Artigo | edição 1 | Julho-Dezembro de 2007
A mídia moderna entre a importância da informação e a dependência do anunciante: a lógica mercantil-jornalística na Folha de S. Paulo
 
José Carlos Marques |
 
Ao longo do Século XIX, muitos jornais europeus e norte-americanos perceberam que, para ganhar credibilidade e incrementar suas vendas, era necessário assumir um conjunto de valores que, até hoje, é invocado por empresas de comunicação para caracterizar o chamado jornalismo “de qualidade”. Trata-se dos princípios ligados à objetividade, neutralidade, independência, e isenção. Mas não foi apenas na identificação e atendimento dessas necessidades que aqueles jornais conseguiram alcançar notoriedade. Para atingir o «status» de veículos de comunicação competitivos e rentáveis, foi necessário que se adotasse igualmente uma forma de gestão empresarial, em substituição ao espírito amador vigente até o Século XVIII
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Nesse sentido, foi de fundamental importância a presença dos anunciantes nas páginas dos jornais. O novo mercado publicitário, advindo no Século XIX após a Revolução Industrial, necessitava de meios credíveis para divulgar produtos e marcas até então desconhecidos do grande público. E quais as possibilidades da época? Em suma, apenas duas: os próprios jornais (principal veículo de comunicação de massa até então) e os cartazes, que viriam dar origem mais tarde aos outdoors e a todo tipo de “mídia externa”.

Começou-se então a se desenhar uma dependência mútua entre empresas de comunicação e mercado publicitário: aquelas necessitavam das verbas dos anunciantes para a expansão de seus negócios, incremento da tecnologia de produção e contratação de profissionais; este necessitava de veículos bem estabelecidos, que se destinassem a públicos seletos e formadores de opinião, a fim de melhor direcionar as estratégias de venda e divulgação de manufaturas. Nesse círculo vicioso, passou a ser impensável imaginar um grande jornal que não tivesse forte presença de anunciantes em suas páginas, como também passou a ser imponderável imaginar grandes marcas que não se fizessem presentes no meio jornalístico impresso.

No Brasil, cuja indústria gráfica oficial iniciou-se apenas em 1808 com a chegada da Família Real Portuguesa e a posterior inauguração da Casa de Impressão Régia, essa passagem da imprensa de um modelo amador para um modelo empresarial só começou a ganhar mais força depois do advento do sistema republicano, no final do Século XIX. No entanto, foi só na segunda metade do Século XX que essa mutação deixou de ocorrer de forma acanhada e passou a ganhar contornos mais nítidos e irreversíveis.

Neste artigo, procuraremos verificar como a mutação do modelo de empresa jornalística originou novas configurações nas relações da imprensa com o mercado publicitário. Para tanto, escolheu-se como objeto de análise o jornal mais vendido no país nas últimas duas décadas – a «Folha de S. Paulo», diário paulistano pertencente à empresa Folha da Manhã.

De veículo pouco marcante até o início da década de 1970, a «Folha» tornou-se o jornal de maior circulação no Brasil no meio da década de 1980, fruto da modernização de seu parque gráfico, de grande investimento em marketing e de mudanças propostas por um novo projeto editorial – elementos que, por si só, já se enquadram nos pressupostos que motivaram a expansão de inúmeras empresas de comunicação no Hemisfério Norte.


As mutações da imprensa a partir do Iluminismo

O pesquisador português João Pissara Esteves (1998) nos fornece inúmeras pistas para compreender as mutações da imprensa a partir do Século XVIII na Europa. Sua proposta, inicialmente, é fazer uma análise genealógica da opinião pública, a partir de sua constituição no pensamento moderno, por meio de duas vertentes: 1) A Opinião Pública como prática comunicacional, a partir de um caráter ético-moral; e 2) A transformação da Opinião Pública na modernidade e sua relação com os media (1).

