Artigo | edição 2 | Janeiro-Junho de 2008
Severa, Gabriela, Dona Beija e outras travessias
 
Maria Cristina Castilho Costa |
 
Introdução: o Arquivo Miroel Silveira

Em 2000, indicada para presidir a Comissão de Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, entrei em contato com um grande acervo constituído de processos de censura prévia ao teatro em São Paulo, de 1930 a 1970. Eram documentos originais oriundos do setor encarregado da censura teatral na Divisão de Diversões Públicas (DDP) paulista e que hoje constituem o Arquivo Miroel Silveira (AMS), nome que homenageia o professor responsável pelo resgate dessa documentação pouco antes a extinção da censura prévia determinada na Constituição de 1988. Guardado em sua sala no Departamento de Artes Cênicas, da ECA-USP, esse material foi entregue após sua morte à Biblioteca e lá esperava uma iniciativa de organização e tratamento técnico que permitisse disponibilizar a documentação à consulta.

O Arquivo Miroel Silveira é composto de 6.137 processos de censura prévia ao teatro, cada um deles constituído de solicitações de censura apresentadas pelos responsáveis pela encenação da peça com indicação de local e data do espetáculo, nomes de autores, tradutores, adaptadores, diretores, atores e atrizes; recibos de pagamento de taxas; despachos; pareceres e Certificados de Censura, além do próprio texto original apresentado aos censores com suas indicações e cortes. Os documentos foram produzidos ao longo de um período (quase quatro décadas) que atravessou importantes momentos da história brasileira: Velha República, Estado Novo e a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), o período de redemocratização no pós-guerra, o desenvolvimentismo do governo Juscelino Kubitscheck, o Golpe Militar, a promulgação do AI-5 até início da década de 1970. Em 1968, deu-se a federalização da censura prévia ao teatro e a conseqüente extinção das seções estaduais, mas o AMS contém, ainda, algumas cópias de processos da censura federal.

Miroel Silveira conhecia bem a riqueza dessas informações, pois foi, em parte, com base nesse material que ele pôde realizar extensa pesquisa sobre o teatro italiano em São Paulo, elaborando sua tese de doutorado «Comédia de costumes período ítalo brasileiro: subsídio para estudo da contribuição italiana ao nosso teatro», posteriormente publicada como livro. Sensível à abundância de informações existentes nessa documentação, quer para a reconstrução da história do teatro em São Paulo e no Brasil, quer para entender os mecanismos e critérios da censura, passei a me dedicar preferencialmente à organização e catalogação desse material e à criação de uma base de dados que tornasse acessível aos interessados nas informações históricas e estéticas do teatro em São Paulo, no século XX.


Pesquisando o Arquivo Miroel Silveira

O primeiro projeto de pesquisa, com financiamento da FAPESP, intitulou-se «ARQUIVO MIROEL SILVEIRA: a censura em cena, organização e análise dos processos de censura teatral do Serviço de Censura do Departamento de Diversões Públicas do Estado de São Paulo». Ao longo dos dois anos e meio de duração do projeto (2002 a 2005) procedeu-se a uma primeira organização dos documentos e gerou-se uma base de dados(1) a partir da qual as informações neles contidas pudessem ser acessadas.

Nesta primeira etapa de trabalho, pesquisamos a origem colonial dos processos censórios no Brasil, a oficialização da censura no Império e sua transformação em instância burocrática a partir da República. Essa secular presença da censura na política brasileira foi estudada também por outros pesquisadores como Beatriz Kushnir(2) e José Inácio de Melo Souza(3) que, investigando especialmente a censura aos meios de comunicação, mostraram que os dispositivos censórios se tornaram cada vez mais duros no decorrer da nossa história. Como afirma Souza ao referir-se ao início da República: «em 1891 tivemos o “decreto-rolha”, em 1923, a “lei infame. E para fechar a década, a “lei celerada” »(4). Procuramos contribuir com essa discussão mostrando que o mesmo acontecia com as chamadas diversões públicas e com a produção artística e, com base nos processos do AMS, buscamos desvendar os critérios que orientavam os censores e as repercussões de sua intervenção nas peças estudadas. Os resultados desses estudos foram publicados no livro «Censura em cena»(5), em 2006.

