Artigo | edição 2 | Janeiro-Junho de 2008
Os principais valores presentes no discurso jornalístico da revista Veja
 
Alexandre Rossato Augusti |
 
A revista «Veja» é destaque entre o segmento de revistas informativas devido a seu poder de inserção (1) no país. De um total de 56 revistas que compreenderam a amostragem, 22 foram pautadas com matérias de capa sobre comportamento, o que corresponde a 39,28% do total considerado. Sobre a influência da mídia em relação ao comportamento, Lipovetsky (2004) afirma ser dificilmente contestável a idéia de que ela exerce um poder social em matéria de transformação de modos de vida, dos gostos e dos comportamentos. “A imprensa, o cinema, a publicidade e a televisão disseminaram no corpo social as normas de felicidade e do consumo privados, da liberdade individual, do lazer e das viagens e do prazer erótico: a realização íntima e a satisfação individual tornaram-se ideais de massa exaustivamente valorizados.” (2004: 70).

Ao considerar a sociedade contemporânea como acentuadamente orientada para o individualismo, devemos concordar com Bauman (2001), que caracteriza a individualidade contemporânea como uma fatalidade, não uma escolha. Isso se deve, explica o autor, justamente ao cenário da liberdade individual de escolher, onde não existe a opção de escapar à individualização. Tomemos ainda Giddens (2002), para quem o indivíduo vive uma biografia reflexivamente organizada em termos do fluxo de informações sociais e psicológicas sobre os possíveis modos de vida. A modernidade representa uma ordem pós-tradicional que suscita constantes decisões sobre o comportamento.

Sobre valores, Zabalda diz que são uma espécie de aura ao mesmo tempo visível e invisível, que o sujeito acompanha e que o identifica como pessoa e categoria social:

    Os valores são como os deuses da antiga Grécia, ou seja, como grandes e contraditórias fontes de energia e de força que movem as pessoas e os grupos em uma direção ou outra. Estimulam-no, orientam-no, exigem-lhe, condicionam-lhe, dão-lhe força, salvam-no, mas podem também destruí-lo. [...] No fundo, embora não sejam algo especialmente nítido e consciente, não podemos mover-nos sem eles, e, de uma maneira ou de outra, impregnam o que fazemos, dão-lhe um certo sentido. (ZABALDA, 2000: 21).

Rokeach (apud HERRIOT, 1976: 25) identifica duas funções cumpridas pelos valores: uma diz respeito a «padrões» que orientem a nossa conduta, ajudando-nos, por exemplo, a “avaliar e julgar, a louvar e a lançar culpas sobre nós mesmos e os outros”; a segunda função, que ele denomina «motivacional», refere-se ao componente que expressa nossos esforços no sentido de seguir um valor como, por exemplo, quando nos esforçamos por ser honestos.

O comportamento humano resulta de duas grandes pulsões (D’AMBROSIO, 2000): a «sobrevivência» do indivíduo e da espécie que, como em toda espécie viva, se situa na dimensão do momento; a «transcendência» do momento que, diferentemente do que ocorre nas demais espécies, se situa em uma outra dimensão, levando o homem a indagar “por quê?”, “como?”, “onde?”, “quando?”. O comportamento de cada indivíduo é aceito pelos seus próximos quando subordinado a parâmetros, que denominamos valores e que determinam os acertos e os equívocos na produção e utilização das intermediações criadas pelo homem para a sua sobrevivência e transcendência.

A hierarquia dos valores pode ser estabelecida a partir de «tipos motivacionais», que têm sido identificados tanto no Brasil (Tamayo & Schwartz) como em outras culturas (Schwartz). “Um tipo motivacional é um fator composto por diversos valores que apresentam similaridade do ponto de vista do conteúdo motivacional” (TAMAYO, 1994: 272) (2).

Os valores dominantes no discurso jornalístico da revista «Veja», que analisaremos nas reportagens sobre comportamento são «saúde», «inteligência», «prazer» e «beleza». Os dois primeiros pertencem ao tipo motivacional «auto-realização» e os dois últimos ao «hedonismo». É a busca desses valores que irá nortear essa análise sobre as reportagens de comportamento da revista «Veja».