Na Grécia Antiga, a participação popular se dava nas decisões ocorridas nas «polis»: a Opinião Pública se manifestava por meio dos debates, discussões e votações do povo na ágora grega. Não obstante, em certas ocasiões valia mais a estética da figuração (a arte do bem falar e da retórica) do que a necessidade de emancipação. Na modernidade européia, a emergência dos interesses públicos e da imprensa resulta de um longo processo de profundas transformações das estruturas sociais e culturais, desde o Renascimento e o uso da imprensa por Gutenberg no Século XV. Esse processo se intensifica nos Séculos XVII e XVIII com o Iluminismo e tem como ponto culminante a Revolução Francesa, em 1789. Depois, com a Revolução Industrial e as mudanças tecnológicas no Século XIX, tudo se potencializa num ritmo estonteante (a invenção do trem em 1803 e a do telégrafo em 1840 anunciam uma nova época do movimento e de desenvolvimento da imprensa). Ao contrário do que ocorria na Antigüidade Grega, porém, os Espaços Público e Privado no Século XVIII não mantinham sempre uma oposição direta:

    A emergência de uma esfera privada da experiência verifica-se no contexto de uma profunda transformação social, onde sobressai a consolidação da economia mercantil e, com ela, a nova classe social burguesa. A experiência da privacidade e da intimidade encontra-se intimamente associada a esta nova actividade e aos agentes sociais que a promovem. (ESTEVES, 1998: 190)

O Espaço Público, assim, passa a cumprir duas funções: uma de vertente artística e outra de vertente política. Na vertente política, a formação do Espaço Público no Século XVIII obedece ao desejo político de liberdade e emancipação dos interesses burgueses mercantilistas, em oposição ao Estado Absoluto. O fim do sistema feudal e o novo sistema produtivo baseado no comércio e nos bens de capital fazem com que o mercado passe a ser o principal núcleo institucional, deixando o Estado numa posição subalterna. Por outro lado, o Espaço Público Moderno também se formava por pessoas privadas que se reuniam em salões, cafés, clubes, associações etc. – trata-se das primeiras experiências públicas burguesas. Isso era bem diferente do domínio público anterior, em que predominava a lógica da dominação do Estado, sintetizada no lema em latim “«Auctoritas non veritas facit legem»” (2).

Com o tempo, passa-se da reivindicação da legitimação do poder pela burguesia para a exigência de participação no poder, o que dá noção da nova ambivalência da Opinião Pública: ela mantém uma exterioridade e uma interioridade em relação à sociedade civil (de onde se origina) e em relação ao Estado (ao qual deveria se contrapor, em tese). Resume-se aqui o ideal Iluminista: espírito da razão, defensor dos ideais republicanos e antiabsolutistas, o que origina ainda algumas práticas sistemáticas da Opinião Pública: a publicidade (no sentido de tornar público) e a crítica – princípios da moralidade da opinião pública.

O Século XVIII notabilizou-se também por formar um público politizado e iluminado, formado por cidadão livres, que começa a impor limites de ação ao Estado. Isso provoca o fim de alguns tipos de censura, a institucionalização dos debates, a criação de partidos políticos organizados e a parlamentarização da vida política. Por último, temos a formação de uma imprensa politicamente ativa, em defesa dos ideais burgueses. A missão política do espaço público no Século XVIII, na Europa, atenderia assim a dois propósitos: 1) Mediar as relações Estado-Sociedade Civil, discutindo a regulação da vida social e promovendo a intervenção no Estado; e 2) Rever os princípios absolutistas (a partir do vínculo entre Opinião Pública e Lei), e participar do próprio exercício do poder, com a formação do Estado de Direito.

Assim, passa-se da reivindicação da legitimação do poder para a exigência de participação no poder, o que dá noção da nova ambivalência da Opinião Pública: ela mantém uma exterioridade e uma interioridade em relação à sociedade civil (de onde se origina) e em relação ao Estado (ao qual deveria se contrapor, em tese). As práticas sistemáticas para a realização desse propósito foram a publicidade (atividade que deve ser compreendida no sentido de tornar público) e a crítica. E os jornais foram os meios de comunicação por excelência que puderam dar forma a este espírito revolucionário antiabsolutista de então.