O volume de documentos, porém, exigia espaço e um tratamento mais adequado, que procedesse à higienização e recuperação material dos processos. Além disso, seria necessário envolver outros profissionais no projeto. Foi assim que surgiu o projeto temático «A CENA PAULISTA: um estudo da produção cultural de São Paulo, de 1930 a 1970, a partir do Arquivo Miroel Silveira da ECA-USP». São objetivos centrais desse projeto pesquisar a censura e suas repercussões na produção artística, as formas de sujeição do artista aos interesses do Estado, bem como os métodos utilizados, as rotinas burocráticas, os critérios e as justificativas do serviço de censura. Pretendemos analisar a cumplicidade e conivência da sociedade em relação ao cerceamento da expressão artística, bem como a autocensura resultante do uso recorrente da censura prévia. Temos também a intenção de averiguar as diferentes formas de resistência com as quais diretores, produtores e autores teatrais reagiram ao cerceamento da liberdade de expressão promovida pelo Estado.

Trata-se de uma abordagem multidisciplinar que envolve saberes de arquivística, ciência da comunicação e da informação, além de filosofia, sociologia, história e teoria da arte. Temos hoje mais de vinte e cinco pessoas trabalhando em diferentes níveis acadêmicos que vão do pós-doutorado ao doutorado, mestrado, iniciação científica e pré-iniciação científica – contamos até mesmo com alunos de ensino médio que buscam capacitação profissional junto ao Projeto. Para isso, recebemos subsídios da FAPESP, do CNPq e da Universidade de São Paulo.

Desde 2006, temos procurado internacionalizar a pesquisa, especialmente através das relações com Espanha e Portugal. Na Espanha, participamos do «II Congresso Internacional Escrituras Silenciadas»(6), na Universidade de Alcalá de Henares e, em Portugal, desenvolvemos um Projeto de Pesquisa em Nível de Pós-Doutorado intitulado «A presença portuguesa no Arquivo Miroel Silveira – um estudo sobre censura, teatro e indústria cultural em Portugal e Brasil, na primeira metade do século XX»(7). Nesses países, encontramos pesquisadores e instituições especialmente interessadas no estudo da censura aos meios de comunicação e ao teatro. Entre elas estão a Fundação Mário Soares(8), o Centro de Investigação Media e Jornalismo(9), o Centro de Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa(10) e o Instituto de Estudos Jornalísticos, da Universidade de Coimbra.


Intertextualidades

Dentre os temas que se desenvolvem no Projeto Temático, um deles analisa as relações entre teatro, cinema, rádio e televisão, buscando intertextualidades através do estudo da biografia dos autores dos textos que compõem o acervo estudado, assim como da trajetória dos títulos e de suas adaptações e traduções para outras mídias e linguagens. O que passo a narrar agora é um exemplo das possibilidades de se rastrear as trocas simbólicas entre diferentes mídias, linguagens e países, tomando como fio condutor a peça de teatro do autor português Júlio Dantas «A Severa», presente no Arquivo Miroel Silveira, cujo estudo nos leva a reconhecer uma possível influência dessa personagem sobre a construção de outras heroínas que povoam as telenovelas brasileiras.

Cada processo do Arquivo Miroel Silveira refere-se a uma única peça teatral, cuja encenação foi solicitada pelo autor ou por um produtor responsável pelo espetáculo. Uma vez examinada pelos censores e liberada a peça, era expedido um Certificado de Censura com validade de dois a cinco anos, conforme a época (houve períodos de censura mais rígida em que os certificados tinham menor validade). Decorrido o tempo estabelecido pelo certificado, outra solicitação deveria ser feita quando nova encenação fosse programada, sendo a nova documentação anexada ao processo anteriormente aberto. Em razão disso, podemos resgatar datas, locais e nomes de companhias relacionados a diferentes apresentações públicas de uma determinada peça. Ocasionalmente, quando nova solicitação de liberação era feita para um texto e o funcionário da Divisão de Censura não encontrasse o prontuário já aberto, novo processo era iniciado, havendo duplicação de informações. Foi isso que aconteceu com «A Severa», para a qual há dois prontuários no AMS, um de número 74 e outro de número 135.