Perspectiva Discursiva do Jornalismo

Um pressuposto básico e que orienta esse trabalho é que temos que admitir o jornalismo como um campo atravessado por relações de poder. É preciso considerar que o campo possui relativa autonomia e, portanto, poder, inclusive no âmbito dos profissionais. Os jornalistas exercem influência ativa na construção das notícias nas mais diversas etapas de sua produção, atuando também ativamente na construção da realidade.

Podemos pensar em três níveis (TRAQUINA, 2004) para verificar as notícias como uma “construção” social, como resultado de interações entre diversos agentes sociais. Em um primeiro nível, os jornalistas interagem com diversas fontes de informação. Nesse caso, muitos agem com o intuito de mobilizar as notícias como parte de sua estratégia comunicacional, criando os acontecimentos. Há, nessa etapa, promoção de acontecimentos. Em um segundo nível, a interação ocorre entre jornalistas como membros de uma comunidade que partilha uma identidade profissional, valores e cultura comuns. Devido às limitações de tempo, “[...] as interações têm lugar dentro e fora da sala de redação, e crescentemente num ambiente global de notícias, sem parar, 24 horas por dia”. (TRAQUINA, 2004: 29). Os profissionais do campo jornalístico definem, em última análise, as notícias e contribuem ativamente para a construção da realidade. Em terceiro nível, os jornalistas, na sua definição de notícias, também interagem silenciosamente com a sociedade, por via dos limites com que os valores sociais marcam as fronteiras entre o normal e o anormal, legítimo e ilegítimo, aceitável e desviante.

Entre as diversas teorias sobre jornalismo, aquela que provavelmente oferece uma visão mais completa das formas de estruturação das notícias e trata com mais propriedade alguns aspectos importantes para o estabelecimento de relações com esse trabalho é a teoria «interacionista» (3), sustentada sob o enfoque construcionista. As notícias, sob a visão dessa teoria, são o resultado de um processo de produção definido como a percepção, seleção e transformação de uma matéria-prima, reconhecida como acontecimento, em um produto (as notícias). Durante a seleção da matéria-prima, só adquire existência pública de notícia aquilo que se encaixa segundo determinados critérios de noticiabilidade (4).

A teoria construcionista (TRAQUINA, 2004) encara o processo de produção de notícias como um processo interativo no qual diversos agentes sociais exercem um papel ativo no processo de negociação que ocorre constantemente. Existem os promotores de notícias («news promoters»), aqueles que identificam uma ocorrência como especial; os «news assemblers», que são os profissionais que informam os acontecimentos públicos através de publicação e radiodifusão; e os «news consumers», os consumidores de notícias.

Traquina aponta o primeiro poder dos jornalistas: decidir o que é notícia, sabendo que a notícia dá existência pública aos acontecimentos (5). O segundo poder é “a última palavra” sobre a construção do acontecimento como notícia. “As notícias são construções, narrativas, ‘estórias’. As notícias são elaboradas com a utilização de padrões industrializados, ou seja, formas específicas que são aplicadas aos acontecimentos, como, por exemplo, a pirâmide invertida.” (TRAQUINA, 2004: 203).

Esse artigo trata o jornalismo sob a perspectiva discursiva. A revista «Veja» é um órgão informativo de alta circulação, no qual o saber e o poder que o constituem determinam a estrutura de seu discurso. A opção por observar o discurso deve-se a sua constituição como ferramenta que permite a observação de significações que remetem para outros lugares discursivos, diferentes daqueles facilmente observados no texto. Para Nascimento (2002: 13), falar em discurso jornalístico é falar de uma forma de ação, de uma forma de colocar em movimento relações sociais, não mais por sua delimitação temática, mas por seu contorno significante.

O discurso jornalístico não reflete a realidade (ROSA, 2002). A autora defende que ele traduz e a constrói através de recursos discursivos, simulando realidades a partir do sistema próprio de cada veículo em que os jornalistas captam um certo número de informações e que são transformadas em notícias por meio do discurso perpassado pelas rotinas produtivas, experiência do jornalista e pela ideologia e cultura do veículo.