Cabe ressaltar, porém, que é dentro do contexto iluminista e de afirmação dos valores burgueses que serão concebidos (e depois modificados) os modelos de funcionamento dos jornais, tais quais os conhecemos nos dias de hoje. Portanto, é aqui que devemos fixar nossa atenção para compreender as mutações que sofrerão os modelos de opinião pública e sua relação com os meios de comunicação na entrada do Século XIX, numa sociedade pós- Revolução Industrial. É exatamente isso o que nos mostra Esteves ao longo de sua obra, a partir da discussão da crise do modelo liberal de Opinião Pública no Século XIX: ao mesmo tempo em que se expande, esse modelo sofre o afrouxamento de sua força política.

Essa crise ocorre diante do novo quadro social e político que caracteriza o Século XIX, na era Pós-Revolução Industrial, com a mudança do setor produtivo e o adensamento populacional nas cidades. Temos, assim, quatro grandes causas para a derrocada do modelo de opinião Pública Burguesa, instituído desde o Século XVII:


1) O declínio do público e emergência da massa.

2) A consolidação de um novo quadro político das sociedades ocidentais com a formação das “democracias de massa”.

3) A pulverização do espaço público, devido aos conflitos sociais e à inédita luta de classes que se forma (proletariado x burguesia/nobreza).

4) A intensificação dos fluxos de comunicação e fortalecimento dos «mass media» – instituições dominantes no novo Espaço Público.


No que diz respeito à emergência da massa, cabe encarar tal fenômeno como próprio do desenvolvimento da Modernidade: trata-se da intensificação da vida urbana, da industrialização e das aglomerações humanas. O desenraizamento origina uma nova forma de contato (ou descontato) social, com o declínio das redes de sociabilidade (3). Os ideais liberais do público perdem força e se diluem diante da emergência da massa; as redes de sociabilidade tornam-se mais distantes, frouxas e burocratizadas. Além disso, passa-se a se exigir uma especialização profissional cada vez maior, fruto de um tecnicismo dominante. Não é à toa que o Século XIX é tido como o grande período das invenções e descobertas.

Por outro lado, também no Século XIX começa-se a se anunciar a falência do capitalismo concorrencial. Constitui-se um novo modelo de Estado Social, que promoveria a defesa da vontade coletiva e seria o mediador entre os interesses públicos e privados. Diante da pressão das massas, a força da opinião pública não advém mais da excelência da razão ou do raciocínio – pilares do ideal Iluminista –, mas sim do peso daquilo que os institutos de sondagem publicam com suas enquêtes e pesquisas. Tem-se aqui o início da erosão da opinião pública nas democracias de massa:

    Um dos recursos fundamentais desta competência administrativa é, justamente, o controlo da própria participação dos cidadãos na vida pública, com vista à realização de uma opinião pública tanto quanto possível despolitizada, isto é, uma opinião pública que para continuar a assumir-se como legítima precisa de preservar o seu vínculo democrático, mas que por questões de eficácia reduz a participação dos cidadãos ao mais formal e superficial”. (ESTEVES, 1998: 221-222)

Os novos conflitos sociais, forçados pela até então inédita luta de classes, contribuem para o declínio do antigo modelo de opinião pública burguesa. Temos aqui um fenômeno cultural próprio da nova conjuntura sócio-política: os produtos culturais passam a obedecer a padrões consumistas e à lógica do lucro, ou seja, assiste-se à mercantilização dos bens culturais, fenômeno que estará na raiz do pensamento frankfurtiano do século seguinte. E os novos meios de comunicação de massa (nomeadamente os jornais) serão os principais agentes desse fenômeno à medida que eles também se fortalecem no novo mundo. Os «media» são sujeitos e objetos desses processos de mudança. A lógica jornalística sofre também uma mutação e passa a obedecer a uma lógica empresarial, especialmente por força de um novo e fortíssimo agente – o anunciante:

    A partir do momento em que a publicidade comercial se tornou objecto de exploração sistemática por parte da imprensa, os jornais e a actividade jornalística em geral sofreram uma mutação radical, conducente à imposição das lógicas mercantil e empresarial. Isso é visível, em primeiro lugar, ao nível das estruturas materiais da imprensa, quando os jornais passam a organizar-se segundo o modelo empresarial, com vista a atingir prioritariamente fins lucrativos. São estas novas exigências que moldam a imprensa com a estrutura que hoje lhe conhecemos: forte centralização e concentração económica, permanente renovação tecnológica como condição fundamental da competitividade das empresas, organização interna fortemente especializada e hierarquizada (com as redacções a verem reduzidos os seus poderes de direcção). (ESTEVES, 1998: 230)