A documentação existente nesses processos mostra que a estréia se deu em 1931, quando a Cia. Portugueza de Revistas requereu sua liberação para apresentação no Theatro Casino Antártica. Depois disso, houve novas reapresentações: em 1933, pela Cia Adelina Fernandes que a encenou no Teatro Avenida, e pelo Grupo Dramático Musical Luso Brasileiro; em 1942, encenação realizada pelo empresário João Silva Junior. Nesse mesmo ano, «A Severa» subiu ao palco do Circo Teatro Scala, por iniciativa de Benigno Magno, provavelmente o empresário dono do circo. «A Severa» ainda foi apresentada no Cine Piratininga, sob responsabilidade da Empresa Avelar D'Assumpção Galeco, em 1959. Podemos dizer, portanto, que, na primeira metade do século XX, a peça se tornou conhecida dos brasileiros, tendo estado presente no teatro paulista, com certeza, por 28 anos, de 1931 a 1959.

Quanto aos espaços por onde andou «A Severa», podemos constatar que se tratavam de locais populares, dedicados geralmente a revistas, musicais ou «shows de variedades, voltados para um público que lá buscava entretenimento. Ao que parece, «A Severa» passou ao largo do circuito onde se processava, na mesma época, um movimento intenso de renovação cênica: o TBC (Teatro Brasileiro de Comédias), a EAD (Escola de Arte Dramática), ambos de 1948, e o Teatro Oficina, inaugurado em 1958. Passava ao largo, também, dos palcos mais consagrados onde a elite paulista costumava consumir a chamada alta cultura, como o Teatro Municipal. «A ceia dos cardeais, do mesmo Júlio Dantas, subiu duas vezes, pelo menos, ao palco do Municipal: em 1927 e 1954. Esta última encenação foi em homenagem ao IV Centenário da cidade de São Paulo(11). Em 1942, quando «A Severa» era apresentada no Circo-Teatro Scala, Dias Gomes era lançado em São Paulo com a peça «Pé de cabra» e Bibi Ferreira aparecia em «Inimigo das mulheres», de Goldoni, como revelação do ano(12). Alheia a esses movimentos de renovação, «A Severa» novamente era encenada em um palco e para um público característico dos espetáculos populares e de entretenimento.

Júlio Dantas, o autor, foi escritor, jornalista e médico. Foi Presidente da Academia de Ciências de Lisboa e do Conservatório Nacional, Ministro da Instrução Pública e Ministro dos Negócios Estrangeiros. Ocupou diversos cargos públicos e tornou-se figura proeminente em Portugal, como representante de uma geração de autores ligados à estética novecentista. Em razão disso, José de Almada Negreiros escreveu, em 1916, o «Manifesto Anti-Dantas», obra que se tornaria um marco do modernismo português. Foram oito páginas impressas em papel de embrulho atacando toda uma geração de jornalistas, escritores e atores portugueses, dos quais Júlio Dantas aparecia como figura de proa.

Dantas esteve ligado ao salazarismo e, ao mesmo tempo, muito próximo do governo Vargas, no Brasil, onde foi embaixador de 1941 a 1949. Portanto, quando «A Severa» percorria os palcos brasileiros, seu autor a espreitava de perto. Como diplomata, sempre que pôde, procurou aproximar o Estado Novo de Getúlio Vargas do Estado Novo de Salazar, o que lhe garantiu também uma ambígua posição política que se refletia na recepção de suas obras. Como dizia Almada Negreiros em seu manifesto: «E o Dantas teve claque! E o Dantas teve palmas! E o Dantas agradeceu! » Assim, se, por um lado, a referida peça era tida como mais um musical português, por outro era recebida como obra de um autor estética e politicamente conservador. Isso, entretanto não parece ter condenado esse o espetáculo ao fracasso – ele tinha ingredientes capazes de lhe garantir público fiel e longevidade.


