Artigo | edição 5 | Maio-Agosto de 2009
O jornalista como editor de livros: conceitos de jornalismo e literatura
 
Renata Carvalho da Costa |
 
Introdução

Jornalismo e literatura sempre estiveram muito próximos. Um exemplo é o Novo Jornalismo, surgido nos Estados Unidos na década de 50 do século XX, e que significou uma tentativa de libertar o jornalismo das amarras impostas pelo lead e pela padronização de texto usando onomatopéias, descrições de ambientes e emoções. Em muitos aspectos inspirados e à semelhança do movimento literário do Realismo.

Hoje, com a facilidade de se publicar um livro – seja o escritor pagando a produção e impressão, ou graças ao crescimento de novas editoras de pequeno porte - muitos jornalistas têm encontrado no mercado editorial de livros uma possibilidade de realização profissional. Alguns têm deixado as redações para trabalhar como editores de livros, às vezes montando seu próprio negócio. Levam para a nova atividade a experiência de lidar com o texto.

Muitos critérios são levados em conta para a publicação de uma notícia e também de um livro. Os editores de um veículo jornalístico e em uma editora de livro têm, em primeiro lugar, de fazer escolhas.

    Se as condições ambientais têm influência no processo de publicação, a decisão do editor permanece com o papel preponderante. É ele que, através de seu julgamento, gosto, visão, integridade e perspicácia comercial, modela no final não só a indústria como, em grau significativo, a literatura e a cultura geral que a fomentam (DESSAUER, 1979, p. 35).

No caso do jornalista produzindo notícia, esses critérios de escolha são detalhados nos estudos de conceitos como agenda setting, gatekeeper e valores-notícias especificados adiante. Além das escolhas, é interessante discutir a questão do tempo, da autoria e estética nos textos jornalísticos e de ficção.

Para o profissional que trabalha com notícia, importa o informar. O jornalista, habituado com a construção de narrativas a partir de fatos do cotidiano passa, na função de editor de livros, a voltar sua atenção para o texto que, embora tenha relação com a realidade, não tem a obrigação de informar. Por outro lado, é interessante também discutir até que ponto a informação jornalística construída como notícia é fiel à realidade. Por este motivo, torna-se necessária a discussão de alguns conceitos utilizados em estudos de jornalismo como objetividade e imparcialidade.


Objetividade e imparcialidade

O conceito de objetividade, hoje, no jornalismo, se pensado como o era há décadas, parece tão em desuso como máquina de escrever em redação. A objetividade, engano pregado pelo jornalismo positivista cientificista, enquanto “tendência de julgar pelos fatos sem deixar-se influenciar por seus sentimentos, prevenções ou predileções” (MICHAELIS, 1998, p.1473) e “qualidade do que dá, ou pretende dar, uma representação fiel de um objeto” (HOUAISS) reforça a relação hierárquica sujeito-objeto (objetivo, do latim objectivus; objectus) que o jornalista estabelece com suas fontes e com a notícia. A objetividade, nesses termos, felizmente não tem mais status com os pesquisadores da área desde a década de 1970.

Por outro lado, há ainda conceitos considerados válidos de objetividade, aceitos ainda hoje nos estudos de jornalismo. São eles “qualidade do que é imparcial”, “caráter daquele que age rápido, que não perde tempo em lucubrações”, “característica do que não é evasivo, do que é direto” (HOUAISS). Casam com o que é pregado pelo paradigma da complexidade, que estabelece objetividade e subjetividade como conceitos dialógicos e não opostos. Não se separa observador e observado. (MORIN, 1998). Distingui-los exige auto-reflexividade e autocrítica. Fala-se, então, em imparcialidade jornalística como o termo que designa o comportamento justo e honesto do profissional diante dos fatos e acontecimentos. A objetividade, neste sentido, prega a primazia dos fatos às opiniões (TRAQUINA, 2005, vol. 1, p.135).

O jornalismo tomou emprestado dos estudos de história o questionamento sobre a objetividade. De acordo com o pensamento da nova história (1), é importante fazer a distinção entre os conceitos de objetividade e imparcialidade (LE GOFF, 1984, p.166-168). Esta última é deliberada, a primeira inconsciente.

O jornalista deve estabelecer e evidenciar a verdade ou o que julga ser a verdade. Ele não pode defender uma causa, prosseguir uma demonstração a despeito dos testemunhos. A verdade exposta pelo jornalista é construída a partir da pluralidade de vozes que ele deve considerar para concretizar sua reportagem. O discurso jornalístico é necessariamente plural.