No modelo antigo, tínhamos uma imprensa politicamente ativa, em defesa de ideais bem definidos. No Brasil, por exemplo, o Século XIX assiste ao surgimento de jornais que são criados conforme os interesses políticos que se querem defender – daí o fato de se criarem periódicos monarquistas, republicanos, abolicionistas, conservadores, moderados etc. Agora, a imprensa assume para si um profissionalismo que procura fazer de sua atividade algo externo ao processo político: “Desta forma, a mitigação das questões políticas torna-se imperativa. E é neste realinhamento estratégico da imprensa que nasce o ‘novo jornalismo’, segundo os padrões ainda hoje predominantes: ‘independência’, ‘neutralidade’, ‘objectividade’ e ‘profissionalismo’.” (ESTEVES,1998: 231).

Assim, a partir do momento em que as grandes tiragens – e, por conseguinte, as relações com o mercado publicitário – tornam-se o objetivo primeiro dos veículos jornalísticos, a lógica empresarial exerce uma transformação radical no processo de constituição da informação: as questões mercadológicas e econômicas passam a influenciar diretamente os conteúdos publicados, tanto no caso da seleção dos temas e assuntos, tanto no caso das formas gráficas e lingüísticas de apresentação desses conteúdos.


O novo modelo de imprensa condicionado por “Cinco filtros de Notícia”

Um dos maiores críticos da mercantilização da imprensa tem sido o norteamericano Avram Noam Chomsky. Lingüista e criador da Gramática Gerativa Transformacional, Chomsky ficou mais conhecido nas últimas três décadas por suas posições políticas de esquerda e pela sua crítica da política externa dos EUA.

Na obra Propaganda e opinião pública (2003), Chomsky procura apresentar o Modelo de Propaganda que, para ele, regulamenta o trabalho da mídia no modelo privado. Esse modelo se estabelece a partir dos chamados «Cinco Filtros de Notícia», que acabam depurando o que deve ser divulgado sob uma falsa noção de objetividade. No modelo estatal, a imprensa atende aos fins da elite burocratizada no poder (praticamente não há críticas às iniciativas governamentais); já no modelo privado, a mídia ataca e expõe más condutas empresariais e governamentais, e apresenta-se como porta-voz da liberdade de expressão. Para Chomsky, entretanto, trata-se de uma natureza limitada de críticas, devido à desigualdade de renda e de poder, e devido aos interesses comerciais e políticos que estão em jogo.

O primeiro filtro de notícia, de acordo com seu modelo, é o que ele denomina de «Porte e Concentração da Propriedade dos Media e a Orientação para o Lucro». A necessidade de alcançar cada vez mais públicos e a premência em modernizar redações e parques gráficos originou a formação dos primeiros conglomerados de comunicação – inseridos na lógica capitalista e de mercado. A partir de um processo iniciado no Século XIX, os jornais sindicais e trabalhistas foram “sepultados” por força da “industrialização da imprensa”, que passou a sofrer forte incremento tecnológico e aumento de custos – algo que passou a ser “financiado” pelos anunciantes. Sem patrocinadores, aqueles jornais que faziam qualquer tipo de ressalva ao modelo capitalista sucumbiram diante da nova lógica de mercado e não conseguiram manter circulação diária.

Além disso, passou-se a verificar uma presença cada vez maior de empresários e banqueiros no comando das empresas de mídia: o foco principal passa a ser o lucro das empresas; há um afrouxamento das regulamentações estatais que impediriam a concentração de poder e um afrouxamento das restrições a comerciais e programas de TV.

