Artigo | edição 4 | Janeiro-Abril de 2009
Adaptação literária no cinema brasileiro contemporâneo: um painel analítico
 
Marcel Vieira Barreto Silva |
 
Cinema brasileiro contemporâneo e o lugar da adaptação

Na ainda parca bibliografia sobre o cinema brasileiro contemporâneo, várias abordagens foram tomadas, que vão desde a apreciação estética das obras, passando pela investigação sociológica dos temas abordados, em sua comparação com a realidade histórica, até o entendimento da organização produtiva do cinema, a partir dos dados do mercado e da relação burocrática com as leis de incentivo. Essas perspectivas dão conta de boa parte dos problemas referentes ao assunto, articulando a manifestação concreta dos filmes com as formações históricas que estruturam a produção de cinema no Brasil de hoje.

Nesse conjunto de reflexões, algumas assertivas foram feitas para tentar explicar a cinematografia atual em sua totalidade. A primeira delas, e talvez a mais corriqueira, é que a principal característica dessa produção “foi a diversidade, não apenas tomada como fato, mas também como um valor” (XAVIER, 2001: 41). Uma vez que não há um projeto político-ideológico comum que unifique – ainda que simbolicamente – um grupo expressivo de cineastas e de obras (e mesmo porque vários diretores, facilitados pela Lei do Audiovisual, fizeram apenas um filme e nada mais) o estigma da diversidade funciona para justificar a ainda confusa compreensão do período.

Todavia, essa questão da diversidade deve ser relativizada, pois na história do cinema nacional, embora tenhamos condições de avaliar alguns períodos pela predominância ou importância histórico-social de gêneros ou de movimentos, temos que lembrar que, por exemplo, “existiam outros filmes além das chanchadas e da Vera Cruz nos anos 50, assim como existiam filmes não-cinemanovistas na década de 60” (CAETANO et al., 2005: 38). Numa cinematografia como a brasileira, que sempre transitou entre as tentativas de consolidação de uma produção industrial e as buscas de representação da realidade e transformação estética contra os modelos narrativos dominantes (ambos os movimentos muito contraditórios e profundamente marcados pela condição subdesenvolvida, no sentido pauloemiliano da expressão), a questão da diversidade é antes um atavismo histórico que uma novidade congregadora. Longe de explicar plenamente o problema, implica na necessidade de apontar que o discurso da diversidade surge, de fato, para ocupar o espaço deixado pela ausência radical de um discurso unitário.

    Perceber «diversidade» em uma produção com uma média de cinqüenta títulos por ano não tem maior rigor crítico nem menor redundância do que notar que esta cinematografia de cinqüenta títulos é composta por cinqüenta filmes. É talvez uma consideração atraente para a apologia, conveniente a alguns, de uma certa representatividade cultural – mas não se sustenta como olhar crítico, uma vez que se exime de perceber, a partir dos «filmes diversos», quais são as forças dominantes e o que elas geram, assim como se exime de estudar com atenção os casos de transgressão à norma e de escape (CAETANO et al., op. cit.: 38).

Outro fator de relevância, a partir do qual se procura explicar o cinema nacional hoje, é a sua relação com a televisão e a publicidade. Essa abordagem investiga tanto as formas de representação oriundas das estéticas televisiva e publicitária, que foram – em vários níveis e com resultados diferenciados – assimiladas pelos filmes, quanto o trânsito de profissionais entre esses nichos de mercado. Além disso, busca-se compreender as intersecções produtivas que transportaram alguns produtos televisivos – em especial, mas não unicamente, os produzidos pela Globo Filmes – para as salas de cinema (1).

Ao par desses pensamentos analíticos, que ensejam construir uma unidade interpretativa para um amálgama profundamente matizado de obras concretas, a relação entre literatura e cinema nunca ocupou lugar destacado na compreensão do período. Basta observarmos os principais livros, em caráter panorâmico, sobre o cinema brasileiro contemporâneo – «Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada» (ORICCHIO, 2003), «Cinema Brasileiro 1995-2005: Ensaios sobre uma década» (CAETANO, org., 2005) e «The New Brazilian Cinema» (NAGIB, org., 2003) –, e constataremos que apenas este último possui uma sessão dedicada às adaptações fílmicas (com dois capítulos, de Stephanie Dennison e Maria Esther Maciel, dedicados a estudos de caso).