Ao jornalista, no entanto, é impossível “abstrair das suas concepções de homem”, nomeadamente quando se trata de avaliar a importância dos fatos e suas relações causais. O jornalista seleciona o fato a ser trabalhado como notícia. Ele o toma do cotidiano, dentre as diversas opções que este oferece. A escolha é feita entre tantos acontecimentos em um dado contexto social em que o jornalista está inserido. A “vida cotidiana é a vida do homem inteiro”, ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos da sua individualidade, de sua personalidade. Nela colocam-se em funcionamento todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos e idéias (HELLER; 1985, p.17). E, portanto, sua subjetividade, sua formação, educação e paixões.

O fator subjetivo é “a emanação do sujeito no processo do conhecimento” e possui um caráter não individual e subjetivo, mas, ao contrário, um caráter objetivo e social. Isto porque as mediações do fator subjetivo (estrutura do aparelho perceptivo do sujeito, a língua com a qual ele concebe seus pensamentos, interesses de classe ou de grupo, o sistema de valores onde este está inserido) têm “gênese e natureza sociais”. (SCHAFF, 1978, p.90). O “fator subjetivo” é, portanto, “objetivo-social”. E é nessa compreensão que se pode considerar a objetividade, imparcialidade e verdade jornalística. Embora não seja a subjetividade o único fator que evidencie a fraqueza do conceito de objetividade levado ao pé da letra.

    Certamente que há um “grão de verdade” na idéia de que a notícia não deve emitir juízos de valor explícito à medida que isso contraria a natureza da informação jornalística tal como se configurou modernamente. Mas é igualmente pacífico que esse juizo inevitavelmente embutido na forma de apreensão, hierarquização e seleção dos fatos, bem como na constituição da linguagem (seja ela escrita, oral ou visual) e no relacionamento espacial e temporal dos fenômenos através de sua difusão (GENRO FILHO, 1987, p.45).

O autor citado acima faz uma crítica à importância exclusiva dada à subjetividade do jornalista no processo do fazer jornalístico. Para ele, seria o item menos importante a influenciar na objetividade da noticia, já que a subjetividade vai além da “impressão pessoal”. Devem ser considerados os interesses políticos e econômicos e a “dimensão ontológica dos fatos sociais antes mesmo de serem apresentados sob a forma de notícias ou reportagens” (GENRO, 1987, p.48). De outra forma, ao considerar apenas a “impressão pessoal”, está-se considerando a sociedade e a cultura em que ela está mergulhada como sendo o “padrão normal”, sem questionamentos.

Para a escolha do fato a ser destacado e a atribuição a este do status de notícia, o jornalista leva em conta uma série de implicações, dentre elas o público-leitor, o meio para o qual escreve ou até as posições políticas e éticas, sejam elas pessoais ou do veículo onde trabalha, conforme explicitam os conceitos de gatekeeper, agenda setting e valores-notícias.

Já a narrativa ficcional também tem a sua própria verdade, a simbólica ou alegórica, crível no momento da leitura (BULHÕES, 2007, p.16). Para o leitor que aceita o pacto da verdade da narrativa, é indiscutível a presença do “galeão” com o qual Aureliano Buendía se depara em plena selva colombiana em Cem Anos de Solidão (GARCÍA MÁRQUEZ, 1967, p.17).

O leitor quando diante de qualquer tipo de relato, supõe que “o sujeito que fala ou escreve pretende nos dizer alguma coisa que temos de aceitar como verdadeira e, assim, estamos dispostos a avaliar seu pronunciamento em termos de verdadeiro ou falso” (ECO, 1994, p.125).


A notícia e sua construção

Os assuntos a serem tratados dentro de um periódico sempre dependeram, desde que o jornalismo (2) pode ser assim chamado, de três fatores: espaço (tamanho da notícia), interesses econômicos/comerciais/sociais e público-leitor, não necessariamente nesta ordem e não obrigatoriamente ao mesmo tempo.

A história da notícia mostra como nas civilizações antigas o que importava como fato a ser relatado – ainda que no boca-a-boca - eram os acontecimentos políticos, incluindo aí as guerras. As notícias eram informação privilegiada dos detentores do poder e, portanto, abrangiam os temas de interesses destes. Eram transmitidas por agentes enviados para serem os olhos de seus senhores.

O conceito de objetividade no jornalismo, como transmissão sem interferências da realidade pelo jornalista, deu origem à chamada teoria do espelho. O produto do jornalismo “é apresentado como sendo uma transmissão não expurgada da realidade, um espelho” (TRAQUINA, 2005, vol.1, p.146).