O segundo filtro denomina-se «A Propaganda como Principal Fonte de Recurso dos Media». Antes da propaganda, os preços dos jornais tinham que pagar os custos do empreendimento. Com os anunciantes, isso não se fez mais necessário – e os preços de alguns jornais ficaram mais baixos do que aqueles que não atraíam anunciantes. “Com a propaganda, o livre mercado não gera um sistema neutro” (CHOMSKY, 2003, P. 73). Isso decretou nova desvantagem para os jornais radicais e de classe operária, que não puderam competir em pé de igualdade com os jornais do «establishment». Por outro lado, com a forte presença da propaganda, jornais e emissoras de TV puderam ter receitas adicionais para competir mais eficazmente na transmissão de notícias. Em troca, anunciantes passaram a ter mais controle sobre os conteúdos transmitidos pelos «media»:

    Além da discriminação contra instituições de mídia não amigáveis, os anunciantes também selecionam os programas com base em seus próprios princípios. Com raras exceções, esses programas são cultural e politicamente conservadores. Grandes empresas anunciantes da televisão raramente patrocinarão programas que contenham críticas sérias às atividades empresariais. (...) Os anunciantes desejarão, de forma mais genérica, evitar programas com sérias complexidades e controvérsias perturbadoras que possam prejudicar o ‘espírito de compra’. (CHOMSKY,2003: 76)

O terceiro filtro é caracterizado pela «Dependência da Mídia de Informações Fornecidas pelas Fontes Oficiais» (governos, empresas e especialistas financiados pelos agentes de poder). É impossível para a grande mídia ter repórteres e câmeras em todos os lugares em que surgirão notícias relevantes. Ao mesmo tempo, a mídia deve obedecer a um fluxo constante e confiável de produção de notícias. Portanto, é bem mais barato concentrar recursos onde normalmente há fatos significativos com mais freqüência (Parlamentos, Governos, Ministérios etc.). Essas burocracias geram grande volume de material para atender às demandas das organizações de notícias, a partir de uma afinidade burocrática: “apenas burocracias podem satisfazer as necessidades da burocracia das notícias”. O risco, obviamente, é a concentração e a dependência de fontes comprometidas com as instâncias do poder político.

O quarto filtro refere-se à «A Bateria de Reações Negativas e os Fiscais Disciplinadores». Pessoas físicas ou grupos organizados podem oferecer forte reação a conteúdos divulgados pela mídia – seja por meio de manifestações encaminhadas aos “espaços do leitor/telespectador”, seja por meio de manifestações encaminhadas ao poder público. No entanto, uma das formas mais imediatas de reação é a que provém dos anunciantes, que podem retirar seus patrocínios de programas ou de empresas de comunicação, como forma de protesto e retaliação. Outra forma eficaz é a ação de Governos, que podem pressionar os «media» para refrear quaisquer desvios de linha estabelecida.

Por último, o quinto filtro, segundo Chomsky, diz respeito ao «Anticomunismo como Mecanismo de Controle». Neste caso, trata-se de uma especificidade própria da mídia norte-americana, que agiria por meio de uma “ideologia do anticomunismo” para fragmentar a esquerda e os movimentos trabalhistas, de forma a se preservar os interesses capitalistas.

Quais conclusões se tiram do modelo proposto por Chomsky? Inicialmente, esses filtros reduzem o leque de temas que são priorizados pela mídia: “os cinco filtros estreitam a gama de notícias que passam pelos portões e limitam ainda mais estreitamente o que pode se tornar ‘primeira página’.” (CHOMSKY, 2003: 90). Cria-se um desequilíbrio entre as opiniões das fontes oficiais e a dos grupos não-organizados ou sem acesso à mídia. Por outro lado, se governos e empresários entenderem que uma história é útil e dramática, concentram-se nela para “iluminar” o público e distanciá-lo de fatos que ponham em xeque o poder instituído.

    Em resumo, a abordagem da propaganda à cobertura da mídia sugere uma dicotomização sistemática e altamente política na cobertura de notícias com base em sua utilidade para os importantes interesses domésticos do poder. Isso deveria ser observável nas escolhas dicotomizadas de matérias e no volume e qualidade da cobertura”. (CHOMSKY, 2003: 94)

Não é à toa que Nelson Werneck Sodré (1999), no prefácio da clássica obra «História da imprensa no Brasil» lançada na década de 1960, aponta para a relação umbilical entre jornalismo e publicidade em nosso país, a partir de duas condicionantes: a) o abando da forma artesanal da tipografia, com a profissionalização da atividade e a adoção de um sistema industrial de produção já no final do Século XIX; b) os avanços tecnológicos, que contribuíram para a formação de empresas jornalísticas (o grupo que funda o jornal passou a ser responsável pelo conteúdo e impressão, feita em oficinas próprias).

