Histórico da Ditadura Civil-Militar do Uruguai

Os antecedentes ao golpe de Estado de 1973 remontam a um cenário de conflito interno, até 1972, entre as forças do Estado e o grupo guerrilheiro denominado “Movimiento de Libertación Nacional – Tupamaros” (MLN-T), organizado pelo militante Raúl Sendic no início da década de 1960. Até então, as Forças Armadas não tinham caráter intervencionista, nem sequer moderador, com relação à política do país. Porém, a luta contra os Tupamaros e a orientação da política externa antissubversiva estadunidense fizeram com que os militares gradativamente abandonassem esse perfil passivo, apenas profissional e burocrático, e se instalassem no poder. De fato, desde a década de trinta, o Uruguai foi uma das economias mais prósperas e industrializadas da América Latina (FINCH, 2018). A política paternalista do presidente José Batlle (1903-1907 e 1911-1915), nas primeiras décadas do século XX, viabilizou um certo desenvolvimentismo, com base na exportação pecuária. No período pós-II Guerra Mundial, a política “neobatllista” de Luis Battle (1947-1952), sobrinho de José Batlle, ganhou contornos populistas e deu continuidade à estratégia de industrialização em substituição às importações. Ao longo da década de cinquenta, o Uruguai contou com uma taxa média de industrialização de 9% ao ano (FINCH, 2018), bem como com um sistema de seguridade social consolidado e ampla organização sindical, sem a participação significativa do exército na vida política.

Contudo, no final da década de cinquenta, a economia e a política partidária começaram a dar sinais de desgaste. O Partido Nacional (os blancos) impôs a primeira derrota eleitoral ao Partido Colorado, em quase 90 anos. A política econômica que se seguiu foi a de desmantelamento dos mecanismos de controle cambial e comercial. Foi aprovada uma grande reforma monetária e, também, recorreu-se ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para a implementação de uma política radical de estabilização. Essas medidas acirraram o descontentamento popular e, somado ao advento da Revolução Cubana em 1959, levaram à radicalização da oposição. A polarização política era evidente e se intensificou com as visitas oficiais dos presidentes estadunidenses Nixon e Eisenhower (1958 e 1960), seguido dos líderes cubanos Fidel Castro e Che Guevara (1959 e 1961) (FINCH, 2018). Nesse contexto, se deu uma onda de filiações em massa às organizações sindicais, o surgimento de fortes sindicatos de funcionários públicos, o crescimento do movimento estudantil e o surgimento de grupos armados. Os Tupamaros (MLN-T) obtiveram destaque em ações de guerrilha urbana e rapidamente se tornaram um dos grupos guerrilheiros mais organizados e bem sucedidos da América Latina. Sob a crescente ideologia anti-imperialista, formou-se, ainda em 1964, o primeiro sindicato unificado do país, a “Convención Nacional de Trabajadores” (CNT).

Diante desse cenário de grave crise política, social e econômica, Jorge Pacheco Areco (1968-1972), do Partido Colorado, assumiu a presidência com um viés autoritário para enfrentar a ameaça guerrilheira “comunista”, a taxa de inflação na casa dos 90%, o aumento da dívida externa e as pressões do FMI por políticas econômicas ortodoxas e austeras (FINCH, 2018). Pacheco, então, passou a governar por meio de medidas de segurança emergenciais, um recurso constitucional de caráter dúbio, pelo qual se implementou uma forte repressão política aos opositores de esquerda. O presidente, com essas medidas, fechou jornais independentes, caçou políticos opositores, prendeu líderes sindicais, proibiu assembleias e censurou a imprensa em geral. Os trabalhadores de serviços essenciais foram colocados sob jurisdição militar, como forma de se evitar as frequentes greves. As manifestações nas ruas foram proibidas e, quando ocorriam, eram duramente reprimidas. Até mesmo a independência do Poder Judiciário era constantemente atacada por meio de prisões arbitrárias e desconsideração de determinações judiciais (FINCH, 2018). Com relação aos Tupamaros, as atividades de repressão, antes perpetradas pela polícia, foram substituídas pelo emprego das Forças Armadas, ao que se seguiu a institucionalização do Terrorismo de Estado, com a prática de torturas, execuções e sequestros sistemáticos.

Ao final do governo de Pacheco, as negociações com o FMI levaram ao congelamento de salários em troca da aprovação de um modesto crédito de emergência. Muito embora a oposição estivesse sufocada e os Tupamaros quase que inteiramente suprimidos, com seus principais líderes sequestrados pelo Estado, a economia reagiu timidamente. Além disso, surgiu uma nova força política capaz de fazer frente aos partidos tradicionais. A “Frente Amplio”, uma grande coligação de partidos e organizações de esquerda e não esquerda progressista, encabeçada pelo general reformado Líber Seregni, o qual deixou as Forças Armadas por sua discordância com os atos de repressão e violações aos Direitos Humanos, angariou, desde a sua fundação, em 1971, muitos adeptos e começou a despontar como uma alternativa possível da classe trabalhadora aos impasses institucionais e econômicos. Com isso, mediante a tentativa de contrariar a Constituição e tentar um segundo mandato, Pacheco se viu forçado a deixar a presidência em 1972, completamente desacreditado pela população e pelos grandes capitais agrários e financeiros. O resultado foi um crescente e desajeitado protagonismo político dos militares em meio à precária estabilidade parlamentar, imerso em uma situação de virtual “empate” de hegemonias e vetos recíprocos, tendo como pano de fundo agudos conflitos sociais ante a repressão estatal (CAETANO; RILLA, 1987).