Diante disso, vale perguntar: qual o motivo dessa ausência, se entre 1995 e 2006 foram feitos mais de cem filmes declaradamente oriundos de fontes literárias? Uma vez que a adaptação fílmica continua sendo uma relevante forma de construir as obras, em que consiste essa observação apenas tangencial do fenômeno (2)? No início do período, o olhar da crítica e dos acadêmicos se lançou quase que exclusivamente à busca de respostas mais imediatas para as questões urgentes da nova constituição do cinema brasileiro contemporâneo – o que, de fato, se justifica pela alteração dos parâmetros de realização dos filmes e sua relação com as novas formas de representação da realidade brasileira implicadas em cada obra. Além disso, é fundamental perceber que as modalidades de envolvimento entre cinema, televisão e publicidade, na conjuntura atual, encampam alterações realmente substanciais no que concerne aos fluxos da cultura contemporânea.

Não obstante essas ressalvas, nada de concreto legitima a carência de avaliações interpretativas mais profundas sobre o estudo de literatura e cinema na produção contemporânea. Por isso, este artigo insere-se na necessidade de se construir um panorama amplo e minucioso nas investigações factuais e analítico-interpretativo na apreciação estética das obras. Os movimentos de aproximação e afastamento entre cinema e literatura no Brasil contemporâneo são evidenciados pela adaptação literária, que, como tal, define-se como um processo cultural que tanto é formado pelas condições sociais em que ocorre quanto as forma, dialeticamente, na manifestação concreta dos filmes. Estes se tornam, agora, não estruturas fechadas e auto-enunciativas – que uma análise formalista dos procedimentos estilísticos poderia explicar com clareza –, mas um movimento polifônico de vozes e imagens conflitantes, em cuja base repousa o entendimento de importantes aspectos da cultura brasileira de hoje.


Aspectos conceituais da adaptação literária

A preocupação de se entender as relações entre literatura e cinema é muito antiga e repousa nas primeiras impressões que os próprios escritores tiveram, ao verem tornados «visuais» os personagens e espaços literários que cada qual, enquanto leitor individual, só conhecia mentalmente. Virginia Woolf (1926), por exemplo, criticava uma das adaptações fílmicas (3) de «Anna Karenina», romance do russo Leon Tolstoi, afirmando que o cinema parasitava a literatura ao não inventar ele próprio as suas histórias. Desse modo, segundo a escritora britânica, para se estabelecer como arte autônoma, o cinema deveria procurar a sua especificidade particular, e isso só seria possível pela experimentação de suas próprias possibilidades estilísticas.

Desse entendimento da relação entre cinema e literatura como parasitária e subserviente, até chegar à idéia mais corrente hoje em dia, que entende o fenômeno a partir das noções de dialogismo e intertextualidade, passaram-se não apenas inúmeros momentos de consolidação e resistência da linguagem cinematográfica, como também diversos apartes teóricos que refletiram sobre o problema. Como um procedimento estilístico – que remonta não apenas ao início do cinema, mas a toda atividade artística que se constrói a partir de uma obra anterior –, a adaptação cinematográfica é o processo através do qual uma obra (literária, televisiva, radiofônica etc.) tem seus elementos considerados constitutivos transpostos para uma narrativa fílmica. Esse processo, assim tão sucintamente definido, congrega, no entanto, uma série de questões práticas e teóricas que devem ser consideradas, seja a tentativa de fidelidade em relação ao texto original (e aqui a palavra “tentativa” evidencia a motivação da empreitada, não a materialidade do resultado), seja a recriação deliberada de certos elementos em outros contextos, ou ainda questões teoricamente mais profundas, como tensões entre sistemas de representação, poéticas de gêneros e pontos de vista narrativos e ideológicos. A abordagem analítica de uma adaptação cinematográfica deve, portanto, partir do pressuposto de que o livro e o filme nele baseado são “dois extremos de um processo que comporta alterações de sentido em função do fator tempo, a par de tudo o mais que, em princípio, distingue as imagens, as trilhas sonoras e as encenações da palavra escrita e do silêncio da leitura” (Xavier, 2003: 61).