Para além dessas condicionantes, Werneck Sodré já antecipava as relações que acabamos de ver nos textos de Pissara Esteves e Noam Chomsky. Para o crítico brasileiro, a história da imprensa moderna é a própria história do desenvolvimento da sociedade capitalista, e a liberdade de imprensa representaria no fundo a liberdade de expressão da sociedade burguesa. A busca da rapidez na divulgação das notícias estaria portanto subordinada e subordinante aos inventos tecnológicos ligados aos meios de comunicação de massa. Daí que o predomínio das agências de publicidade no meio jornalístico seria algo inevitável e irreversível, dentro do funcionamento da sociedade capitalista.


As “interferências” dos anunciantes na «Folha de S. Paulo»

De que forma esses conceitos todos podem aplicar-se ao jornal paulistano «Folha de S. Paulo»? A história do diário remonta a 19 de fevereiro de 1921, quando foi criada na capital paulista a «Folha da Noite», preocupada em noticiar as deficiências dos serviços públicos. Em julho de 1925, foi lançada a edição matutina, com o nome de «Folha da Manhã». Após 24 anos, surgiu a edição vespertina, intitulada «Folha da Tarde», lançada em 1º de julho de 1949. Os três títulos da empresa se fundiram em 1º de janeiro de 1960, dando surgimento ao jornal «Folha de S. Paulo», conhecido popularmente pelos leitores como «Folha e principal veículo da empresa Folha da Manhã.

A preocupação da empresa Folha da Manhã em enxergar o jornalismo como atividade empresarial fez com que a «Folha» se tornasse o jornal mais vendido no país nas últimas duas décadas. O próprio diretor da «Folha», Otávio Frias Filho, atesta as bases comerciais inerentes ao novo fazer jornalístico adotado por sua empresa: “No conceito do jornalismo moderno e industrial, que no Brasil se desenvolveu durante o regime militar e se consolidou como modelo na democratização no fim do regime, ele [o jornal] é um supermercado, um shopping center.” (“Folha muda cara para consolidar liderança”, em Dirceu LOPES, 1996, p. 184).

Chama a atenção aqui o fato de que a própria direção do jornal admite gerenciar a atividade jornalística a partir de pressupostos mercantilistas, voltados para o mero comércio, tal qual um “shopping center”. Por outro lado, a mesma empresa Folha da Manhã procurou definir quais os conceitos que nortearam a conquista da credibilidade de seu principal produto, o diário «Folha de S. Paulo». No sítio da Internet do jornal, pode-se ler que o crescimento do veículo calcou-se “nos princípios editoriais do «Projeto Folha»: pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência” (www1.folha.uol.com.br/folha/conheca/, acessado em janeiro de 2007).

Até que ponto a independência do jornal se compraz com os pressupostos liberais-progressistas, que também estão na base da solidificação do mercado publicitário capitalista? Não está entre os propósitos deste trabalho verificar se conteúdos e informações veiculados pela «Folha de S. Paulo» foram “deturpados” ou sofreram influência de anunciantes e fontes oficiais, como descrito por Chomsky em seu “quarto filtro”. Nosso objetivo é apresentar quatro “tipologias” ou quatro “estratégias” postas em prática pelas agências de publicidade, e de que forma o espaço determinado para a notícia acaba sendo afetado por essas iniciativas.

A) Uma das estratégias publicitárias afeta diretamente a primeira página do jornal ou as primeiras páginas de determinados cadernos: trata-se de uma cobertura de duas folhas que se sobrepõem às capas do jornal ou às dos cadernos, simulando conteúdos jornalísticos por força da utilização da mesma diagramação e do mesmo cabeçalho do diário. Entretanto, são páginas de anúncios, que encobrem as verdadeiras páginas produzidas pelo corpo de jornalistas da «Folha». No dia 10 de agosto de 2005 (quarta-feira), o caderno Folha Informática foi recoberto por uma “capa” que reproduzia o próprio caderno, mas que trazia um farto anúncio da Speedy Telefônica. Em 9 de junho de 2005 (quinta-feira), foi a vez do caderno Folha Ilustrada, que recebeu uma capa, em papel couché (algo raro para um jornal), de anúncio da operadora de telefonia Vivo. A Ilustrada, aliás, é o caderno da «Folha» que mais sofre esse tipo de interferência dos anunciantes, entre todos os cadernos do jornal.

