Artigo | edição 2 | Janeiro-Junho de 2008
Anjos vazios: Paixão de Cristo da Pathé - A ornamentação como característica estética dos primeiros filmes de Cristo
 
Luiz Vadico |
 
O Primeiro Cinema tem sido objeto de grande interesse nos últimos quinze anos, várias publicações, vários pesquisadores, como Tom Gunning, André Gaudreault e Charles Musser têm se debruçado sobre as questões relativas à narratividade deste período fecundo da história. Praticamente todos eles citam a importância dos filmes de Peça da Paixão de Cristo para o surgimento da narrativa cinematográfica, poucos são, no entanto, os estudos mais pormenorizados. As dificuldades são várias, talvez a maior delas seja o fato de que uma boa parte desses filmes não existe mais ou não estão acessíveis. Neste artigo examinaremos uma questão relativa à estética desses filmes, a ornamentação. Iremos nos centrar na análise da «Paixão da Pathé», de 1902-5, a produção mais completa disponível e utilizaremos alguns fragmentos da «Paixão da Gaumont» (1), de 1903, que puderam ser recuperados, para comparação.

Um quesito normalmente relegado para o segundo plano pelos pesquisadores de Filmes de Cristo (2) é a estética. Em geral se contentam em citar que este ou aquele filme buscava fazer uma representação da vida de Jesus baseada neste ou naquele pintor ou desenhista; e que na busca de se fazer as primeiras representações visuais da estória de Jesus em película os produtores e diretores buscaram seu material nas artes plásticas que já possuíam uma longa tradição de representação dessa estória.

O primeiro filme a utilizar um estilo mais claro foi o de Ferdinand Zecca, de 1902, fato que chamou a atenção de Georges Sadoul, que denominou-o de estilo “«Saint-Sulpice»” pois segundo ele as representações ali encontradas se assemelhavam às dos presépios da Igreja de «Saint Sulpice», em Paris. Esta designação passou também a ser utilizada para toda e qualquer forma de representação religiosa que possui traços simplificados, mais ingênuos e populares, bastante assemelhados à representação gráfica dos “santinhos” impressos ao longo do século XIX e até meados do século XX, bem como dos presépios moldados em gesso e bastante coloridos.

No ano seguinte ao lançamento do filme de Zecca, visando fazer concorrência à bem sucedida produção, Alice Guy elaborou uma Paixão, que ela mesma confessou ter buscado aproximar das ilustrações de James Tissot (LACASSIN, 1994: 33). Tratavam-se de um conjunto de aquarelas realizadas por este ilustrador e pintor francês para o seu livro “«Vida de Jesus»” com 365 ilustrações (3). A obra se tornou extremamente popular desde seu lançamento em 1897, sendo imediatamente editada na Inglaterra nos Estados Unidos, em 1898, em versões mais baratas e populares. A justificativa da realizadora ao utilizá-la era que desejava um filme que contivesse um material mais “realista”. De fato, as imagens do filme de Zecca prestam-se mais à representação pura do que a qualquer forma de “realidade”. Ainda assim, não esperemos encontrar em Alice Guy um “neorealismo” à italiana (VADICO, 2005: 130, v.1). Estes filmes seriam seminais do que pouco tempo depois se chamou de “«film d’art” na França, que buscavam através das suas imagens um refinamento artístico.

Também o filme americano «From the Manger to the Cross», de sidney Olcott, de 1912, trazia o desejo de vincular uma grande parte das suas cenas às ilustrações de Tissot. Aproveitando que a sua equipe estava na Terra Santa, visando fazer uma série de filmes curtos, filmou nos locais onde o artista fizera anos antes suas pesquisas para as ilustrações. Outro filme que também utilizou o recurso de citação de pinturas clássicas à exaustão foi o de Giulio Antamoro, «Christus», de 1916, fazendo sempre referências ao Renascimento italiano. Já num período bastante posterior poderemos perceber que essa tendência se mantém, «The King of Kings», de Cecil B. DeMille, realizado em 1927, chegou a ter incluído em sua fotografia mais de 300 representações de obras de arte conhecidas do grande público (Solomon, 2001: 182).