Severa

«A Severa» estreou em Lisboa a 25 de janeiro de 1901, no Teatro D. Amélia, com um êxito estrondoso, segundo Luís de Oliveira Guimarães(13). A história, contrapondo fidalguia portuguesa e plebeus em meados do século XIX, tinha como cenário inusitado um café na Mouraria, em Lisboa, onde se reuniam fadistas, toureiros e bandidos. A protagonista é Maria Severa, uma prostituta de baixa classe, filha de uma cigana também prostituta. Formosa e livre, Severa freqüentava a taverna onde tocava o fado como ninguém, o que acentuava seus encantos. Por ela se apaixona um fidalgo, o Conde de Marialva, com quem mantém um tórrido romance.

O enredo mostra a paixão arrebatadora e ilícita entre Severa e Marialva, confrontada com a diferença de classe e de cultura que os separa. Assim, pelos quatro atos do drama, enquanto os amantes se aproximam e se afastam, o público se identifica ora com a rudeza do mundo dos fadistas, ora com a fidalguia do universo das touradas, onde Marialva circulava. Em torno dos dois, contracenam Custódio, um sacristão epilético apaixonado por Severa e uma marquesa, rival da fadista, que tenta obter as graças do conde. Alternando humor e drama, a peça termina com a morte da protagonista por tuberculose, o que põe fim ao tumultuado romance do casal.

O autor retratou o mundo atraente e estranho das tavernas e das classes sociais subalternas de Lisboa, procurando tanto chocar como atrair o público, constituído da abastada burguesia portuguesa. Até mesmo o linguajar tentava ser fiel à origem popular da protagonista. Diz Wilhelm Giese, crítico de Dantas, que, logo às primeiras cenas, o público entra em contato com uma linguagem popular e vulgar que «dá a essa peça o seu especial destaque»(14). De acordo com os documentos do AMS, os censores brasileiros tiveram o mesmo estranhamento diante dessa “vulgaridade” nos diálogos da peça e trataram de cortar do texto palavras como «fêmea» e «cadela».

Um fato curioso colabora com o apelo da peça: ela seria a versão romanceada de um fato verídico. Segundo a tradição oral, Maria Severa Onofriana, filha do cigano Severo Manuel de Sousa e da prostituta portuguesa Ana Gertrudes Severa, cuja alcunha era “Barbuda”, nascera em 1820 em Lisboa dos Anjos. Com a beleza exótica dos mestiços e uma voz de encher os ouvidos, logo adotou a profissão da mãe, tornando-se famosa tanto pelos fados como pela beleza, tendo atraído um leviano fidalgo dedicado às touradas eqüestres: o Conde de Vimioso. Com ele teve um romance tórrido e difícil que a ajudou a contrair a tuberculose que a matou em 1846, com apenas 26 anos. Teria sido a primeira cantora de fado, ritmo que os portugueses abraçaram como seu e que, segundo consta, teve suas origens nos lundus africanos cantados em África e Brasil pelos escravos.

O próprio Dantas conta em «Páginas de memórias» que poucos dias antes da estréia da peça ele foi procurado pelo Presidente do Conselho e Ministro do Reino que lhe pedia encarecidamente para alterar o nome do fidalgo de sua peça, a pedido da família Vimioso. O autor chegou a falar diretamente com o descendente do Conde, comprometendo-se a dar o nome de Marialva em sua obra, ao amante de Severa(15). Como se pode perceber, a censura das obras artísticas nem sempre começa nos Serviços de Censura. A sociedade é também conivente com esses arbítrios. De qualquer forma, pensar na veracidade da trama fazia despertar ainda mais o interesse pela peça. Segundo relato de Dantas, o mesmo descendente do Conde de Vimioso pediu também para assistir ao último ensaio, diríamos, como um autêntico censor. Com o consentimento do autor, ele lá esteve presente e, segundo ainda as memórias de Dantas, o homem se emocionou às lágrimas e até mesmo emprestou suas botas ao ator que interpretava o fidalgo, para que melhor calçasse seu personagem.

O sucesso com a encenação da peça fez com que o autor decidisse escrevê-la sob a forma de romance em fascículos, obtendo também com ele grande aceitação. Em 1909, André Brun transformou-a em opereta, musicada pelo maestro Filipe Duarte. Em 1931, «A Severa» chegava às telas, em filme de Leitão de Barros, o primeiro sonoro rodado em Portugal. Dele participou Beatriz Costa, atriz de teatro que mais tarde radicou-se no Brasil, tendo se destacado no país como atriz e empresária.