Como referencial metodológico, utilizamos a Análise de Discurso (AD) de linha francesa. Pêcheux (apud MARIANI, 1999) define discurso como efeito de sentido (6) entre interlocutores. Dessa forma, os sentidos não estão nas palavras, coisas ou sujeitos, sendo formados no momento em que se dão os atos verbais e estes materializam uma relação com o momento histórico e com o lugar social ocupado pelos interlocutores em uma interação verbal. O sentido é definido por Orlandi (2001) como uma relação determinada do sujeito, que é afetado pela língua, com a história.

O conceito de formação discursiva (7) como o “lugar da construção do sentido (sua ‘matriz’, por assim dizer)” (PÊCHEUX apud ORLANDI, 1993: 108) ajuda-nos a entender que o sentido muda de acordo com a posição de quem o emprega, sendo determinado por “posições ideológicas postas em jogo no processo social-histórico em que as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas)”. (PÊCHEUX apud ORLANDI, 1993: 108).

Orlandi (2001) faz referência aos dois processos que articulam o discurso: a paráfrase e a polissemia. Podemos compreendê-los da seguinte forma: 1) paráfrase – um movimento de reiteração do mesmo, ou seja, posso dizer o mesmo de várias maneiras; 2) polissemia – há permissão para que sentidos diferentes apareçam e conversem.

    Na paráfrase, são produzidas diferentes formulações de um mesmo dizer. É o primado do mesmo. Na polissemia, há uma ruptura com um dizer estabilizado, sedimentado pela memória social; provocando um deslocamento de sentido(s) e instaurando o diferente, cuja primazia se acentua”. (LEITE, 2001: 112).

A noção de paráfrase é um pressuposto teórico essencial, já que iremos identificar as marcas discursivas dos valores representados por «Veja» em suas matérias sobre comportamento e apontar como elas constroem um efeito de reiteração ou paráfrase ao longo de textos diversos.

O jornalismo, sob o aspecto abordado por «Veja», aparece, inevitavelmente, como uma instituição com poder normatizador. Assume uma postura capaz de ditar normas para o leitor. Tem autonomia para determinar aspectos da vida particular do indivíduo. Considerando que o público padrão de «Veja» é a classe média, segmento em busca de dicas sobre como viver melhor e que não acessa facilmente aqueles profissionais que representam, muitas vezes, as fontes consultadas pela revista, esse poder tem mais chances de se concretizar. Remetendo o saber científico para o leitor, o discurso do veículo em questão aponta para o homem contemporâneo aquilo que deve determinar sua conduta. Segundo Nascimento (2002: 174), uma das principais características do discurso de «Veja» é pretender-se explicativo.

    A revista procura “explicar” as coisas do mundo para seus leitores e, para isso, recorre freqüentemente ao “conhecimento legitimado”, por meio de vozes consideradas autorizadas (professores, especialistas em áreas específicas, universidades, institutos de pesquisa, etc.) e dados comprobatórios (índices, porcentagens, gráficos, quantidades, datas). Explicar, adiantamos, é próprio de quem julga deter um saber.

Proponho essa análise a partir de observações de Nascimento, para quem o discurso de «Veja» se configura como um modelo explicativo que tem como base os assuntos da atualidade e que institui a própria revista como fonte de conhecimento, que fala de um lugar privilegiado de saber frente a um não saber.


Análise dos Valores

Sobre o método de análise, ressaltamos que as marcas indicativas dos sentidos de determinadas formações discursivas (FDs), e que surgem em forma de palavras ou trechos remetentes ao valor em destaque, aparecem em negrito. Também foi necessário criar um código para as reportagens às quais as SDs se referem, identificando esses textos com a letra T (8).

O movimento de reiteração de determinados sentidos, característico da paráfrase, é o que, ao final, permite-nos concluir quais são os principais valores reforçados por Veja. A análise mostrou que a revista retoma certos valores em reportagens diversas ao longo do corpus. A partir dessa observação, e após identificar os valores e suas marcas discursivas, foi feito um mapeamento da presença desses valores, o que nos permite compreender como a revista institui sentidos sobre eles construindo, assim, comportamentos contemporâneos. Esse mapeamento indica que eles podem ser reunidos em três grupos: 1) valores dominantes; 2) valores intermediários; 3) valores residuais. Apresento agora a análise dos valores dominantes, ressaltando que as SDs próprias de cada um deles têm caráter ilustrativo e não exaustivo, ou seja, não são a totalidade das SDs efetivamente analisadas (9).