Essa preocupação em associar os Primeiros Filmes de Cristo com as artes gráficas e também com a pintura faz com que possamos relacioná-los, não exatamente com um determinado estilo mas com uma busca de seus diretores e produtores pela beleza (4). Em outras palavras, estes filmes também deveriam chamar atenção por sua estética, não apenas pelo seu conteúdo narrativo, essa preocupação se sobrepôs inclusive à própria narrativa da vida de Jesus, como verificaremos ao longo deste texto.

Notamos esta busca pela estética, quando pensávamos a respeito da representação da transcendência nos Primeiros Filmes de Cristo (5). Ou seja, aquilo que toca ao Sagrado e que não é “visível” ou perceptível à nossa visão cotidiana, como as aparições, as transfigurações, etc, que se constituem em hierofanias (ELIADE: 2002, 19). Metodologicamente decidimos não levar em consideração a própria representação da vida de Jesus como sendo uma hierofania, pois a encarnação de Jesus Cristo no mundo também possui este significado, mas dedicamo-nos a buscar nestes filmes imagens que representassem o transcendente, buscando saber se este transcendente buscava levar a uma catarse religiosa do espectador ou se buscavam representar por eles mesmos uma hierofania do sagrado.

Surpreendentemente, chamou-nos a atenção o papel representado pelos anjos (6) nestas produções. Como não se tratam de seres costumeiramente encontrados em nosso cotidiano eles, para um pesquisador, só poderiam de imediato significar uma representação do Sagrado e ou uma representação de uma hierofania. Com isso em mente, percebemos nos diversos filmes anteriormente citados que nas cenas nas quais estes seres apareciam eles poderiam ser divididos em duas categorias: Agentes e Não Agentes.

Os que chamamos aqui de Agentes são os que possuem um papel qualquer a desempenhar que esteja intimamente vinculado à narrativa e cuja presença e ação estejam também, necessariamente, previstos no contexto das narrativas evangélicas. Um exemplo disso é a aparição do Arcanjo Gabriel para a Virgem Maria no episódio referente à Anunciação. Esta aparição é prevista e esperada pelos espectadores, pois se trata de uma típica hierofania, é Deus quem se revela através da presença do anjo e que desta forma leva à concepção virginal de Jesus. Os Não Agentes nos interessam particularmente. Em todos os filmes os “não agentes” aparecem, e sua principal característica é exatamente essa, eles não agem, não possuem função narrativa alguma, não se tratam de alegorias e são extremamente esvaziados de significados.

Neste artigo verificaremos apenas o caso da «Paixão da Pathé», utilizando as outras produções de forma comparativa. Particularmente, a produção da Gaumont, «La Vie et La Passion de Jésus-Christ» – ou simplesmente «Vie du Christ» - dirigida por Alice Guy, nos dará bons exemplos de imagens reincidentes. Até onde sabemos este filme não existe mais, no entanto, alguns fotogramas puderam ser resgatados e foi a partir da sua comparação com a «Paixão da Pathé» que pudemos desenvolver as idéias presentes neste artigo. Utilizaremos também algumas imagens do filme italiano «Christus», de Giulio Antamoro, de 1916, com o fito de demonstrar que essa utilização estética dos Anjos se mantém até um período bem tardio.


A Paixão da Pathé

«La Vie et la Passion de Jesus Christ», dirigida por Ferdinand Zecca e produzida pela Pathé, é um filme que até há pouco tempo não se encontrava disponível em sua versão original (7). Foi remasterizado e lançado em formato DVD no final de 2004, pela Magnus Opus. Em 2005, uma outra gravação foi lançada pela Studio Mille Produção, mais conhecida por “Classicline”, que lhe acrescentou uma narração e sub-títulos em português, completamente desnecessários ao nosso ver. Faremos uma rápida digressão para que se entenda um pouco da sua importância para os estudos de cinema.

Apesar do conhecido surto inicial de cinema nos Estados Unidos no fim do século XIX, os grandes produtores durante o período do Primeiro Cinema eram os franceses, eles é que moldariam o formato dos Primeiros Filmes de Cristo. Há várias produções de filmes de peça da Paixão naquele momento, considerando entre os anos de 1897 e 1905, mas sem dúvida nenhuma a produção mais importante era a da Pathé. O que mais a distingue em relação às outras é o fato de que se encontrava vinculada a um esquema de montagem e distribuição completamente industrial. Isto lhe permitiu chegar a diversas partes do mundo, garantindo-lhe uma grande influência; e seu amplo sucesso – suas vendas se contam por milhares e milhares de cópias - forneceu recursos para que a Pathé alavancasse seus investimentos em outros filmes. Ao mesmo tempo em que esta obra possui significado estético e religioso ela também tem importância para a indústria cinematográfica, no caso, para a Pathé francesa.