«A Severa» continuou sendo remontada e recebida com entusiasmo pelos portugueses, levando à fama inúmeras fadistas que se revezaram no papel da protagonista: Ângela Pinto (que atuou na estréia da peça), Adelina Abranches, Palmira Bastos, Palmira Torres, Emília de Oliveira, Júlia Mendes, Ester Leão, Maria Clementina, Adelina Fernandes, Justina Magalhães, Dina Teresa e, em 1955, finalmente, Amália Rodrigues veste a personagem, ainda emocionando as platéias. Em 1933, foi a Companhia de Adelina Abranches que encenou a peça no Casino Antártica, no Brasil. Como musical, a peça foi traduzida para vários idiomas, sempre tornando inesquecíveis as atrizes que a protagonizaram.


Severa e Margueritte Gautier

Assim, enquanto «A Severa» era levada ao palco no Brasil, era aplaudida também em Portugal. É fácil entender o encanto que a protagonista despertava nas platéias brasileiras cheias de saudosos imigrantes portugueses e muitos mestiços de diversas origens. Mas, se Maria Severa era filha de cigano com portuguesa, há quem veja nela sangue de outra origem – há quem a considere irmã gêmea de Marguerite Gautier, de «A Dama das Camélias», criada por Alexandre Dumas Filho e estreada nos palcos parisienses em 1852. O amor impossível da cortesã francesa pelo aristocrata Armand Duval seria muito semelhante ao conflito entre Severa e Marialva. O fim trágico de ambas, vitimadas pela tuberculose, é outro ponto que favorece a aproximação entre as duas obras.

Realmente, a literatura romântica criou arquétipos que contagiam diversos autores e obras até hoje, mas há alguma coisa em «A Severa» que escapa ao romance francês. Enquanto em «A Dama das Camélias» o ambiente é o da corte parisiense onde as cortesãs disputavam homens e fama com as damas aristocratas e freqüentavam ambientes requintados do ponto de vista social e intelectual, a Mouraria de Dantas é um espaço de sociabilidade dos grupos sociais mais populares de Portugal. Giese comenta que Dantas trouxera para os palcos as camadas inferiores de Lisboa, que nunca antes haviam tido espaço na literatura lusitana(16). Nos diálogos, continua o crítico, nota-se o rude falar popular em expressões como “raio da cigana”, “cheira-defuntos”, “benza-nos” e outros que permeiam todas as falas, enchendo-as de realismo. Com ele, o autor procura mostrar um mundo ao mesmo tempo cheio de devassidão e ternura. Quanto à protagonista, Giese considera-a o próprio retrato da cigana – mestiça, livre e apaixonada, Severa é diferente até mesmo das mulheres portuguesas das camadas mais baixas, que não gozam dessa espontaneidade(17). Diz ele:

    “A sua qualidade mais característica é a sua natureza selvagem. Arremeça a chinela ao Marialva, como uma expansão do seu amor (p. 46). Com a expressão “Raio de coração que a gente tem” (p. 50) domina de repente todas as suas emoções, e toda a excitação sentimental vem a exteriorizá-la no fado (p. 51), onde dá livre curso a todas as suas emoções... A seguir aos versos selvagens das primeiras estrofes – “trago a navalha na liga!” – “Da pistola sabe tudo” – geme como um lamento o primeiro verso da terceira estrofe “Ai o amor das do fado”.(18)