A noção de fidelidade (e, conseqüentemente, submissão) estilística do filme em relação ao livro que adapta – traço fundamental não só nos primeiros debates teóricos acerca da adaptação cinematográfica, como também do ponto de vista de boa parte da crítica e dos espectadores – tende a criar uma relação de primazia em relação às obras; isto é, impõe um valor pregresso, no texto-fonte, que o filme deveria capturar e adequar a seus códigos representativos. Esse paradigma da fidelidade ganhou atenção, principalmente, porque, como indica Robert Stam (2005: 3), “(a) algumas adaptações «realmente» falham em ‘realizar’ o que mais apreciamos nos romances fontes; (b) algumas adaptações são, em verdade, melhores que outras; e (c) algumas adaptações perdem ao menos alguns dos aspectos salientes de suas fontes”.

O problema de admitir a aporia da fidelidade como categoria comparativa, em relação ao processo de adaptação, é o efeito de primazia que se dá ao texto-fonte. De fato, a adaptação cinematográfica é um processo intertextual, anti-hierárquico, plural, hibridizante, multicultural e canibalizante. Essa compreensão aponta para uma atitude metodológica fundamental em relação aos estudos de adaptação cinematográfica: a adaptação é uma relação entre dois sistemas simbólicos distintos. A obra dita “original” é escrita num determinado período, influenciada por uma série de códigos de representação e por um momento histórico delimitado, do mesmo modo que a adaptação fílmica dessa obra. O diálogo se desenvolve não só entre o filme e o texto primevo, mas com uma série de outras referências, inclusive cinematográficas.

Além da diferença entre o contexto de realização do livro e o do filme adaptado, também as formas de cada um são diferentes, com meios próprios de representação que contribuem para compreender a adaptação como uma relação intersemiótica:

    Uma adaptação é automaticamente diferente e original devido à mudança de meio. A alteração de um meio verbal «single-track» como o romance, para um meio «multitrack» como o filme, que pode representar não só com palavras (escritas ou faladas) mas também com música, efeitos sonoros, e imagens fotográficas em movimento, explica a improbabilidade, e eu diria mesmo a “indesejabilidade”, da adaptação literal. (STAM, op. cit.: 3-4).

A condição relacional da adaptação, no entanto, pode ser entendida a partir de várias perspectivas. “Apropriação”, “assimilação”, “derivação”, “dialogismo”, “hibridização”, “intertextualidade”, “recriação”, “re-interpretação”, “tradução”, “transcodificação”, “transcriação”, “transformação”, entre outros, são termos comumente associados à idéia de adaptação, os quais, em maior ou menor grau, referem-se a posicionamentos metodológicos particulares. As novas teorias da adaptação, todas imbuídas da tarefa de transcender o discurso da fidelidade, apontam caminhos para metodologias e abordagens mais abrangentes, no sentido de acompanhar outras variantes da relação entre cinema e literatura. Se não adianta apenas catalogar as semelhanças e diferenças entre um filme e um livro (ou entre os códigos representacionais do cinema, do teatro e da literatura), vem a ser uma contribuição importante relacionar a análise textual comparativa (foco quase exclusivo dos trabalhos até então) a uma perspectiva mais ampla que envolva tanto os meios de produção cinematográfica, mercado editorial e circuito de exibição – inserindo a leitura interpretativa das obras no movimento dos vários agentes produtores, realizadores e exibidores. Também seria importante apontar as relações estéticas através das quais as obras artísticas representam em cada meio (literário, teatral ou fílmico) uma realidade sócio-cultural dada.

Analisada de maneira abrangente, portanto, a relação entre cinema e literatura pode também indicar a maneira como um determinado período da produção fílmica representa a realidade, suas escolhas estéticas e primazias do olhar em relação à literatura do presente e do passado. Para se entender a adaptação fílmica como um processo cultural – cujas modalidades variam no decorrer do tempo e das transformações sociais, a partir do movimento dialético que interseciona procedimentos estéticos e realidades históricas –, é fundamental direcionar o olhar para uma visão mais ampla da adaptação.