Na época do surgimento da empresa, em torno de 1898, se destacou em Vincennes o jovem Ferdinand Zecca. Charles Pathé confiou-lhe a direção das realizações. Logo que os negócios se intensificaram, construíram um estúdio ainda mais amplo que o de Méliès, o maior produtor francês na época. Sob a direção de Zecca os chamados "dramas realistas" desenvolveram-se numa direção "social" como, por exemplo, nos filmes «La Grève» e «Au Pays Noir». Em «La Grève» a greve terminava com a "reconciliação do capital com o trabalho" (SADOUL, 1970: 79) abençoada pela justiça. Zecca também, como diversos produtores daquele período, dedicou-se ao erotismo cinematográfico, assunto que já existia desde a época do kinetoscópio de Edison.

Em 1902, quando surge «La Vie et la Passion de Jesus Christ», ou simplesmente “«A Paixão da Pathé»” (8) era o que poderíamos chamar de momento de efervescência, onde se estabelecia uma indústria cinematográfica - coisa que pode ser percebida inclusive pela polivalência de Zecca - , diante deste quadro, aliada à sua qualidade estética, a outra grande virtude desse filme foi ser produzido em larga escala, sofrendo uma distribuição extremamente competitiva. Até o seu reaparecimento recente, sobre a versão original dessa produção se sabia apenas algumas poucas informações encontradas na obra clássica de Georges Sadoul, História do Cinema Mundial, onde ele informava: "Este filme, começado em 1902, só ficou terminado em 1905. O programa estabelecido constava de uns quarenta quadros e foi realizado de acordo com as possibilidades do estúdio. A estética dominante do filme é a mesma dos presépios de gesso vendidos em paris ao pé de São Sulpício. A magia do cinema, contudo transforma essas insípidas policromias e dá-lhes o encanto de um quadro primitivo" (SADOUL, 1970: 82).

Essa comparação inicial com os “presépios de gesso” fez também com que se dissesse que o filme foi rodado em estilo “«Saint-Sulpice»”, o que também significa dizer que buscava alguma semelhança com as imagens simplificadas e coloridas das representações católicas do período, fossem elas gráficas ou de estátuaria, além disso não possuía nenhuma preocupação com o realismo das cenas. Desde o lançamento o filme já era distribuído na versão colorida, pintado à mão. Os enquadramentos ainda obedeciam a frontalidade típica das pinturas religiosas; a câmera era fixa e as personagens eram enquadradas em plano geral. Estruturalmente o filme possui 34 cenas divididas em 4 blocos: 1. Nascimento e Vida Oculta de Jesus; 2. Vida Pública de Jesus; 3. Via Dolorosa e Gloriosa de Jesus; 4. A Glória Divina de Jesus (9).

No entanto, apesar destas características formais bastante conservadoras, o filme traz três cenas onde ocorre o inovador movimento panorâmico de câmera, de forma um pouco desajeitada ainda. E há também uma montagem paralela, no episódio, da «Fuga para o Egito». Além disso podemos contar ao menos duas cenas realizadas em plano médio – ou americano – sendo que uma delas se trata de um plano de detalhe. Os seus cenários são pintados com bastante capricho, são ainda teatrais, mas não são grosseiros e nem improvisados, como o eram os da «Paixão de Oberammergau» ou da «Paixão dos Lumières», ambos de 1898.

Dessa forma a «Paixão da Pathé» de 1902, marcou época pois iniciara o estilo que ficou sendo chamado de Filmes de Arte, que provocariam um forte ressurgimento do cinema na França, depois do recrudescimento causado pelo conhecido incêndio do Bazar de Caridade. Isso levou inclusive ao surgimento da êfemera companhia Film D'Art, que buscaria escritores e pintores de renome para seus roteiristas e para seus cenários. Através dessa preocupação, que nos parece sobretudo estética, buscava-se aureolar o cinema de uma respeitabilidade social, desejava-se alcançar os segmentos médios e altos da população que até então tinham visto o cinema como uma diversão própria para o povo.