A própria Severa não esconde sua origem humilde e a ostenta com orgulho. Assim se apresenta à marquesa sua rival: «Pois eu cá sou A Severa, filha da fortuna, neta da extravagância, aquela, a tal, a outra, a que anda à gandaia»(19). Assim, julgamos que, mesmo tendo bebido no romantismo francês e no sucesso de Marguerite Gautier, Severa tem peculiaridades que só se explicam em função da própria história portuguesa – da miscigenação e mestiçagem que acompanhou todo o processo colonial lusitano. Severa não é uma cortesã portuguesa, mas uma mestiça que, graças a essa condição subalterna goza de liberdade e de uma sensualidade que tanto repugna quanto atrai. É fácil entender que tenha chegado ao Brasil e que tenha também aqui encantado as platéias, elas mesmas cheias de mestiçagem e confrontos sociais. É de se imaginar que artistas como Adelina Abranches, Ester Leão, Beatriz Costa, que freqüentaram os palcos brasileiros e que estiveram, de alguma forma, trabalhando com o texto, tenham se sentido motivadas a introduzir no país essa peça que acumulava sucessos. Nas palavras de Guimarães: “Se há peça que tenha dado para tudo – romances, operetas, revistas, filmes, mascaradas, cigarros, bolachas, botequins, caixas de fósforos – essa peça é A Severa. Já não é uma peça notável, é uma instituição nacional”.


Severas e Gabrielas

Como vimos, Severa andou pelos palcos brasileiros e marcou presença, não pela dor da renúncia ao seu amor fidalgo, como Gautier, mas pela sensualidade, pela liberdade e por estar ligada ao fado. Esse perfil da personagem deve ter agradado às platéias brasileiras e inspirado outras protagonistas, pois vamos encontrar na literatura, na dramaturgia brasileira e, depois, nos folhetins divulgados pelo rádio e pela televisão, outras protagonistas igualmente livres, sensuais e sedutoras.

Comecemos por «Gabriela, cravo e canela», romance de Jorge Amado, publicado em 1958, no qual ele narra história ambientada em Ilhéus, na Bahia, aonde Nacib, o árabe dono do famoso bar Vesúvio, contrata os serviços de uma morena mestiça vinda do sertão. Bela e ótima cozinheira, Gabriela atrai clientes e o desejo dos homens de Ilhéus e conquista definitivamente o coração de Nacib que resolve se casar com ela. A moça também se encanta com o patrão, o “Seu” Nacib, mas sua natureza rude e sensual faz com que se envolva com o conquistador mor da cidade. Para manter a clientela e para tê-la por perto sob suas ordens, Nacib acaba por aceitar a natureza selvagem e espontânea de Gabriela e, desistindo de transformá-la em dama, reconcilia-se com ela. Como Marialva e Severa, Nacib e Gabriela vivem momentos de conflitos e paixão, sempre contrastando o perfil livre e natural das personagens femininas com a conveniência da sociedade com a qual interagem.

Como Severa, Gabriela fez muito sucesso, não só no Brasil como em todos os países para os quais o texto foi traduzido. A mistura promovida por Jorge Amado entre o mundo dos coronéis da Bahia e o dos jagunços, trambiqueiros e prostitutas revelava um novo Brasil, antes pouco mostrado. «Gabriela, cravo e canela» estreou como telenovela em 1960, pela TV Tupi, mas em 1975 uma nova versão foi realizada pela rede Globo, lançando Sônia Braga ao estrelato no papel da protagonista(20). Em 1983, Bruno Barreto lançou o filme(21) com a mesma atriz no papel principal. O sucesso de Gabriela fez dela nome de bares e até de suco de cacau, fruta típica da Bahia e da região onde a história se passa. Como Severa em Portugal, Gabriela se tornou ícone da mulher brasileira, assim como fez de Sônia Braga, a sua imagem mais próxima.

Mas Gabriela não é a única personagem de ficção no imaginário brasileiro a deter essas peculiaridades de uma sensualidade irreprimível, de uma liberdade natural e de uma coragem ao mesmo tempo forte e inocente. O próprio Jorge Amado criou outras mulheres com essas características que protagonizaram suas obras. Há «Tieta do Agreste», uma mulher que, tendo sido expulsa de sua cidade natal ainda adolescente, volta depois de vinte e cinco anos para se impor aos que a haviam expulsado. Ela é Antonieta Esteves, ou Tieta, uma prostituta enriquecida e uma mulher vencedora e livre que tudo fará para derrubar os preconceitos e o falso moralismo de sua cidade. O livro «Tieta do Agreste» foi publicado em 1977, adaptado para televisão em 1989 (22), com Betty Faria no papel principal, e para o cinema em 1996 (23), com Sônia Braga novamente interpretando uma personagem forte de Jorge Amado.