    Como a adaptação serve para o cinema? Que condições existem no estilo fílmico e na cultura cinematográfica para garantir ou exigir o uso de protótipos literários? Embora o volume de adaptações possa ser calculado como relativamente constante na história do cinema, sua função particular em cada momento está longe de ser constante. As escolhas do modo de adaptação e dos protótipos sugerem uma grande idéia da percepção do cinema acerca de seu papel e suas aspirações de década para década. Mais ainda, as estratégias estilísticas desenvolvidas para alcançar equivalências proporcionais necessárias para construir histórias semelhantes não apenas são sintomáticas de um período estilístico, como podem crucialmente alterar esse estilo (ANDREW, In: NAREMORE, 2000: 35) (4).

Desse modo, analisaremos neste artigo a adaptação literária – não a partir de uma metodologia comparatista, mas com o intuito de traçar um painel analítico de sua presença no cinema brasileiro contemporâneo. Nesse sentido, investigar quais os caminhos e as preferências no que concerne à adaptação literária pode abrir espaço para reflexões sobre a produção cultural de um país e de um período, pois evidencia as nuances de uma construção dialógica e mutuamente conectada. Interessar-nos-á, portanto, na observação de um conjunto tão matizado de filmes, a análise de como um artifício fílmico particular – a adaptação cinematográfica – foi desenvolvido no decorrer do período. É partindo dessa percepção que pretendemos analisar o papel da adaptação fílmica no cinema brasileiro contemporâneo.


Literatura e cinema brasileiro contemporâneo: um painel de afinidades eletivas

De antemão, temos que apontar que em termos quantitativos, a presença efetiva da adaptação no conjunto de filmes contemporâneos consiste em cerca 38% do total (isto é, dos 285 longas-metragens ficcionais realizados no período, 105 são, declaradamente, oriundos de uma fonte literária) (5). Esses dados quantitativos, longe de explicarem o problema, apenas apontam para a necessidade de compreender qual a função da adaptação literária na produção contemporânea.

A partir do arcabouço concreto dos filmes, podemos vislumbrar, em uma apreciação preliminar, três perspectivas para a organização das obras com características afins: primeiramente, há um grupo que chamaremos de presenças, que representa aqueles filmes cujas fontes literárias remontam a autores historicamente adaptados no cinema nacional, como Machado de Assis – nos filmes «Memórias Póstumas» (André Klotzel, 2001), «Dom» (Moacyr Góes, 2003), «A cartomante» (Wagner de Assis e Pablo Uranga, 2004) e «Quanto vale ou é por quilo?», (Sérgio Bianchi, 2005) – e Nelson Rodrigues – em «Traição» (Arthur Fontes, Cláudio Torres e José Henrique Fonseca, 1998), «Gêmeas» (Andrucha Waddington, 2000) e «Vestido de Noiva» (Joffre Rodrigues, 2006).

Além disso, são «presentes» também aqueles autores que representam uma novidade substancial na história do cinema brasileiro. Nesse caso, destacamos as adaptações da obra de Raduan Nassar – «Um copo de cólera» (Aluízio Abranches, 1999) e «Lavoura arcaica» (Luiz Fernando Carvalho, 2001) –, de Sérgio Sant’anna – «Bossa Nova» (Bruno Barreto, 2000) e «Crime delicado» (Beto Brant, 2006) –, de Fernando Bonassi – «Um céu de estrelas» (Tata Amaral, 1996) e «Latitude zero» (Toni Venturi, 2000) – e de Marçal Aquino – «Os matadores» (1997), «Ação entre amigos» (1998) e «O invasor» (2001), filmes de Beto Brant.

O segundo bloco de afinidades eletivas, nessa abordagem preambular, denomina-se «ausências», e diz respeito a escritores do passado cujas obras foram importantes matrizes para o cinema brasileiro – aqui, vale destacar Graciliano Ramos, cujos romances foram fundamentais para a construção estética do Cinema Novo. De fato, a última adaptação de Graciliano Ramos foi «Memórias do Cárcere» (Nelson Pereira dos Santos, 1984), não por acaso, o filme que “fecha o diálogo do Cinema Novo com Graciliano Ramos, cuja experiência do cárcere é agora assumida como uma alegoria dos anos de chumbo no momento em que se consolida a abertura” (XAVIER, 2001: 34). Ainda de acordo com Ismail Xavier, o ponto limite da hegemonia do cinema moderno na tentativa de construir uma linguagem e uma cinematografia nacionais é exatamente 1984, ano tanto de «Memórias do Cárcere», quanto de «Cabra Marcado Para Morrer» (Eduardo Coutinho).