O Caso dos Anjos Vazios

Como foi dito anteriormente, buscávamos estudar os aspectos da representação da transcendência nos Primeiros Filmes de Cristo, quando nos chamou atenção a forma pela qual eram representados os anjos, tidos aqui como um inequívoco caráter do transcendente. Notamos então dois tipos de representação, a dos Anjos Agentes e a dos Anjos Não Agentes. Na «Paixão da Pathé» as aparições dos anjos de forma geral se encontram concentradas nos momentos iniciais da vida de Cristo, como a «Anunciação», os episódios relativos à «Natividade» e à «Fuga para o Egito». Notemos caso a caso as aparições e suas funções.

A primeira cena do filme trata da «Anunciação» (fig.1), Maria aparece inicialmente buscando água numa fonte, entra em sua casa e lá ela será surpreendida, enquanto está em oração, com a aparição de um anjo. Trata-se do Arcanjo Gabriel, e sua aparição é previsível, uma vez que ele é citado nos textos evangélicos. É ele quem traz a notícia de que ela conceberá (Lc 1:26-38).



Nesta cena se mantém uma explícita relação com o Sagrado, pois não só há o fato de que é evangélico como também a forma como o diretor colocou Maria, em oração, buscando uma relação com Deus, de onde sobreveio uma revelação, uma hierofania portanto.



No caso da cena relativa aos Pastores, quando um anjo seguido por uma milícia de anjos anuncia o nascimento de Jesus, para um grupo de pastores próximos a Belém (citado em Lc 2:8-20), a primeira imagem que pode ser vista é a de um anjo apontando para a Estrela de Belém (fig.3). No entanto, isso não é evangélico. A estrela aparece aos Reis Magos e não aos pastores. Não se trata aqui de fazer correção textual, mas de verificar a beleza com que este anjo é mostrado ao apontar a Estrela. Ele cumpre ao mesmo tempo uma função narrativa e estética. Apesar de que uma “milícia” (fig.4) de anjos não tenha tido qualquer função na ação, inclusive no texto evangélico - exceto a de mostrar a grandiosidade de Deus e do acontecimento -, ainda assim eles fazem parte efetiva da narrativa.



O episódio «Fuga para o Egito» inicia-se com a cena de anjos tocando harpas e flautas, enquanto um deles incensa o local onde o menino Jesus dorme (fig.6). Ele está sozinho. A cena não é evangélica. Todo o seu significado se resume a: anjos tomam conta de Jesus enquanto ele dorme. Para a narrativa em si nada significa. Mas é um episódio que gasta em torno de 30 segundos, tempo suficiente para a apreciação da cena pelos espectadores. Os anjos são extáticos, mal fazem movimentos suficientes para tocarem os instrumentos. Anjos não agentes, portanto. A mesma cena, realizada de forma diversa pode ser vista na «Paixão da Gaumont» (fig.7), os anjos velam pelo sono do menino Jesus.



Em seguida desaparecem e José entra em cena, ele fecha as cortinas e vai se deitar, pois segundo o episódio evangélico, descrito em Mt 2:13-15, um anjo (Agente) lhe aparece em sonho e o avisa para fugir para o Egito com a mãe e a criança, pois Herodes planejava matá-los.



No filme ocorre uma ligeira alteração, pois o anjo aparece enquanto José está dormindo (fig.8), em seguida ele acorda e o saúda e ouve a mensagem, imediatamente tomando as providências para a Fuga.

Ao saírem de casa, Maria e Jesus, montados num burro guiado por José, saem de cena, e em seguida os soldados de Herodes chegam ao local, inicia-se uma montagem paralela de perseguição. Em meio a esta surge um Arcanjo que torna a sagrada família invisível, luta contra os soldados e dispersa-os, depois volta a tornar a família visível (fig.10), faz um estranho bailado e desaparece.



Ao mesmo tempo que este anjo não faz parte da narrativa evangélica, ele faz da narrativa fílmica, pois tem um papel e atua dentro dela, mesmo que seja completamente fictício. E ainda assim, mantém o aspecto de uma hierofania, uma vez que se trata de uma intervenção divina.