O jornalismo reproduz os conhecimentos gerados por outros atores, mas produz concomitantemente um conhecimento sobre determinados fatos. O jornalismo não retransmite o fato, o recria e elabora para depois comunicá-lo.

O fato destacado do cotidiano pelo jornalista é a notícia. A construção da notícia se dá pelo discurso jornalístico, pela elaboração de uma narrativa que organiza o caos do dia-a-dia para o leitor (MEDINA, 2003, p.47,35). O leitor recebe um mundo intermediado.

Dois conceitos mais recentes que o da objetividade são importantes no que diz respeito à construção da notícia, o gatekeeper e o agenda setting, e têm sido objetos de pesquisa de estudiosos do jornalismo contemporâneo.

Em 1950, o pesquisador norte-americano David Manning White publicou um artigo na revista científica Journalism Quarterly onde usa pela primeira vez o conceito de gatekeeper (também conhecido como “teoria da ação pessoal”) no jornalismo. A idéia do artigo de White é indicar que as notícias, para serem classificadas como tal, passam por uma série de “portões” (gates), que são escolhas que o jornalista (gatekeeper) deve fazer para decidir se aquele fato vira notícia ou não, se deixa a tal da notícia “passar ou não” pelo portão. (TRAQUINA, 2001, p.54). A teoria da ação pessoal destaca a primazia da subjetividade na escolha do que é notícia e foi rebatida por Genro Filho, como visto anteriormente.

O conceito de agenda setting (ou teoria do agendamento) foi cunhado vinte anos depois pelos também norte-americanos McCombs e Shaw e expõe o suposto poder da mídia em determinar o que é importante ser destacado da realidade. O conceito evidencia a falta de sustentação da teoria do espelho e da objetividade como oposição à subjetividade, e deu origem a estudos posteriores que mostraram a concentração uniforme dos veículos jornalísticos em certos assuntos, fixando estes como os mais importantes da realidade cotidiana. Ignora, no entanto, a existência de veículos alternativos que não seguem o padrão comum dos veículos de mídia comerciais.

Dependendo da teoria de estudos de jornalismo adotada, pode-se encarar o jornalista como aquele que age como gatekeeper ou determinador de uma agenda, transmissor da realidade ou mediador. De qualquer forma, sempre há fatores a serem levados em conta na escolha da notícia que são chamados nos estudos de jornalismo de valores-notícias (newsworthiness). Na prática, são critérios de noticiabilidade, referências comuns usadas pela comunidade jornalística para identificar o que é importante de ser noticiado e são essas referências comuns que acabam por padronizar o noticiário diário de interesse comercial.

Evidentemente, os valores-notícias mudam, embora não radicalmente, de acordo com o tempo, veículo e sociedade em que este está inserido. Atualmente, alguns dos valores-notícias mais comuns em veículos de importância comercial são “o extraordinário, o insólito, o atual, a figura proeminente, o ilegal, as guerras, a calamidade e a morte” (STEPHENS, 1988 apud TRAQUINA, 2005, vol. 2, p.63).

Sistematicamente, o primeiro estudo acadêmico sobre os valores-notícia realizado foi o de Galtung e Ruge (1965/1993), que enumera doze valores-notícias: freqüência/duração do acontecimento, alcance, clareza, significância, consonância com aquilo que o jornalista pensa ou espera, o inesperado, a continuação de notícias anteriores, composição (forme um bom equilíbrio dentro da diversidade de assuntos que devem ser abordados naquele periódico naquele momento), referência a países e/ou pessoas de importância econômica/fama, personalização (conta a história ou envolve alguém) e negatividade. (TRAQUINA, 2005; DÍAZ ARIAS, 2008). Os valores-notícias também mudam de acordo com o veículo (e seus interesses políticos e/ou comerciais), público-leitor e gatekeeper.

Acima de todo e qualquer valor-notícia está a questão do tempo jornalístico. Um veículo só se configura como jornalístico se tiver periodicidade e a notícia só é notícia se for atual. Em tempos de internet, o imediato juntou-se ao diário, semanal e mensal no tempo do jornalismo. O imediatismo e a visão do agora influenciam a formulação da notícia transmitida pelo discurso jornalístico, que é uma narrativa. A narrativa, portanto, organiza e situa o fato, entregando-o menos caótico ao leitor. Assim, para o leitor é possível encontrar forma no tumulto da experiência humana (ECO, 1994).