Mas até a primeira página da «Folha» é freqüentemente invadida pela presença de anúncios. Só que, em vez de uma sobrecapa completa – como acontece com os cadernos internos –, aplica-se uma sobrecapa que “abraça” a primeira página do jornal e ocupa cerca de 40% da capa. No dia 1º de abril de 2006, por exemplo, o anúncio de um “Feirão Chevrolet” recobria a primeira página e apenas permitia ler a manchete principal “Serra lança candidatura e acirra luta com PT”. A fotografia posicionada ao lado esquerdo da manchete, porém, não podia ser vista por causa da presença da lâmina do anúncio. É desnecessário dizer que os conceitos vistos no início deste texto explicam bem por que o jornal de maior tiragem do país cede o próprio espaço da primeira página para que o anunciante encubra a informação.

B) Uma segunda estratégia de divulgação posta em prática pelas agências de publicidade na «Folha de S. Paulo» diz respeito à utilização da primeira página do caderno Folha Ilustrada. Marcas normalmente ligadas ao mercado da moda costumam ocupar ¾ da página com fotos de modelos femininos. Até aí, nada de mais. A questão é que as imagens dos anúncios, por diversas vezes, acabam por “dialogar” com a manchete do caderno, relegada ao pequeno espaço de 15 cm de altura por 30 cm de largura, no alto da página. No dia 15 de agosto de 2006 (segunda-feira), a manchete da Ilustrada anunciava “A bela senhora”, referindo-se ao acervo da Pinacoteca de São Paulo. Intencionalmente ou não, o texto fazia eco à imagem de uma mulher que chamava a atenção para coleção 2006 da grife Mob e que ocupava 1.350 cm2 de área da página.

Situações idênticas de ocupação dos espaços se deram no dia 1º de abril de 2006, com a manchete “Esquisitices do corpo humano”, a propósito do lançamento de um best-seller norte-americano no Brasil, e no dia 7 de maio de 2006, com a manchete “O sotaque que conquistou a TV”, referente ao «chef» de cozinha francês Claude Troigros. No primeiro caso, porém, a imagem em preto-e-branco de uma modelo quase anoréxica anunciando a marca Alcaçuz formavam um conjunto inusitado entre texto e fotografia. Já no segundo caso, a manchete sobre a conquista da TV tinha como suporte um anúncio da Louis Vuitton que trazia a top model Gisele Bündchen em pose com fortíssimo apelo sensual, já que ela aparecia com as pernas nuas e o colo em destaque.

C) Como terceira estratégia, pode-se destacar os anúncios de empreendimentos imobiliários que costumam inflar as páginas dos principais jornais brasileiros. No entanto, se antes esses anunciantes ficavam circunscritos aos espaços dos cadernos de classificados, desde longa data eles passaram a ocupar todas os cadernos dos diários, especialmente as páginas das editorias de política, economia e internacional. Situação invulgar se deu no dia 15 de novembro de 2006 (quarta-feira), feriado nacional no Brasil: uma vez que os leitores costumam consumir mais jornais nos finais de semana e feriados em busca das ofertas de imóveis, automóveis e empregos, o caderno Dinheiro 2 da «Folha», composto por 12 páginas, destinou nada mais nada menos do que 9,5 páginas para anúncios imobiliários. Portanto, bem menos de 1/3 do caderno ficou reservado para o conteúdo da informação.

D) Por último, para encerrar os exemplos que queremos destacar neste trabalho, entra uma outra estratégia do mercado publicitário – a nosso ver, mais sofisticada e criativa e, ao mesmo tempo, mais invasiva aos conteúdos jornalísticos. Trata-se da interferência dos anúncios nos projetos gráficos e na diagramação do jornal, misturando na mesma página o anunciante e a notícia – ou melhor, fazendo com que marcas e produtos se mesclem com fatos e informações jornalísticas. Três exemplos desta estratégia nos chamam a atenção.