No repouso da «Fuga para o Egito» que a Família Sagrada faz, ocorre a presença de um anjo, novamente sem função sacra ou narratológica, se encontra posicionado frente à Esfinge (fig.11). Anos depois em «From the Manger to the Cross», de 1912, a mesma cena seria realizada, mas com a total ausência do anjo. No filme de Giulio Antamoro, de 1916, existe uma cena parecida, mas neste caso os anjos vêm servir Maria e Jesus (fig.12).



Após este período inicial da vida de Jesus onde ocorrem anjos em abundância, eles desaparecem quase que por completo da «Paixão da Pathé», voltando somente no momento em que Jesus ora no Jardim das Oliveiras (fig.13). O episódio é evangélico, mas a presença do anjo não. Tanto na produção da Pathé quanto da Gaumont (fig.14) ele está colocado ali cumprindo uma função simbólica, no entanto, mesmo nessa função ele cumpre uma determinação estética; isto pode ser percebido sobretudo em seu caráter de imobilidade, ele não faz praticamente nenhum movimento, exceto o suficiente para os espectadores saberem que “está vivo”. Em Christus, tardiamente, ocorre uma pequena evolução da cena, o anjo oferece o “cálice” a Jesus que o toma e o devolve (fig.15), aceitando simbolicamente seu sacrifício.



Vamos reencontrar os anjos somente no episódio relativo à «Ressurreição», onde no processo do ressurgimento de Jesus quatro anjos aparecem e levantam a pedra do sepulcro com as mãos (fig.16), apesar de artístico, não é evangélico e nem se encontra narrado nos textos apócrifos, também se trata de uma situação desnecessária na narrativa, uma cena criada exclusivamente para efeito estético, ainda que eles “ajam” os classifico de “não agentes” pois não se adequam à narrativa e nem à estória em si.



Após a Ressurreição de Cristo, chegam ao local Maria Madalena e alguns discípulos (fig.18), que são informados por outro anjo que ele Ressuscitou. Trata-se de uma passagem adaptada dos textos evangélicos e é funcional no que diz respeito à narrativa.



Esta última cena encerra a participação dos anjos na «Paixão da Pathé». Na «Paixão da Gaumont» ocorre ainda um episódio que é de difícil percepção sem o contexto do filme, mas que pode ser interpretado de duas formas, e qualquer uma delas nos serve. Na imagem abaixo (fig.19) vemos a realização de uma ceia. Vemos Jesus no centro da mesa, ele está caracterizado com um manto, coroa de espinhos, vestido com o “fraudão” característico; isso poderia fazer com que pensássemos que se trata da sua aparição no cenáculo para os apóstolos, logo após sua Ressurreição, o que seria bastante plausível.



No entanto, vemos um personagem do lado direito da cena se retirando; a maior parte dos olhares estão voltados para ele; essa cena e essa disposição são típicas da Santa Ceia, quando Judas se levanta da mesa para trair Jesus. Os trajes de Jesus então se explicariam por um simbolismo. Em qualquer das circunstâncias não se justifica a presença dos anjos no fundo da cena. Eles levantam taças, que tanto podem ser símbolo da vitória de Jesus sobre a morte ou o “cálice” de sofrimento que ele deveria provar. Eles não são vistos, logo não se trata de uma hierofania. Esses anjos não são garantidos pela narrativa evangélica ou por qualquer texto apócrifo. Simbólicos ou não eles estão lá compondo a cena, provocando um efeito sobretudo estético. Em outras palavras, Anjos Não Agentes.

Não se trata de demonstrar que existem Anjos Não Agentes na «Paixão da Pathé», mas de pensar porque estão lá e que função eles poderiam possuir, uma vez que escapam da atuação na narrativa e da representação de uma possível hierofania. Buscando na obra de James Jacques Tissot e na de Gustave Doré, ambos ilustradores muito conhecidos na época e que foram reputados pelos pesquisadores como influenciadores da qualidade visual desses filmes, não encontramos qualquer imagem de anjos que se assemelhasse ou sustentasse essas composições estéticas. Elas podem ter vindo de “Santinhos” típicos do período ou de outras representações gráficas, por enquanto não acessíveis. O fato é que se estes Anjos Não Agentes não estão servindo ao propósito de remeter a uma relação com alguma obra famosa, se não estão relacionados entre os fatos evangélicos, se não estão fazendo parte efetiva da narrativa, e se não representam uma hierofania, o que fazem lá?