Tempo, autor e estética nos textos jornalísticos e literários - o fator tempo

O tempo do jornalismo é, portanto, o presente ou pode-se até dizer, o imediato. O tempo do texto fictício é também o tempo presente do autor que o escreveu. “O romance é primordialmente uma obra de espaço e de tempo” (CALDAS, 2000, p.58). O escritor de uma forma ou de outra – seja criticando, louvando, ironizando – “sempre registra sua visão de mundo diante da realidade daquele momento”.


Quem fala

No discurso jornalístico, o narrador não se coloca – exceto em exceções como o jornalismo Gonzo (3). Ele deixa falar o próprio referente, o que acentua a sensação de objetividade do conteúdo do discurso, “que passa a ser entendido como reprodução do real. Da objetividade à neutralidade chega-se à verdade: a realidade cotidiana está nos jornais do dia”. (MOTTER, 2001, p.11).

O leitor comum pode aceitar o que está escrito na imprensa como a verdade. É como se fosse parte do contrato de leitura o pressuposto de que o autor sempre diz a verdade. “A retórica jornalística trata de dissimular as estratégias narrativas” (MOTTA, 2007, p.155-156). O jornalista não se coloca na reportagem, a fim de que a narrativa seja neutra. Mas o esforço de se retirar de cena (“finge que não narra”) só é bem-sucedido se o leitor abstrair a existência – ainda que indeterminada ou oculta – de um narrador. A objetividade faz parte da estratégia, para provocar um “efeito de real”. Na ficção, o “discurso narrativo subjetivo”, o narrador está presente – oculto ou desvelado, indireta ou diretamente – e faz parte da estratégia narrativa. (MOTTA, 2007).


Jornalismo e literatura: comparações

Considerando tudo o que já foi visto até aqui é possível afirmar que os dois campos – jornalismo e literatura – têm suas afinidades. Como caracterizar melhor as diferenças e semelhanças entre estas duas produções culturais? O texto jornalístico pode ser tão atraente quanto a literatura, mas diferentemente desta, deve ter compromisso com o real (MIOTTO, 2003).

Por outro lado, o caráter ficcional não é suficiente para estabelecer um texto como literário, pois lendas, histórias em quadrinhos, piadas e filmes de ficção científica, entre outras, são manifestações “não propriamente literárias” (4) (BULHÕES, 2007, p.17). A literatura também extrapola os limites da ficção e acontece sem esta última.

O jornalismo parte de um fato do cotidiano. A literatura não tem esse compromisso com a realidade. O que não significa que um seja mais verdadeiro dentro de seus campos do que o outro. Dentro da ficção, é verdade aquilo que condiz com o mundo da referida história.

O lidar com o texto, seja ele calcado no real ou não, é uma atividade comum a quem trabalha com jornalismo e literatura. O escritor, assim como o jornalista, é um produtor cultural (MEDINA, 2006). Quem edita livro ou reportagem, lida com produção cultural.


Níveis de interesse e estética

A estética é uma característica importante do texto literário, seja ele de ficção ou não-ficção. Esta afirmação não implica em relacionar literatura à “mera ornamentação do discurso, o de associar literatura a um beletrismo estéril e ao manejo preciosista da linguagem” (BULHÕES, 2007, p.31), mas a literatura tem valor pela linguagem em si.

É justamente seu caráter artístico que atribui perenidade à literatura. As únicas formas de elevação acima da vida cotidiana, que alcançam aquilo que é comum a todos os homens – por se tratarem de conceitos passíveis de tocar a todos eles – e que produz objetivações duradouras são a arte e a ciência. O artista e o cientista conseguem, no momento da realização de sua obra, sair da cotidianidade – “Não há nenhum homem que viva tão somente na cotidianidade” (HELLER, 1985, p.26) – e alcançar o que é genérico e comum a todos os homens. A permanência da obra se dá porque ela “volta para a cotidianidade e seu efeito continua, sobrevive na cotidianidade dos outros” por ter atingido o ponto “comum”, o “genérico”.

A arte é composta por fenômenos que são significativos apenas quando ambíguos e singulares (“realidades irrepetíveis”) e, simultaneamente, enquanto representação da universalidade social (“onde historicamente os fenômenos estão situados e com os quais estão inevitavelmente comprometidos”) (GENRO FILHO 1987, p.64). Para a ciência, os fatos são relevantes apenas se forem constituindo a universalidade, ainda que ela jamais consiga revelar a “coisa em si”.