Quatro valores são predominantes em nosso corpus porque aparecem em mais de 50% das reportagens (10). «Saúde» está presente em 77,27% de nosso corpus. Os valores «prazer», «beleza» e «inteligência» aparecem em 54,54% do total. As altas porcentagens revelam o poder de reiteração que a revista exerce em relação a alguns valores. Todos esses se concentram em dois tipos motivacionais, a «auto-realização» (saúde e inteligência) e o «hedonismo» (prazer e beleza).


Saúde

Manter ou conquistar uma vida saudável corresponde à marca discursiva encontrada com maior freqüência em nosso corpus. Consideramos os sentidos referentes ao que é conveniente à «saúde» tanto física quanto mental. Mentalidade limpa e bem-formada, que proporciona bem-estar ao espírito, também caracteriza um estado saudável, relevante para a conquista da «auto-realização».

    Depois de um século dedicado a estudar as neuroses, os doutores da alma acham que o melhor caminho agora é descobrir as raízes da saúde mental. (SD 195; T 1)

    Também é importante seguir uma dieta alimentar saudável e praticar exercícios físicos moderados, como ioga e natação. Essas medidas simples resolvem o problema de até 70% dos insones. (SD 208; T 2)

    Os médicos admitem que pessoas que rezam ou freqüentam igrejas regularmente: vivem mais; correm menos riscos de adquirir vícios; têm mais chances de abandonar vícios; contraem menos doenças sexualmente transmissíveis; têm menos depressão; sofrem menos de stress. (11) (SD 225; T 7)

    Um corpo saudável, por exemplo, ajuda a reagir melhor às situações estressantes. A prática regular de atividades físicas auxilia no controle da pressão sanguínea e mantém o coração funcionando em ritmo adequado. (SD 233; T 11)

    Naturais e esperados, os rituais de controlar se está tudo bem com o bebê são importantes para a segurança e a saúde física e emocional da criança. (SD 239; T 14)

    “Levo uma vida mais saudável, faço ginástica, corro quase todos os dias. Cuido daquilo que conquistei. [...]” (12) (T18)

    [...] venha-se de uma família longeva ou não, é sempre possível aumentar as chances de viver mais e de modo mais produtivo, cultivando-se hábitos sadios (SD 271; T 21)

    Nunca é tarde para abandonar os maus hábitos – e nunca é cedo demais para adotar práticas saudáveis. (SD 272; T 21)

    Os genes não são tudo (13)

    Boa alimentação, bons cuidados médicos, muita atividade física e mental: quem planta esses hábitos desde cedo colhe uma velhice saudável (SD 273; T 21)


Prazer

«Prazer» é um valor pertencente ao tipo motivacional «hedonismo», da mesma forma que o valor «beleza». O hedonismo, do grego «hedone», tem como princípio básico a busca do prazer. É uma doutrina que considera o prazer como a essência da felicidade ou que o exalta como suprema norma moral. Notemos que a concepção moderna do hedonismo volta-se para o prazer «do indivíduo» (14). Essas considerações nos ajudam a entender a lógica dos valores pertencentes a esse tipo motivacional.

Fazendo parte daqueles valores encontrados em 54,54% das reportagens, prazer corresponde a sensações ou sentimentos agradáveis que atendem a determinadas inclinações do ser humano. Essas sensações são sucedidas de alegria, contentamento, satisfação ou deleite e podem ocorrer devido aos mais diversos comportamentos, não só àqueles correspondentes ao sexo – como, por exemplo, o prazer de comprar. Apesar do prazer não estar restrito ao campo sexual, pudemos verificar em nossa análise que esse campo aparece como dominante no discurso de «Veja».