Além de Graciliano Ramos, é importante apontar para a ausência quase completa do Romance de 1930 no cinema brasileiro contemporâneo. Para se ter uma idéia, o Romance de 1930, importante fonte estético-ideológica para os cinemanovistas, ressurge na contemporaneidade em apenas dois momentos: «Bela Donna» (Fábio Barreto, 1998), a partir do romance «Riacho Doce», de José Lins do Rego, e «O Quinze» (Jurandir Oliveira, 2004), do romance homônimo de Raquel de Queiroz.

Afora isso, podemos considerar como ausentes, de uma maneira reversa, alguns escritores contemporâneos de relevância que não foram adaptados no período atual. Por relevantes, consideramos aqueles autores com uma obra consistente, com singularidades estéticas e ressonância crítica no debate sobre a literatura contemporânea no Brasil: nesse caso, vale apontar autores como Bernardo Carvalho, Luiz Ruffato, Milton Hatoum e Rubens Figueiredo. Nenhum deles foi levado ao cinema, embora a maioria publique desde fins da década de 1980 e começo da de 1990, sendo premiados em importantes prêmios literários nacionais e internacionais.

Finalmente, o que chamaremos de «primazias do olhar» consiste nas preferências de abordagem do cinema contemporâneo sobre os espaços e as construções simbólicas do Brasil, e como essas representações foram mediadas pela literatura. Nesse sentido, vale organizar a investigação em torno dos dois espaços que, na formação do cinema moderno brasileiro, eram lugares prediletos da representação de identidade nacional e de anseio revolucionário: o sertão nordestino e as periferias urbanas. Nas imagens criadas pelo cinema moderno brasileiro – de um período que começa em fins da década de 1950 e se estende pelos anos 1970 –, “ambos são espaços tanto reais quanto simbólicos, que em grande escala invocam o imaginário brasileiro; são terras em crise, onde personagens desesperados e revoltosos vivem e deambulam; eles são sinais de uma revolução iminente ou de uma modernidade falida” (BENTES apud NAGIB, 2003: 121) (6).

Nesse conjunto de imagens recorrentes, é importante avaliar como sertão e periferia foram construídos, em diálogo com a historiografia do cinema brasileiro, enquanto lugares representativos de uma realidade nacional. Nesse sentido, é importante perceber que o cinema contemporâneo “exibiu sua diferença, mas não esteve preocupado em proclamar rupturas. Privilegiou alguns dados de continuidade, como, por exemplo, na série de filmes que focalizaram os temas da migração, do cangaço e da vida na favela, num retorno a espaços emblemáticos do Cinema Novo” (XAVIER, 2001: 42).

No nosso caso, é fundamental apontar que as representações contemporâneas desses espaços – que em alguns momentos tenderam a uma espetacularização imagética da realidade local – foram em muito sustentadas por uma fonte literária. É o caso, quanto ao sertão, de obras como «Crede-mi» (Bia Lessa e Dany Roland, 1997), «Guerra de Canudos» (Sérgio Rezende, 1997), «O auto da compadecida» (Guel Arraes, 2000), «Abril despedaçado» (Walter Salles, 2001), «Lisbela e o prisioneiro» (Guel Arraes, 2003), «O quinze» (Jurandi Oliveira, 2004), «O coronel e o lobisomem» (Maurício Farias), «A máquina» (João Falcão, 2006) e «Canta Maria» (Francisco Ramalho Jr., 2006); quanto às periferias urbanas, a lista congrega, entre outros, filmes como «Um céu de estrelas» (Tata Amaral, 1996), «Navalha na carne» (Neville d’Almeida, 1997), «Orfeu» (Carlos Diegues, 1999), «O invasor» (Beto Brant, 2001), «Cidade de Deus» (Fernando Meirelles, 2002), e «O homem do ano» (José Henrique Fonseca, 2003).


Preferências genéricas e tipologias críticas

Quanto aos gêneros, a primeira linha de contato se estabelece entre livros e filmes de «violência», isto é, uma literatura de cunho policial e centrada nas periferias urbanas, praticada por autores como Marçal Aquino, Fernando Bonassi, Paulo Lins, Patrícia Melo, Luiz Alfredo Garcia-Roza e Toni Belloto – cuja principal matriz remonta à obra literária de Rubem Fonseca. Esses autores tematizam as transformações urbanas e o adensamento do fosso econômico entre as classes sociais, e deram atenção ao problema da violência urbana no período. Todos eles – alguns mais de uma vez – foram adaptados.