Além de Gabriela e Tieta, outra personagem lembra essas heroínas por sua bravura, sensualidade e uma ética que está acima do bem e do mal, é Dona Beija, inspirada na vida real. Ana Jacinta de São José, filha natural criada pelo avô em São Domingos do Araxá, interior de Minas Gerais, enamora-se de Armando Antônio Sampaio, moço da aristocracia mineira, e sonha em ser sua esposa, apesar da oposição da família. Seus planos são frustrados quando o ouvidor do rei, encantado por sua beleza, rapta-a e faz dela sua concubina. Diante dessa violência, Beija decide usar seu corpo e sua beleza a seu favor, passando a se prostituir em troca de ouro e amealhando uma pequena fortuna. O ouvidor é chamado ao reino e Beija, já financeiramente independente, volta a Araxá onde encontra Armando casado. A paixão entre eles renasce, mas Beija se tornara dona de um bordel, escandalizando ainda mais a cidade. Antonio fraqueja e se nega a se separar da esposa para assumir o amor de Beija. Num conflito envolvendo o casal e capangas de ambos os lados, ela manda matá-lo, sendo inocentada em um tumultuado julgamento. Depois disso, desliga-se da vida mundana e funda uma chácara onde procura por metais e pedras preciosas.

Essa história sobreviveu por décadas na memória oral do povo de Araxá, cidade que se tornou famosa pelas fontes de água mineral e por ter sido a terra de Beija. Transformou-se depois em romance e peça de teatro, chegando finalmente à televisão onde Beija foi interpretada por Maitê Proença, que nela encontra seu grande papel. Beija mistura características de Marguerite Gautier – promove bailes aos quais todos os homens importantes da cidade têm acesso e freqüenta as altas rodas mineiras – e de Severa – uma origem desconhecida e subalterna e a capacidade de usar até mesmo da violência por seus objetivos. Tem também a beleza e a sensualidade de Gabriela e a determinação de Tieta. A memória de Beija promove até hoje o turismo da cidade de Araxá onde sua imagem idealizada, e já misturada às feições da atriz Maitê Proença, enfeita as fontes e os hotéis (24).

Poderíamos continuar tecendo essa longa linhagem de personagens femininas fortes à qual, sem dúvida, pertence Severa, como uma das fontes de inspiração. Mas, por se tratar de um artigo, o que expusemos é suficiente para mostrar ao leitor que, na primeira metade do século XX, a herança do teatro português foi amplamente aproveitada, no Brasil, na literatura e na cultura de massa. Se ao movimento de renovação do teatro brasileiro incomodava o apelo popular e o viés de entretenimento de certos espetáculos portugueses, a assimilação de seus códigos estéticos se processava em outros níveis da produção simbólica, promovida pela sintonia política havida entre o varguismo e o salazarismo e pelas inúmeras travessias artísticas através do Atlântico, realizadas por companhias teatrais portuguesas e brasileiras.

Entretanto, essas intertextualidades não terminam, pois os textos se engendram uns aos outros, gerando novas obras, outras personagens e diferentes trocas simbólicas. Na segunda metade do século XX, é a vez de Gabrielas, Tietas e Donas Beijas, protagonizando as telenovelas brasileiras, atravessarem o Atlântico e se apresentarem nas telas portuguesas, encantando as platéias, como Severa o fizera em décadas anteriores. Similaridade de língua, sincronicidade histórica, mestiçagem biológica e simbólica favorecem essas travessias.

Da mesma forma, nós, do Projeto Temático «A CENA PAULISTA: um estudo da produção cultural de São Paulo, de 1930 a 1970, a partir do Arquivo Miroel Silveira da ECA-USP», atravessamos o Atlântico para apresentar na Universidade de Coimbra os resultados de nossa investigação. Isso nos mostra que interesses comuns, confluência metodológica, intersecção de objetos no campo científico também promovem travessias e intertextualidades. O AMS nos prova isso desde os primeiros trabalhos realizados pelo professor Miroel Silveira em torno desses documentos, quando procurou identificar as contribuições dos italianos ao teatro brasileiro.