No caso da «Paixão da Pathé», a relação estética é algo que não basta para explicar os Anjos Não Agentes, pois “relação estética” cabe não só para todos os tipos de anjos citados como também para o filme como um todo. Primeiramente afirmemos que eles cumprem uma função estética. Notemos que nos quadros em que aparecem eles são distinguidos por uma extrema imobilidade, como se quisessem remeter para alguma obra pictórica conhecida – coisa que não o fazem (10). Ainda que alguns deles pudessem ser considerados como alegorias, elas são de significado muito limitado. Tenderemos, então, a encontrar para estes anjos outra função, uma que lhes seja completamente adequada. Uma função que se coadune com o espírito da época, pois não se trata de contentar as interrogações de um pesquisador, mas de compreender essas imagens naquilo que elas propriamente revelam sobre si e seus contemporâneos elaboradores e espectadores.

O que caracteriza este “esvaziamento” da imagem demonstrado é a imagem enquanto ornamento. Os Anjos Não Agentes são uma ornamentação. Da mesma forma que no século XIX e no início do século XX há um gosto popular pelas ornamentações gráficas, quer fossem nos frontispícios de livros ou cartazes (PEVSNER: 2002, 79); pela ornamentação na arquitetura, que rescindia o classicismo ornamental e viu aparecer o «Art Noveau». Apesar destes anjos não seres caracterizados por traços que lembrem de qualquer forma os movimentos pictóricos do período, como o «Art Noveau», por exemplo (ARGAN: 2006, p.202), eles são imobilizados na cena e ali colocados como um “belo enfeite” para o encanto dos olhos dos espectadores.

Devemos dizer que também não se trata de um regime de “mostração” e nem de “atração” (COSTA: 1995, p.117), se bem que estas idéias muito nos serviriam, no entanto os Anjos Não Agentes não servem para chamar a atenção sobre a técnica ou sobre a capacidade tecnológica do aparato, eles são realizados apenas para fruição do que eles são. São quadros fechados em si mesmos, dentro de uma narrativa que deles prescinde.

Assim, cumpre fazer uma distinção entre a Representação do Sagrado, no que tange a hierofania, e a ornamentação, esvaziada do sentido do sagrado, mas que reenvia à idéia daquilo que é Sagrado, sem tocá-lo, no entanto. Neste quesito, a Beleza dos Anjos, serve à Beleza procurada na relação com o Sagrado nestes filmes, mas, serve mais ao espírito de época que se comprazia no gosto pelo ornamental, e se caracterizava também pela busca da revalorização das práticas artísticas consideradas menores; ausentes dos salões, mas que faziam parte do cotidiano dos diversos ofícios (DEMPSEY, 2003: 33).

É importante notar que os Anjos Não Agentes são uma característica apenas dos Primeiros Filmes de Cristo, alguns resquícios deles sobrevivem ainda no «Christus» de Antamoro, no entanto, essa produção destoa do que era produzido no resto do mundo de então, era pretensiosa no quesito “pretendo ser uma obra de arte” e não foi possível encontrar filmes por ela influenciados. Sua originalidade está em desejar dar à estória de Jesus um caráter esotérico, localizando seu desenvolvimento “espiritual” no Egito Antigo, fazendo com que ele volte à Palestina apenas no período da sua vida adulta. No quesito representação do Sagrado e Experiência do Sagrado o filme de Antamoro esbarra numa grandiloqüência vazia; entretanto, este filme guarda, como uma sobrevivência do passado, algumas características da estética desenvolvida pelos filmes da Pathé e da Gaumont.

Indo na direção que seria bastante adotada pelo cinema como um todo, «From the Manger to the Cross», de Sidney Olcott, realizado em 1912, apesar da grande proximidade com a obra de James Tissot, e tendo em vista que este não dispensou os anjos em suas gravuras, buscou uma representação do Sagrado esvaziada de qualquer corporeidade. Onde antes haviam anjos previstos, eles foram substituídos por uma luz forte projetada que os representava. Nas décadas seguintes até mesmo os efeitos de luz foram abandonados em favor de uma representação do Sagrado mais intuída do que visível. O Sagrado praticamente desaparece enquanto efeito estético tangível. As diversas formas nas quais ele viria a ser representado nas produções relativas à estória da Vida de Jesus tenderiam cada vez mais à não representação visual. Verificamos, portanto que essas imagens de Anjos são, sobretudo, uma característica de época e que sua função e objetivo são ornamentar a estória da vida de Jesus.