    [...] o sexo tântrico conduz à purificação espiritual e ao autoconhecimento, e somente iniciados em outros níveis da ioga podem ter acesso a ele. As relações sexuais duram horas ininterruptas [...] a promessa é de um prazer inigualável [...] (SD 5; T 5)

    Já o hiperorgasmo se assemelharia a uma explosão nuclear. Atingir esse patamar de prazer estonteante requer boa alimentação, não beber, não fumar, não usar drogas e fazer exercícios diários para enrijecer a musculatura genital. (SD 6; T 5)

    Não esqueça o lazer: reserve tempo para atividades que dão prazer, como ler um bom livro, ouvir música, adotar um hobby ou praticar esporte. (SD 29; T 11)

    A riqueza, diz ela (15), está no tempo que se dedica aos filhos, aos amigos, aos amores, à sensualidade e ao trabalho feito com prazer – e que compra, isso sim, uma vida digna. (SD 31; T 13)

    A própria expressão design superou a definição original, ligada a peças únicas de decoração, e abrange agora um espaço amplo. Serve para tornar os ambientes de trabalho mais prazerosos, melhorando a produtividade das empresas. (SD 33; T 15)

    É vital reservar um tempo para si mesmo e fazer aquilo que nos proporcione prazer, como meditar, ler um bom livro, levar o animal de estimação para passear ou fazer uma auto-análise em busca do autoconhecimento”[...]. (16) (SD 37; T 20)

    Praticar algum hobby, viajar para lugares diferentes e fazer atividades que proporcionam prazer serve como blindagem para o stress da vida moderna (SD 40; T 20)


Beleza

O belo geralmente tem formas perfeitas e proporções harmônicas. É agradável aos sentidos, podendo, inclusive, ser associado ao sublime. A «beleza» serve aos terrenos do amor e do sexo, assume importância no ambiente de trabalho e ainda funciona como meio para a projeção social. Na sociedade contemporânea, parece estar havendo um movimento em direção ao cultivo exagerado da aparência. Movimento esse que, associado a outros comportamentos, rompe com as barreiras, em outro momento mais sólidas, entre o público e o privado, facilitando que o último passe a fazer parte do âmbito do primeiro.

Os benefícios da beleza são exaltados com bastante ênfase na atualidade. A profunda preocupação com a aparência, muitas vezes associada à busca incessante e desmedida pela perfeição estética, também tem grande visibilidade. As SDs a seguir demonstram essas observações e fortalecem a idéia de que «Veja» reforça, em sua construção discursiva, a beleza como valor contemporâneo fundamental.

    A pesquisa (17) mostrou que nas maiores capitais do Hemisfério Norte é significativo, como fenômeno social, o número de homens que usam regularmente cremes contra rugas, fazem compras em butiques e já se submeteram a algum tipo de plástica ou tratamento cosmético. Nos Estados Unidos, 35% dos homens disseram comprar regularmente cremes antienvelhecimento e, em apenas um ano, entre 2001 e 2002, o número de lipoaspirações feitas por homens cresceu 420%. No Brasil, o número de cirurgias plásticas realizadas em homens subiu de 10% do total para 30% em cinco anos. (SD 51; T 3)

    Com a intensa preocupação com a aparência, o homem estaria retomando agora seu papel ornamental. (SD 60; T 3)

    É de lei: o direito à beleza (18) (SD 67; T 8)

    Melhores, mais acessíveis e mais baratos, os tratamentos estéticos se disseminam e criam uma nova utopia: hoje, em prestações ou no cartão, todo mundo pode ser mais bonito (SD 68; T 8)

    Nem as utopias mais arrebatadas, porém, falam numa conquista que está cada vez mais se insinuando na lista de prerrogativas da humanidade: o direito à beleza. O que era obra da natureza, fruto do acaso genético, sem possível intervenção humana – basicamente, rosto sem marcas, corpo com medidas proporcionais, pele viçosa, dentes perfeitos –, foi sendo decifrado e aprimorado pela medicina e pela tecnologia e agora pode ser adquirido na clínica de estética mais próxima, com desconto à vista ou em suaves prestações mensais. (SD 70; T 8)

    Uma pesquisa inédita da Universidade Federal do Rio de Janeiro ouviu 1300 homens e mulheres, entre 20 e 50 anos, para saber o que as pessoas acham que mais as atrai sexualmente. A maioria das mulheres respondeu “inteligência”, enquanto mais da metade dos homens disse “beleza” (SD 14; T 10)