Uma segunda linha de contato concerne aos filmes de ficção oriundos de literatura não-ficcional. Embora outro dado relevante do cinema brasileiro contemporâneo tenha sido um «boom» da produção documental – tendo em vista a oportunidade das leis de incentivo, o barateamento do equipamento digital e a exibição em canais fechados de televisão –, vários livros assumidamente biográficos, ao invés de tornarem-se documentários, viraram ficção: «O que é isso, companheiro?» (Bruno Barreto, 1997), «Bicho de sete cabeças» (Laís Bodanski, 2000), «Lara» (Ana Maria Magalhães, 2002), «Carandiru» (Hector Babenco, 2003), «Garrincha: estrela solitária» (Milton Alencar, 2003), «Olga» (Jayme Monjardim, 2004) e «Cazuza – O tempo não pára» (Sandra Werneck e Walter Carvalho, 2004).

Ademais, uma terceira linha seria relativa à literatura dramática, fruto de peças contemporâneas de expressivo sucesso, que o cinema adapta a fim de seguir na esteira do sucesso obtido nos palcos. Nesse caso, vamos destacar os filmes «A partilha» (Daniel Filho, 2001), «Domésticas – o filme» (Fernando Meirelles, 2001), «Querido estranho» (Ricardo Pinto e Silva, 2002), «Mais uma vez amor» (Rosana Svartman, 2005), «Fica comigo esta noite» (João Falcão, 2006) e «Irma Vap: o retorno» (Carla Camurati, 2006) (7).

Diante desse painel analítico (ainda ampliável), devemos nos colocar uma questão crítica fundamental: a existência dessas linhas de contato, agregando obras literárias e fílmicas a partir de interesses partilhados, não questionaria a idéia de diversidade como dado estrutural da produção de cinema contemporâneo no Brasil? Contrariamente à noção de que não se pode unificar conceitualmente grupos de obras com perspectivas comuns, o olhar sobre a relação entre literatura e cinema indica a existência de algumas forças.

O que difere a produção atual de, por exemplo, o Cinema Novo (em que o contato com a literatura era mediado pela construção de um projeto estético-ideológico comum), é o conjunto de interesses que unifica esses grupos: hoje, esses interesses estão na nova dinâmica da organização social brasileira (como nos casos dos livros e filmes de violência), na condição limítrofe entre ficção e documentário na cinematografia contemporânea (nas obras ficcionais a partir de biografias), ou ainda no impulso capitalista de investir na recriação de obras anteriormente bem-sucedidas (como é o caso da adaptação de teatro contemporâneo).

Com a capacidade de organizar as obras adaptadas a partir de interesses comuns, a cinematografia contemporânea, ideologicamente amparada pelo discurso da diversidade, demonstra na verdade que os filmes e os livros, em sua realidade concreta, estabelecem relações entre si, tanto no plano estético quanto no da produção. Ainda é importante refletir sobre os casos específicos – livros e filmes adaptados, numa perspectiva comparativa – para aprofundar a compreensão do movimento que leva um conjunto específico de obras literárias para o cinema, obnubilando outras fontes e criando, com isso, uma presença particular da literatura nas salas de cinema.


Considerações finais

No cinema brasileiro contemporâneo, a adaptação fílmica ocupa um lugar de relevância, visto a quantidade de filmes produzidos que partem, declaradamente, de uma fonte literária. No entanto, a crítica cinematográfica não concedeu a atenção necessária ao fenômeno, porque há uma aparente desconexão estético-ideológica entre as produções de cinema e literatura no Brasil de hoje.

Uma vez que a característica comum, que une os filmes esteticamente bem-sucedidos, foi “o fato de eles terem sido triunfos individuais, resultado de um pensamento e de uma vontade de cinema igualmente individuais” (CAETANO et al., op. cit.: 38), a relação entre literatura e cinema no período tende a parecer também resultado de projetos individuais, em alguns casos estruturantes do conjunto da obra de um autor – como na parceria entre Beto Brant e Marçal Aquino, por exemplo – mas, na maioria das vezes, apenas circunstanciais do momento de realização do filme.