 
__________________________________________________________________________
AUMONT, Jacques. «O Olho Interminável [cinema e pintura]». São Paulo: Cosac e Naif, 2004.

BAUGH, Lloyd. «Imaging the Divine. Jesus and Christ-figures in Film». Franklin: Sheed & Ward, 2000.

BUSSAGLI, Marco. «Angels». New York: Abrams, 2006.

COSTA, Flávia Cesarino. «O Primeiro Cinema». São Paulo: Editora Página Aberta, 1995.

DANTO, Arthur C. «A Transfiguração do Lugar-comum». São Paulo: Cosac & Naif, 2005.

DEMPSEY, Amy. «Estilos, Escolas e Movimentos. Guia Enciclopédico da Arte Moderna». São Paulo: Cosac e Naif, 2005. 1ª. Reimp.

ELIADE, Mircea. «Tratado de História das Religiões». São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GAUNTIER, Gene. «Blazing the Trail in: Woman's Home Companion», Volume 55, Number 10, October 1928.

GUIMARÃES, Cesar; LEAL, Bruno Souza & MENDONÇA, Carlos Camargos (orgs). «Comunicação e Experiência Estética». Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

LACASSIN, Francis. «Pour Une Contre-Historie du Cinèma». Paris: Institute Lumière/Actes Sud, 1994.

PEVSNER, Nikolaus. «Os Pioneiros do Desenho Moderno. De William Morris a Walter Gropius». São Paulo: Martins Fontes, 2002. 3ª. Ed.

SADOUL, Georges. «A História do Cinema Mundial», Lisboa: Livros Horizonte, 1970.

SOLOMON, Jon. «The Ancient World in the Cinema». London/New Haven: Yale University Press, 2001.

TATUM, Barnes. «Jesus at the Movies. Guide to the First Hundred Years». Santa Rosa: Polebridge Press, 1997.

VADICO, Luiz Antonio. «A Imagem do Ícone – Cristologia Através do Cinema. Um Estudo Sobre a Adaptação Cinematográfica da Vida de Jesus Cristo». Campinas, SP: [s.n.], 2005. Unicamp/tese.

 
(1) O site francês Gallery Alice Guy é dedicado à vida e obra da diretora, e depois produtora, Alice Guy; entre outras fotografias, nele se encontram arquivados 14 fotogramas do filme Vue du Christ. Acessado em 22 de janeiro de 2008. http://aliceguy.free.fr/cpg/thumbnails.php?album=15&page=1

(2) Os pesquisadores mais conhecidos são Barnes Tatum, Lloyd Baugh, Richard Stern, Jon Solomon, William Telford e Charles Musser. Em seus livros, citados na bibliografia, se constata a quase total ausência de discussão relativa aos problemas estéticos dos filmes. Quando muito comentam e descrevem a forma ou o estilo, no entanto, sem realizar nenhuma discussão comparativa entre os filmes e sua estética.

(3) A referência completa do livro em sua versão para o inglês é: TISSOT, Jacques James. «The Life of Our Saviour Jesus Christ-Three Hundred and Sixty-Five Compositions From the Four Gospels With Notes and Explanatory Drawings By J. James Tissot». London: Sampson Low, Marston & Co, 1898. O livro de Tissot é extremamente raro, desconhecemos reedições posteriores a 1900. O conjunto de ilustrações realizadas para essa obra é famoso, no entanto, não está disponível de qualquer forma em seu conjunto. Encontramos cerca de uma centena de suas imagens na internet, seguramente é uma amostra pequena num universo de 365 ilustrações. Socorremo-nos também do catálogo publicado pelo The Art Institute of Chicago, que relacionou os títulos das ilustrações para uma exposição ocorrida em 1899 («Catalogue of Works of J. James Tissot – The Life of Our Lord Jesus Christ. Chicago: The Art Institute of Chicago, 1899»).