Em 5 de junho de 2005, a página C3 do caderno Cotidiano da «Folha» aparecia integralmente com os textos na cor verde. O fato inusitado não dizia respeito a nenhuma mudança de projeto gráfico do jornal, mas sim a uma iniciativa publicitária desenvolvida para a Petrobrás: no rodapé da página, ocupando uma área de 300 cm2 de área, o anúncio trazia como título “Deixamos as notícias em verde para comemorar o Dia Mundial do Meio Ambiente” e dando enfoque à preocupação da estatal petrolífera com a questão ambiental no país.

Já no dia 12 de agosto de 2005 (sexta-feira), as páginas A10 e A11 do caderno Brasil, o primeiro e mais importante caderno do jornal, traziam notícias sobre o que ficou conhecido como “Escândalo do Mensalão” – a compra de parlamentares por parte de agentes do governo federal. Em meio às matérias e aos títulos “‘Perplexo’, Mercadante diz que nada sabia” e “Duda implica Lula e Alencar, vê PFL”, três imagens do cantor Júnior e outras três imagens da cantora Sandy “despencavam” diagonalmente nas duas páginas, de lado a lado, convergindo ambos para dois automóveis da marca GM que ocupavam o rodapé da página dupla. Na parte debaixo, o anúncio ocupava apenas 15 cm de altura. As imagens da dupla musical, entretanto, ocupavam quatro colunas em cada página, forçando o diagramador do jornal (e o da agência publicitária) a buscar uma solução inusitada para comportar lado a lado notícia e publicidade.

Como derradeiro exemplo, citamos outra iniciativa da montadora GM, presente nas páginas A10 e A11 do caderno Brasil de 25 de março de 2006 (sábado). Para anunciar a possibilidade de se adquirir o “Novo Vectra” com pagamento parcelado, os publicitários da marca resolveram distribuir a imagem do automóvel repartida em seis colunas verticais, do alto até o fim da página. O inusitado é que cada coluna de anúncio alternava-se com coluna que traziam textos jornalísticos, o que oferecia, ao olhar do leitor, um mosaico incomum de informação e publicidade. Os textos jornalísticos aqui presentes tornavam a situação ainda mais inusitada: tratava-se de matérias e comentários a respeito da chamada “Dança da impunidade”, que envolveu a então deputada do PT, Angela Guadagnin.

Como se pode verificar, não é possível conceber o trabalho de um meio de comunicação de massa como a «Folha de S. Paulo» sem a onipresença cada vez mais marcante dos anunciantes. Como quisemos demonstrar desde o início desta comunicação, tal fenômeno está na gênese da transformação da imprensa moderna, ao abandonar o trabalho artesanal e adotar a lógica empresarial na gestão de seu negócio. A questão que pretendemos pôr em destaque tem a ver com a percepção do público leitor de um diário com o porte e a credibilidade da «Folha». Até que ponto a presença de marcas e produtos infiltrados e camuflados em meio a conteúdos jornalísticos não tem modificado os ângulos de leitura e de absorção das notícias? E, por outro lado, até que ponto essas mesmas marcas e produtos permanecem imunes aos conteúdos jornalísticos – que por vezes são nocivos ao anunciante, especialmente nos casos de corrupção política? Trata-se de questões que, por ora, apenas pretendemos colocar em debate, visto que respondê-las demanda uma investigação e uma reflexão mais profundas.

 
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BRIGGS, Asa, BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutenberg à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

CHOMSKY, Noam & HERMAN, Edward. A manipulação do público. São Paulo: Futura, 2003.

ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

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(1) Os autores portugueses referem-se comumente aos meios de comunicação empregando o termo media, do latim, que já representa o plural de medium (= meio). Daí a expressão “os media” (= os meios), que pode soar estranha aos ouvidos brasileiros. No Brasil, ao contrário, consagrou-se o uso do termo mídia, uma espécie de “abrasileiramento” da pronúncia que os norte-americanos dão ao mesmo termo media, do latim.

(2) “É a autoridade, e não a verdade (a razão), que faz a lei”.

(3) A esse respeito, Walter Benjamin tece belíssima análise do poema “A uma passante”, do poeta francês Charles Baudelaire, no artigo “Sobre alguns temas em Baudelaire” (1983).

 
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