    A beleza e o estilo ganham o centro das atenções no mundo de hoje e influenciam a economia, o comportamento e a cultura (SD 97; T 15)

    [...] atualmente, mais do que nunca, a aparência física é levada em conta não apenas no terreno do amor e do sexo, mas em todos os relacionamentos pessoais. No ambiente de trabalho, por exemplo. (SD 34; T 15)


Inteligência

Capacidade de aprender, destreza mental ou habilidade para resolver problemas são sinônimos ou pressupostos de quem é inteligente. A revista «Veja» vem reforçando a relevância do valor «inteligência» na sociedade contemporânea, de forma que ele apareça como determinante para a conquista de alguns predicados para o bem-estar moderno, como um bom emprego ou o sucesso nos relacionamentos, o que determinaria «auto-realização».

    A parte boa é que também se constatou que, se a relação perdura, homens e mulheres passam a valorizar traços mais profundos, como inteligência, senso de humor e orientação religiosa. (SD 167; T 10)

    “‘Mas o que pode haver de positivo em ficar velho?’ perguntaram-se um dia. [...] As qualidades interiores vão sobressaindo, afirmando-se sobre as físicas. Ao contrário da pele, cabelos, brilho de olhar e firmeza de carnes, elas tendem a se aprimorar: inteligência, bondade, dignidade, escutar o outro. Capacidade de compreender. Mas é preciso que exista algo interior para sobressair: o desgaste físico será compensado pelo brilho de dentro.” (19) (SD 158; T 13)

    “Pessoas inteligentes são aquelas que fazem das dificuldades oportunidades” (20) (SD 169; T 17)

    Leitura por prazer (21)

    Ler proporciona o crescimento pessoal, estimula o raciocínio e contribui para a longevidade. Quem lê costuma ser mais ativo e desenvolve idéias próprias (SD 39; T 20)

    Descobertas recentes indicam que manter uma vida intelectual satisfatória é uma das maiores garantias de saúde sensorial que alguém pode se dar. Manter a cabeça funcionando prolonga a vida e a saúde dos neurônios. Na verdade, a atividade mental talvez faça mais do que isso: alguns estudos sugerem que ela pode ocasionar o nascimento de novos neurônios, mesmo na idade avançada [...] (SD 173; T 21)

A análise procurou demonstrar como «Veja» constrói comportamentos contemporâneos e institui sentidos sobre os valores que os norteiam. O quadro abaixo demonstra a freqüência com que aparecem os valores dominantes no discurso de «Veja», organizando-os entre os tipos motivacionais a que pertencem.


Tabela 1 - Valores analisados, seguidos dos tipos motivacionais a que pertencem e da freqüência com que aparecem em Veja


Considerações Finais

Essa pesquisa demonstra que podemos pensar sobre a influência da mídia em nossa cultura cotidiana a partir da posição que assumem os valores individualistas que, como percebemos em nossa análise, sugerem a transformação dos modos de vida, dos gostos e dos comportamentos. O jornalismo aparece como um campo que exerce poder nesse sentido, reforçando a lógica do individualismo contemporâneo e suscitando constantes decisões sobre o comportamento.

Concluímos que os valores dominantes no discurso de «Veja» são os que defendem um indivíduo saudável, belo, inteligente e que viva com prazer. As altas porcentagens correspondentes a esses valores demonstram o poder de paráfrase que a revista exerce ao reiterá-los e, dessa forma, legitimá-los como norteadores de comportamentos. Manter ou conquistar uma vida saudável corresponde à marca discursiva encontrada com maior freqüência em nosso corpus. O valor «saúde» assume a liderança em relação à freqüência com que os valores aparecem nas diversas reportagens selecionadas, reforçando tanto a relevância da saúde física quanto mental. A conquista de um estado saudável, da mesma forma que sugere o valor «inteligência», é uma condição para a «auto-realização».

Ainda trazemos o «prazer» e a «beleza» como representantes do «hedonismo», ressaltando a evidência desses valores na sociedade moderna. Apesar do prazer não estar, em «Veja», restrito ao campo sexual, verificamos, através das marcas discursivas, que esse campo, em relação ao prazer, aparece como dominante no discurso de «Veja». E a beleza é, muitas vezes, um pré-requisito essencial para alcançar o prazer.