(4) Ao falarmos em “Beleza” aqui não estamos entrando na questão do “Belo” como pode parecer num primeiro momento. Usamos o termo da maneira mais corriqueira, quando se refere ao “bonito” ao agradável aos olhos; que é sobretudo uma questão relativa ao “gosto”, com todas as inflexões histórico-sociais que lhe são pertinentes.

(5) Chamamos de Primeiros Filmes de Cristo um conjunto de filmes que estão circunscritos no período da História do Cinema chamado de “Primeiro Cinema” (1895-6/ 1905-6), utilizo aqui a conceituação de Flávia Cesarino Costa, na sua tradução dos termos: «Early Cinema e Early Films» (COSTA: 1995, p.8). No entanto, tendo em vista as especificidades dos Filmes de Cristo, sejam estéticas sejam narrativas, permitimo-nos alongar o período para os anos entre 1897 e 1912.

(6) Após o visionamento dos diversos filmes fazer um estudo sobre a tipologia dos anjos neles encontrados pareceu desnecessário. Neste processo foi de grande valia o livro de Marco Bussagli: Angels. New York: Abrams, 2006.

(7) A versão que possuíamos era a de 1921. «A Paixão da Pathé» foi iniciada em 1902 e concluída em 1905, no entanto, recebeu imagens novas e teve sua versão modificada sucessivamente em 1907, 1914 e 1921. A última versão mantinha os materiais originais de 1902, no entanto, sem a versão original era muito difícil dizer quais eram as imagens que a compunham na primeira versão e o que foi efetivamente visto pelo público daquele período.

(8) O título “Vida e Paixão de Jesus Cristo” é comum a praticamente todos os filmes de Cristo do Primeiro Cinema, por essa razão costumeiramente os pesquisadores os designam pelos seus produtores e ou diretores, como por exemplo: A Paixão de Kircher, A Paixão de Zecca ou da Pathé, A Paixão da Gaumont, A Paixão de Lubin, etc.

(9) Estruturalmente o filme possui 34 cenas divididas em 4 blocos: 1. Nascimento e Vida Oculta de Jesus; 2. Vida Pública de Jesus; 3. Via Dolorosa e Gloriosa de Jesus; 4. A Glória Divina de Jesus.

1. Nascimento e Vida Oculta de Jesus: A Anunciação; O recenseamento em Belém; A Partida para Belém; o estábulo, A estrela Misteriosa (os pastores); a Jornada em Direção à Estrela (Reis magos); "O Nascimento do Menino Jesus"; A Adoração dos Reis Magos; A Matança dos Inocentes (Fuga para o Egito); A Santa Família em Nazaré; "Jesus Entre os Doutores";

2. Vida Pública de Jesus: O Batismo; As Bodas de Caná - transformação da Água em vinho; A Regeneração de Maria madalena; (A Mulher Samaritana - sem intertítulo); A cura do Cego e do Entrevado"; A Ressurreição da Filha de Jairo (travelling); Jesus Caminha Sobre as Águas (ator diferente); A Pesca Milagrosa (bem antigo); A Ressurreição de Lázaro; A Transfiguração; "Entrada em Jerusalém - Domingo de Ramos"; A Expulsão dos Vendilhões do Templo; A Ceia.

3. Via Dolorosa e Gloriosa de Jesus: : "O Beijo de Judas"; Jesus em Presença de Caifás; Pedro Renega o Mestre; Jesus Diante Pilatos; A Flagelação; O Caminho do Calvário (as quedas, o Cireneu, Verônica e a crucificação); Agonia e Morte de Jesus; Descimento e Sepultamento.

4. A Glória Divina de Jesus: A Glória Divina de Jesus Manifestada na sua Ressurreição e A Ascensão".

(10) A fim de fazer essa análise me apoio no livro de Marco Bussagli, Angels, onde ele faz um levantamento exaustivo das imagens de anjos na arte pictórica ocidental (BUSSAGLI: 2005). A única exceção neste caso, é para os anjos agentes, também o anjo que segura o cálice para Jesus enquanto ele ora no Horto, é uma cena recorrente na arte pictórica, no entanto, não foi possível encontrar imagens que fossem estritamente semelhante ás do filme.

 
voltar