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Qatar: Sauditas tentam mostrar força ao boicotar emirado rebelde

Autora: Isabelle C. Somma de Castro

São Paulo, 14 de Junho de 2017

O rompimento das relações de seis países com o Qatar levanta importantes questões, como a reconfiguração da liderança saudita na região, um movimento que se encontrava em contenção durante a administração de Barack Obama. Agora, esse movimento se encontra em uma nova dinâmica com a ascensão de Donald Trump à presidência dos EUA.

A justificativa para a ação por parte da Arábia Saudita, que liderou o boicote, é de que o governo do Qatar “protege vários grupos terroristas e sectários que têm como objetivo desestabilizar a região”. O Qatar realmente tem se envolvido no financiamento de grupos como o Hamas, a Irmandade Muçulmana e alguns que atuam na Síria. Mas a própria Arábia Saudita também tem feito o mesmo há várias décadas, pelo menos desde a invasão soviética do Afeganistão, em 1979. Riad vem armando grupos ativistas islâmicos com vistas em consolidar sua hegemonia não apenas econômica, mas também de sua vertente wahabita, uma visão extrema do Islã.

A grande questão que incomoda os sauditas é a aproximação do Qatar com o Irã, seu arqui-inimigo. Sauditas e iranianos eram dois grandes aliados dos norte-americanos no Oriente Médio até 1979, quando a Revolução Islâmica trouxe à tona um governo hostil a Washington. Desde então, a Arábia Saudita vem opondo-se aos iranianos em conflitos regionais, levantando a bandeira de uma divisão irreconciliável entre sunitas e xiitas. Ao mesmo tempo, pretende consolidar sua hegemonia na região, contando com o reforço de uma aliança com os EUA e liderando o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), do qual o Qatar faz parte.

Com o acordo nuclear firmado em 2015, durante o governo Obama, os sauditas se viram seriamente contrariados. A reaproximação dos velhos inimigos preocupou a família real saudita, mas isso mudou após a eleição de Donald Trump. Os sauditas se mostraram hábeis em logo aproximar-se da nova administração norte-americana, que queria se distanciar da política externa de Obama. A primeira viagem internacional do presidente eleito, no último mês de maio, foi exatamente para a Arábia Saudita. Tal gesto contrariou todo o ambiente bélico anterior entre as duas partes. Trump afirmou durante a campanha presidencial que os sauditas maltratam mulheres, matam homossexuais e que o governo do país tem ligações  aos atentados de 11 de setembro. Mas o presidente eleito aquietou-se ao fechar um acordo milionário com Riad, que se comprometeu a comprar 110 bilhões de dólares em armamentos nos próximos anos, o que deve ajudar a inflar ainda mais os conflitos na região.

Durante a viagem, Trump também demonstrou que revisará o acordo com os iranianos e os manterá como antagonistas durante a sua administração. Também deu sinal verde para que os sauditas combatam com firmeza os “rebeldes” da região, como os houthis do Iêmen e a minoria insurgente do Bahrein, que já vêm sendo duramente submetidos pelas tropas do CCG. O principal deles, contudo, é o governo do Qatar.

O pequeno emirado está em rota de colisão com os sauditas desde que optou por uma política mais independente. Investiu em amizades que desagradam o vizinho grande e poderoso, como, por exemplo com a Irmandade Muçulmana, grupo egípcio que venceu as eleições de 2012 e foi apeado do poder em um golpe militar no ano seguinte, bem como o Hamas.

Mas, é a Al Jazeera o pomo da discórdia. A influente rede internacional de notícias tem desagradado a família real saudita pelas críticas ao regime e a exposição de suas contradições, principalmente violações de direitos humanos e o tratamento irascível dado à oposição e a minoria xiita do país. Os sauditas proibiram a veiculação de todas as plataformas da Al Jazeera, e vêm pressionando o emirado a fechar a rede.

Em 2014, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein já haviam retirado seus embaixadores do Qatar por oito meses devido ao apoio dado à Irmandade Muçulmana, que havia sido defenestrado do poder no Egito, principalmente através da Al Jazeera.  Agora, além de retirar seus diplomatas, o boicote, que ainda conta com Egito, Iêmen, Maldivas e o governo do Leste da Líbia, se estendeu ao espaço aéreo, terrestre e marítimo além das exportações. Cidadãos do Qatar também terão de deixar esses países. A exportação de gás natural, maior fonte de renda do Qatar, ficará prejudicada assim como a compra de alimentos e água, que eram importados especialmente da Arábia Saudita e Egito – Turquia e Irã já se ofereceram para aumentar suas exportações. Os voos da empresa aérea do país também estão sofrendo cancelamentos e tendo de desviar dos espaços aéreos dos vizinhos, o que provoca mais gastos e viagens mais longas.

O duro recado dado pelos países que o circundam, em especial a Arábia Saudita, deverá ser absorvido pelo jovem Emir Tamim, do Qatar, a maior liderança do país. A pressão por uma mudança no detentor do trono do emirado pode levar o Emir a repensar sua política externa e fazer com que a Al-Jazeera aquiesça. Afinal, o recado também vem de um mensageiro muito influente, Washington.

Isabelle C. Somma de Castro é pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais (NUPRI) e no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, com bolsa FAPESP.