A saliência da «saúde», da «beleza», do «prazer» e da «inteligência», além da conseqüente evidência dos dois tipos motivacionais a que pertencem, e que demonstram claramente o individualismo, formam o eixo dominante a partir do qual funciona o discurso de «Veja» em relação aos valores que norteiam o comportamento contemporâneo. Aquele que almeja, alcança ou já detém esses quatro valores como condicionantes em sua vida está, no mínimo, no caminho certo para conquistar o sucesso através do «hedonismo» e da «auto-realização».

Da mesma forma que observamos a presença marcante da paráfrase, construída pelas marcas discursivas dos valores analisados, percebemos também o movimento entre esses valores. O reforço de um mesmo valor em diversas reportagens e mesmo a sobreposição entre determinados valores, que também vem a reforçá-los, deixam marcas que permitem identificar duas formas que ajudam a entender a construção do discurso sobre comportamento em «Veja»: a repetição dos valores sustentados pela revista e as relações que se estabelecem entre eles.

 
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Texto apresentado no VIII Seminário Internacional de Comunicação, 2005.

(1) Os leitores da revista têm nível de escolaridade acima da média nacional e, por isso, formam a elite do Brasil, influenciada por «Veja» na tomada de decisões. Segundo Hernandes (2004), os leitores do veículo estão na categoria dos “formadores de opinião”. Assim, a forma como «Veja» mostra a realidade é reproduzida muito além dos próprios leitores. Para tanto, pressupõe-se que a revista se mostra como uma instituição que está autorizada a falar, porque é detentora de um poder legitimado por seu status.

(2) É a partir dos tipos motivacionais apontados por Schwartz e Tamayo que refleti sobre o discurso das matérias de comportamento de Veja. Para tanto, foram utilizados 10 tipos motivacionais verificados empiricamente e divididos entre os valores que servem aos interesses individuais e os que servem aos interesses coletivos. Os tipos de valores ao serviço dos interesses individuais são «autodeterminação», «estimulação», «hedonismo», «auto-realização» e «poder social». Aqueles que expressam primariamente interesses coletivos são «benevolência», «tradição» e «conformidade». «Segurança» e «filantropia» são constituídos por valores que expressam interesses tanto individuais como coletivos. Em minha dissertação, utilizei a Escala de Valores de Schwartz (apud Tamayo, 1994), composta por 56 valores: 30 terminais e 26 instrumentais. Desse total, 30 valores dizem respeito aos tipos motivacionais que servem aos interesses individuais. Por uma opção metodológica, e considerando a configuração da sociedade contemporânea como acentuadamente orientada para o individualismo, além de levar em conta que as matérias de comportamento da revista «Veja» pregam, privilegiadamente, os valores pertencentes aos tipos motivacionais que servem aos interesses individuais, analisei apenas os valores relacionados aos interesses individuais. Os resultados da dissertação apontam, dentre outras descobertas, os valores dominantes presentes no discurso jornalístico da revista «Veja» em relação às matérias de comportamento analisadas. Para este artigo, analisarei somente esses valores. A seguir, cito os demais trabalhados na dissertação, compreendidos nas categorias dos valores intermediários ou residuais, a título de conhecimento: «que goza a vida», «sabedoria», «polidez», «capacidade», «sucesso», «ambição», «preservador da imagem pessoal», «responsabilidade», «riqueza», «autoridade», «reconhecimento social», «poder social», «influência», «liberdade», «auto-respeito», «criatividade», «vida espiritual», «curiosidade», «devoção», «abertura», «autodeterminação», «independência», «vida variada», «vida excitante», «sentido da vida» e «audácia». Da mesma forma, serão considerados aqui somente os tipos motivacionais que reúnem os valores pertencentes ao grupo dominante. A saber: «hedonismo» e «auto-realização».

(3) Silva (2002: 256) situa a importância de nos determos em torno de um novo paradigma interacionista, ao considerar as mudanças radicais das condições de produção dos discursos e ainda o processo natural das próprias correntes da Análise do Discurso quando levam em conta, em suas desconstruções, as novas formas de construção dos discursos.