 
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ACCYIOLY, Godiva. Transposição de época e personagem real de televisão. 2007. 219 f. + 1 DVD. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Departamento de Artes Cênicas, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

COSTA, Maria Cristina Castilho. A presença portuguesa no Arquivo Miroel Silveira: um estudo sobre censura, teatro e indústria cultural em Portugal e Brasil, na primeira metade do século XX. São Paulo: ECA-USP, 2008. (Relatório final de pesquisa de Pós-Doutorado desenvolvida junto à Universidade de Coimbra).

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SOUZA, José Inácio de Melo. O estado contra os meios de comunicação (1889-1945). São Paulo: Annablume/FAPESP, 2003.

 
(1) Essa base de dados é acessível aos interessados a partir do endereço http://www.eca.usp.br/ams/.

(2) KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo, 2004.

(3) SOUZA, José Inácio de Melo. O estado contra os meios de comunicação (1889-1945). São Paulo: Annablume/FAPESP, 2003.

(4) Ibidem, p. 25.

(5) COSTA, Maria Cristina Castilho. Censura em cena: teatro e censura no Brasil – Arquivo Miroel Silveira. São Paulo: EDUSP: FAPESP: Imprensa Oficial, 2006.

(6) II Congresso Internacional Escrituras Silenciadas: historia, memoria e procesos culturales, realizado entre 11 e 13 de dezembro na Universidade de Alcalá de Henares, Espanha.

(7) Projeto de Pesquisa em Nível de Pós-Doutorado apresentado ao Instituto de Estudos Jornalísticos da Universidade de Coimbra, sob supervisão da Profa. Dra. Isabel Ferin.

(8) Fundação Mário Soares é uma entidade privada de funções públicas criada em 1991 e ligada à pessoa do ex-presidente Mário Soares. Possui acervos particulares e públicos provenientes dos movimentos anti-coloniais africanos e contra a ditadura salazarista.

(9) O Centro de Investigação Media e Jornalismo é uma associação interuniversitária integrada por professores e pesquisadores que se dedicam à pesquisa e à publicação de trabalhos. Está sediado em Lisboa.

(10) O Centro de Estudos de Teatro foi criado em 1994 e está sediado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Promove pesquisa, orienta teses e edita publicações. Possui uma base de dados sobre teatro acessível no endereço http://www.fl.ul.pt/centros_invst/teatro/pagina/centro-estudos-teatro.htm.

(11) MAGALDI, Sábato; VARGAS, Maria Thereza. Cem anos de teatro em São Paulo (1875-1974). São Paulo: SENAC, 2000, p. 333.

(12) Ibidem, p. 173.

(13) GUIMARÃES, Luís de Oliveira. Júlio Dantas: uma vida, uma obra, uma época. Lisboa: Livraria Romano Torres, 1963, p. 131.

(14) GIESE, Wilhelm. Aspectos da obra literária de Júlio Dantas. Coimbra: Biblioteca da Universidade, 1937, p. 37.

(15) DANTAS, Julio. Páginas de memórias. Lisboa: Portugália, 1968, p. 76.

(16) GIESE, op. cit., p. 37.

(17) Ibidem, p. 38.

(18) Ibidem, p. 39.

(19) Ibidem.

(20) GABRIELA [telenovela]. Adaptação: Walter George Durst. Direção: Walter Avancini. Rede Globo, 1975. 132 capítulos.

(21) GABRIELA, cravo e canela [filme]. Direção: Bruno Barreto. Produção: Ibrahim Moussa e Harold Nebenzal. Brasil: Sultana, 1983. Son., color., 102 min.

(22) TIETA [telenovela]. Adaptação: Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares. Direção: Paulo Ubiratan, Reynaldo Boury, Ricardo Waddington e Luiz Fernando Carvalho. Rede Globo, 1989/1990. 197 capítulos.

(23) TIETA do Agreste [filme]. Direção: Cacá Diegues. Produção: Bruno Stroppiana e Donald Raynaud. Brasil: Sky Light Cinema, 1996. Son., color., 140 min.

(24) ACCYIOLY, Godiva. Transposição de época e personagem real de televisão.

 
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