A realidade é composta por diferentes dimensões que, ao mesmo tempo que podem ser classificadas separadamente, compreendem em si as demais. Estas categorias são os conceitos de singular, particular e universal (LUKÁCS, 2000), “formas de existência da natureza e da sociedade que se contêm reciprocamente e se expressam através dessas categorias e de suas relações lógicas”.

O singular tem uma identidade real, parte integrante e relacionado ao particular e ao universal, ao mesmo tempo em que os contém. No universal, estão contidos os fenômenos singulares e os grupos de fenômenos particulares que os constituem. O particular é o aspecto intermediário entre os dois extremos, mas também uma realidade.

    Podemos exemplificar isso da seguinte forma: em cada homem singularmente considerado estão presentes aspectos universais do gênero humano que dão conta da sua identidade com todos os demais; na idéia universal de gênero humano, por outro lado, estão presentes - como se "dissolvidos" - todos os indivíduos singulares que o constituem; o particular, então, pode ser a família, um grupo, uma classe social ou a nação à qual o indivíduo pertença. O particular é mais amplo que o singular, mas não chega ao universal. Podemos dizer que ele mantém algo dos extremos, mas fica situado logicamente a meio caminho entre eles. (GENRO FILHO, 1987, p.162)

Essas categorias podem ser aplicadas ao jornalismo.

    Os conceitos de singular, particular e universal expressam dimensões reais da objetividade e, por isso, representam conexões lógicas fundamentais do pensamento, capazes de dar conta, igualmente, de modalidades históricas do conhecimento segundo as mediações que estabelecem entre si e as suas formas predominantes de cristalização (GENRO FILHO, 1987, p.160).

O tipo de conhecimento produzido pelo jornalismo é diferente dos citados acima, pois é essencialmente reconstituidor da singularidade que se dissolve no tempo. O fato, para ser notícia, precisa ser singular.

O jornalismo, amarrado a certas técnicas criadas e pensadas com fins meramente mercadológicos, não alcança o nível artístico. Certamente a técnica de pirâmide invertida do lead, cuja utilização iniciou-se na Inglaterra e Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial (e no Brasil a partir da década de 1950, no Rio de Janeiro) tende a padronizar os textos ao responder apenas às perguntas o quê? quem? onde? como? quando? por quê?. Responder a essas perguntas não humaniza um personagem ou um acontecimento. Ao obedecer a esse esquema formal, o discurso jornalístico não alcança o genérico que existe em todos os seres humanos, pois é padronizado e supostamente impessoal.

Ao divulgar o fato – singular – sem contextualizá-lo historica, política e socialmente, o jornalista não produz conhecimento, apenas informa, sem questionar os motivos constituidores do acontecimento.

As reações sempre surgem. Na década de 60, a imprensa alternativa no Brasil contava com revistas com grandes reportagens como a Realidade, sem obediência rígida ao lead. Hoje, as revistas Piauí e Brasileiros são os exemplos mais recentes no Brasil de reação ao texto impessoal padronizado das redações e sem contextualização.

Em seu livro Seis passeios pelo bosque da ficção, Umberto Eco dá o exemplo de como que o que ele chama de enredo (5) é bem mais interessante na ficção do que seria em uma página de jornal.

    ... de Edward Lear:

    [Havia outrora um velho peruano/que ficava olhando sua mulher cozinhar/ Mas uma vez, por engano, / num forna ela pôs para assar / aquele desventurado peruano].

    Vamos tentar contar a mesma história como se fosse uma notícia publicada no New York Times: “Lima, 17 de março. Ontem Álvaro González Barreto (41 anos, dois filhos, contador do Banco Industrial do Peru) foi, por engano, cozido numa torta de carne e batata por sua esposa, Lolita Sánchez de Medinaceli”. Por que essa história não é tão boa quanto a de Lear? Porque Lear conta uma história, mas a história é o conteúdo de seu relato. Esse conteúdo tem uma forma, uma organização, que é a da forma simples, e Lear não a complica com um enredo” (ECO, 1994, p.40-41).

Na década de 1980 o surgimento dos manuais de redação dos jornais foi outra tentativa de padronização. Para Kotscho (2006, p.133), os manuais promovem pouca reflexão teórica a respeito do jornalismo, privilegiando o pragmatismo. Sobre o processo de adoção do manual no jornal Folha de S. Paulo: “De uma hora para outra, o que era um jornal de autor ganhou um texto padronizado. Os repórteres foram orientados a não externar emoções nem opiniões em suas matérias e adotar um estilo extremamente objetivo (6). Num primeiro momento, retiraram-se as assinaturas de todas as reportagens”.