(4) Motta (2002: 308) diz que, para ser notícia, um fato deve ter atualidade, proximidade, proeminência (da pessoa envolvida), impacto e significância. Motta insere Mauro Wolf em suas considerações para definir a noticiabilidade como sendo constituída pelo conjunto de requisitos que se exigem dos acontecimentos para adquirirem a existência pública de notícia. Para adquirir esse estatuto, o fato deve ter os atributos chamados valores-notícia. Para Motta (2003), é a ruptura, a quebra da normalidade das coisas, o extraordinário que se constitui no valor-notícia fundamental, fazendo com que quase todas, senão todas, as notícias tenham um caráter emocional implícito ou explícito, uma tensão presente em maior ou menor grau. “Pela onipresença e pela força simbólica da notícia em nossos cotidianos pós-modernos, pensa-se que uma antropologia que permita a leitura antropológica das notícias enquanto um ato cultural (um novo constructo) é de maior urgência.” (2003: 20).

(5) Berger reflete sobre o poder da mídia de produzir sentidos, projetá-los e legitimá-los, dando visibilidade aos fenômenos que conseguiram, em primeiro lugar, atrair os jornalistas. “Um poder que advém da condição de «mediação», ou seja, não só de estar entre, ou de intermediar as vozes do acontecido, mas de selecionar, enfatizar, interferir através de palavras e imagens na construção simbólica dos acontecimentos.” (BERGER, 2002: 282).

(6) Orlandi (2001: 44) extrai de Pêcheux o conceito de sentido: “O sentido é sempre uma palavra, uma expressão ou uma proposição por uma outra palavra, uma outra expressão ou proposição; e é por esse relacionamento, essa superposição, essa transferência (metaphora), que elementos significantes passam a se confrontar, de modo que se revestem de um sentido. Ainda segundo este autor [Pêcheux], o sentido existe exclusivamente nas relações de metáfora (realizadas em efeitos de substituição, paráfrases, formação de sinônimos) das quais uma formação discursiva vem a ser historicamente o lugar mais ou menos provisório.”

(7) Cf.Orlandi (2001: 43), a partir de Pêcheux, a formação discursiva se define como aquilo que, numa formação ideológica dada, determina o que pode e deve ser dito.

(8) Títulos das reportagens analisadas: T 1 – A conquista do equilíbrio da mente; T 2 – Não perca o sono; T 3 – O homem em nova pele; T 4 – Você tem medo de quê?; T 5 – Todo mundo quer fazer Ioga; T 6 – O segundo vestibular; T 7 – Quando começamos a crer; T 8 – É de lei: o direito à beleza; T 9 – Decida: seu sucesso depende de suas escolhas; T 10 – O que torna você sexy?; T 11 – Stress; T 12 – A tirania adolescente; T 13 – No mundo da Lya; T 14 – Mentes que aprisionam; T 15 – Design: o poder do belo; T 16 – O menu que prolonga a juventude; T 17 – A descoberta do talento; T 18 – Mudança radical; T 19 – 10 regras fáceis para educar seus anjinhos; T 20 – Os donos de si; T 21 – Viver mais e melhor; T 22 – Menino ou menina?

(9) A análise dos 30 valores trabalhados na dissertação compreendeu 402 seqüências discursivas. As SDs referentes aos valores dominantes que apresentaremos a seguir são numeradas considerando essa totalidade.

(10) As porcentagens da análise dizem respeito ao total de reportagens em que o valor em questão foi encontrado.

(11) Box que ilustra a matéria.

(12) Refere-se ao americano John Drake, que participou do programa de transformações «Extreme Makeover».

(13) Legenda.

(14) Cf. Rizzuti (2005).

(15) Refere-se à escritora Lya Luft.

(16) Depoimento do psicanalista paulista Renato Mezan.

(17) Refere-se à pesquisa feita pela agência européia de comunicação Euro RSCG Worldwide.

(18) Título da matéria.

(19) Trecho do livro «Perdas & Ganhos», de Lya Luft.

(20) Definição dada pelo aeroviário Wandrei Passetto.

(21) Intertítulo de «box».

 
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