Em 1973, assumiu o governo Juan María Bordaberry, que tinha origem no ruralismo uruguaio, mas, de certa maneira, simbolizava a continuidade de Pacheco (FINCH, 2018). Entretanto, a crise generalizada empurrava o poder diretamente para as mãos dos militares. Assim, dez dias após assumir, Bordaberry determinou a criação do “Consejo de Seguridad Nacional” (COSENA). Dessa forma, o governo passava a ser diretamente integrado à cúpula de comando militar (CAETANO; RILLA, 1987). Em junho do mesmo ano, Bordaberry dissolveu as Câmaras de representantes e fechou o palácio legislativo. Em seu lugar, foi criado um “Conselho de Estado” para assumir as funções legislativas e foi “facultada” às Forças Armadas adotar todas as medidas que pudessem assegurar os serviços públicos essenciais.

Imediatamente, na mesma madrugada, os líderes da CNT, reunidos na “Federación del Vidrio”, em La Teja, zona metropolitana de Montevidéu, lançaram as bases de um plano para uma greve geral de resistência ao golpe de Estado, consistente em ocupação generalizada de fábricas e em estado de assembleia permanente. A greve geral obteve ampla repercussão na cidade de Montevidéu e se estendeu a outras cidades médias como Paysandú. Os grevistas receberam apoio da Frente Amplio, da Universidad de la República e dos grêmios universitários, congregados na “Federación de Estudiantes Universitarios de Uruguay” (FEUU). Na impossibilidade de neutralizar a greve geral e dividir o comando dos trabalhadores, as Forças Armadas partiram para a repressão direta. A CNT foi declarada ilegal, as fábricas ocupadas eram cercadas e os grevistas brutalmente desalojados. As refinarias da “Administración Nacional de Combustibles, Alcoholes y Portland” (ANCAP), a agência estatal de produção de combustíveis, foram desocupadas em verdadeiras operações de guerra, com o uso de tanques de combate. Por meio de decreto, os líderes grevistas foram demitidos sem direito a indenização. Depois de 15 dias de resistência, ante a forte repressão, as principais entidades sindicais decidiram recuar e continuar a luta por outros meios (PORRINI, 2003).

Paralelamente à repressão aos trabalhadores, o governo ditatorial passou a perseguir as principais figuras políticas de oposição. Com base na Doutrina de Segurança Nacional “antimarxista”, Líber Seregni, principal líder da Frente Amplio, foi preso, os partidos declarados ilegais e se desencadeou uma forte onda repressiva mediante a censura à imprensa, detenções em massa, restrição das liberdades civis etc. Qualquer indício de simpatia ideológica por organizações de esquerda entre funcionários públicos ou da educação levavam-nos à exoneração sumária. Em meados da década de setenta, o Uruguai era o país com a mais elevada proporção de presos políticos em relação à sua população total (FINCH, 2018). Inclusive, as violações sistemáticas aos Direitos Humanos levaram o governo estadunidense de Jimmy Carter (1977-1981) a suspender temporariamente a ajuda financeira e militar ao Uruguai. A ditadura autodenominada “civil-militar” se institucionalizou por meio de Atos Institucionais, a exemplo do ocorrido no Brasil. Ante o fim da ameaça guerrilheira, totalmente suplantada em 1972, o regime buscava se legitimar com base na estabilidade política partidária e econômica. No campo econômico, as políticas neoliberais do ministro Alejandro Végh Villegas, no que se refere ao controle da inflação, obtiveram bons resultados em favor do setor financeiro especulativo, mas a um alto custo social evidente desde o final da década de setenta.

No âmbito político partidário, Bordaberry foi mantido no cargo pelos militares somente até 1976, ao que se seguiram dois sucessores civis, até 1981, quando se deu a nomeação do general Gregório Álvarez. Nesse momento, o regime encontrava-se amplamente desgastado e pressionado por uma rápida abertura política. A estagnação econômica, seguida da queda de 14% do PIB, da crescente alta da inflação e do aumento da dívida externa, na casa dos US$ 4,6 bilhões, aceleraram a transição e restabelecimento de um regime democrático. No entanto, o discurso oficial do governo se pautava na necessidade de uma transição segura e controlada, na qual as estruturas políticas e institucionais seriam saneadas e remodeladas (FINCH, 2018). Uma vez agendadas novas eleições, os militares se encarregaram de neutralizar as principais forças políticas contrárias, para garantir o resultado mais favorável ao regime. Por exemplo, a Frente Amplio foi restaurada, mas a sua principal liderança, Líber Serengni, foi declarado inelegível. Desta feita, em 1985, o candidato de direita moderada Julio María Sanginetti, do Partido Colorado, saiu vencedor do pleito com cerca de 31% dos votos. No mesmo ano, foram liberados 250 ex-guerrilheiros Tupamaros, os quais foram reabilitados e ingressaram na Frente Amplio (FINCH, 2018).

Todavia, a impunidade aos agentes do Estado perpetradores da repressão e das violações aos Direitos Humanos mantém-se no Uruguai até os dias atuais. Em 1986 foi proposta e promulgada por Sanguinetti a “Ley de Caducidad”, de anistia aos torturadores. Um referendo de 1989, que colocou em pauta a discussão popular de manutenção de tal anistia, foi aprovado com 57% dos votos. Somente em 2011 a “Ley de Caducidad” foi declarada sem efeito. Porém, uma decisão da Corte Suprema do Uruguai, em 2013, considerou os crimes de violações aos Direitos Humanos, perpetrados durante a Ditadura Civil-Militar uruguaia (1973-1985), sujeitos à prescrição e, portanto, não poderiam ser julgados. Contudo, mesmo diante da impunidade, as políticas e iniciativas por memória, verdade e justiça, têm se multiplicado no país.