No entanto, essa desconexão aparente não se sustenta a partir de uma investigação minuciosa, pois, ao nos debruçarmos sobre a manifestação concreta das obras durante o período, algumas linhas de contato estabelecem-se. Essas linhas, que chamamos de «presenças», «ausências» e «primazias do olhar», são estruturadas a partir de motivações comuns entre as obras, esboçando também uma compreensão do período a partir dos interesses partilhados entre os filmes e suas fontes literárias.

Ao olharmos para a produção do período, é inegável perceber que as fontes literárias mudaram, as imagens e os tons mudaram, o país também mudou. Importante agora é avaliar as motivações históricas e estéticas dessas mudanças, tentando compreender como as transformações sociais e a nova estrutura produtiva, que estão na base do cinema brasileiro contemporâneo, manifestam-se na análise da adaptação cinematográfica no contexto atual.

 
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CAETANO, Daniel (org.). Cinema brasileiro 1995-2005: ensaios sobre uma década. Rio de Janeiro: Azougue, 2005.

NAGIB, Lúcia. O cinema da Retomada. São Paulo: 34, 2002.

________. (org.). The New Brazilian Cinema. Londres: I. B. Tauris, 2003.

NAREMORE, James (org.) Film adaptation. New Brunswick (EUA): Rutgers University Press, 2000.

ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

STAM, Robert. Literature through film: Realism, Magic, and the Art of Adaptation. Malden (EUA): Blackwell Publishing, 2005.

WOOLF, Virginia. The Cinema. In: The Captain’s Death Bed and Other Essays. London: The Hogarth Press, 1950, pp. 166-171.

XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

________. “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema”. In: PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Senac & Instituto Itaú Cultural, 2003, pp. 61-89

 
(1) Como é o caso, além dos já tradicionais filmes de Renato Aragão e Xuxa Meneguel, dos filmes «O auto da compadecida» (2000) e «Caramuru» (2001), ambos de Guel Arraes, «Castelo Ra-Tim-Bum» (Cao Hamburger, 1999), «Casseta e Planeta: A Taça do Mundo é Nossa» (Lula Buarque de Holanda, 2003), «Os normais» (José Alvarenga Jr., 2003) e «Seus problemas acabaram!» (José Lavigne, 2006), só para ficarmos com alguns.

(2) É importante evidenciar, todavia, que há uma série de artigos, comunicações e teses acadêmicas sobre o tema, tanto em programas de pós-graduação em Comunicação, quanto em Letras. Estruturados geralmente numa perspectiva comparatista, essas produções ainda não se propuseram a elaborar um panorama mais amplo do período.

(3) Como não há indicação no texto de a qual versão Woolf se refere, presume-se que, por questão temporal, ela esteja comentando uma das adaptações mudas, provavelmente de Pathé (1911) ou de Gardin (1914).

(4) Original em inglês. Tradução livre: “How does adaptation serve the cinema? What conditions exist in film style and film culture to warrant or demand the use of literary prototypes? Although the volume of adaptation may be calculated as relatively constant in the history of cinema, its particular function at any moment is far from constant. The choices of the mode of adaptation and of prototypes suggest a great deal about the cinema’s sense of its role and aspirations from decade to decade. Moreover, the stylistic strategies developed to achieve the proportional equivalences necessary to construct matching stories not only are symptomatic of a period’s style, but may crucially alter that style”.

(5) Fonte: Site da ANCINE. < http://www.ancine.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=804>. Acesso em 21/03/2007. Os dados da ANCINE não se referem aos filmes adaptados; a pesquisa sobre isso foi feita para embasar este artigo.

(6) Original em inglês. Tradução livre: “they are both real and symbolic lands which to a large degree invoke Brazilian imagery; they are lands in crisis, where desperate or rebellious characters live or wander; they are signs of a revolution to come or of a failed modernity”.

(7) Os filmes de Domingos Oliveira – «Amores» (1998), «Separações» (2002) e «Feminices» (2005) –, embora sejam adaptados de peças contemporâneas, talvez precisem de uma avaliação mais aguçada, pois fazem parte do projeto autoral do diretor de inter-relacionar teatro e cinema, problematizando ambos.

 
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