legado de doze anos de regime militar.

Com o fim da presidência de Belaúnde Terry e a vitória eleitoral de Alan García da APRA, posteriormente seguido da ditadura de Alberto Fujimori, persistiu, entre 1980 e 2002, um contexto de conflito interno entre as forças do governo e as organizações guerrilheiras no país. Em 2001 foi instaurada a “Comisión de la Verdad y Reconciliación” (CVR) do Peru, a qual entregou o seu informe final em 2003. Conforme apurado pela Comissão, aproximadamente 70 mil pessoas morreram neste conflito, das quais pelo menos 20 mil ou 30% foram vítimas de violações aos Direitos Humanos por parte de repressão das forças de segurança do Estado. As iniciativas de construção da memória no Peru são basicamente relacionadas a esse período de 1980 a 2002. Por esse motivo, tentamos relacionar os lugares de memória apenas referentes à repressão estatal entre 1975 e 1990.