Há beleza no jornalismo

Ao pensar a literatura tomando dois de seus gêneros, o romance e o conto, e compará-los, a primeira distinção entre ambos no aspecto formal é, em primeira instância, a extensão. Em segundo lugar, a narrativa do conto deve dar conta de, em menos páginas, esgotar uma história. A linguagem é, portanto, mais breve e concisa que a do romance, aproximando-se do jornalismo moderno. “Parece haver nos atributos do conto algo que se cruza com os gêneros narrativos essenciais do jornalismo: a notícia e a reportagem”. O efeito provocado pelo conto é de um “soco no estômago”.

O contato mais óbvio entre o conto e a reportagem é o fator humano, “a descoberta do homem por trás das coisas” (JOBIM, 1992, p.51)

Por outro lado, a estética pode favorecer e tornar o texto jornalístico mais interessante e aproximá-lo do leitor. Genro Filho (1987) defende que a pirâmide invertida da forma do texto jornalistíco seja colocada na posição normal. Nos veículos onde a periodicidade não é tão comprimida como nos diários – nesse caso podemos citar as revistas mensais e acrescentar os exemplos dados anteriormente de Piauí e Brasileiros – a base da pirâmide tende a se alargar, a ser maior que suas laterais, pois há maior espaço para a partida da singularidade, passando pela particularidade em busca do universal, assim como a obra de arte.

A aspiração estética do texto jornalístico é antiga. Por um lado, o romance realista-naturalista do século XIX adotou recursos que forneciam uma postura documental da realidade social da época, e descrição de maneira quase fielmente fotográfica de ambientes e personagens. Émile Zola chegou a propor uma metodologia literária que negava a imaginação, substituindo-a pela observação e pesquisa da realidade (BULHÕES, 2000, p.44).

É justamente o movimento literário do Realismo francês – considerado por Lukács como a única forma válida de literatura – que influenciará o movimento do Novo Jornalismo. A opinião de Lukács vem de sua busca pelo resgate da possibilidade do conhecimento pleno do objeto real e, portanto, da modificação deste. É nessa base teórica que ele defende o Realismo, onde a individualidade é parte da estrutura geral, reflete a dialética entre o universal e o singular e, consequentemente, o particular, que aponta o que é essencial entre os dois outros níveis.

O Novo Jornalismo foi um movimento surgido nos Estados Unidos na década de 50 quando alguns jornalistas, entre eles Truman Capote e Tom Wolfe, começaram a escrever narrativas e perfis com técnicas de escritores de ficção. Os jornalistas que lançaram este novo estilo de escrever reportagens tiveram como fonte de inspiração os textos feitos por Honoré de Balzac e Charles Dickens, escritores do século 19. O movimento, até hoje conhecido e louvado por muitos jornalistas, não foi aceito em larga escala logo de início. Somente os editores das revistas Esquire e The New Yorker adotaram o estilo de imediato. No Brasil, a grande representante do Novo Jornalismo foi a revista Realidade, que teve circulação na década de 60.

Esse foi um dos movimentos que se pode classificar como jornalismo literário, que está na fronteira entre a arte e o jornalismo, pois utiliza recursos literários para escrever reportagem. O recurso literário, a tentativa de inserção da estética à narração jornalística – a reportagem –, é usado para dramatizar o acontecimento e revelar o conteúdo universal, abrangente, do fenômeno sobre o qual se fala, tratando não apenas da notícia em si, mas de todo seu contexto social, psicológico e histórico.


A crônica no meio termo

Não se pode deixar de falar da crônica, gênero que chegou da França ao Brasil no século XIX. Sua definição poderia ser de “gênero ao mesmo tempo jornalístico e literário”, “uma forma híbrida” (BULHÕES, 2007, p.47). Da literatura, conserva a liberdade do descompromisso com o real, embora normalmente retire dele seu tema de inspiração, seu desligamento da “verdade objetiva” e a estética ainda que breve. Do jornalismo, a linguagem concisa, direta. De ambos, a raiz no tempo presente, já que o tempo da crônica (do deus grego chronos, que representa o tempo) é o “tempo do próprio cronista”.

Todas as considerações até agora sobre o jornalismo e a literatura e seus aspectos convergentes, como a linguagem enquanto instrumento, a narrativa escrita como base de exposição, a marca do tempo, a presença estética, devem ser o parâmetro de análise do trabalho do jornalista como editor em veículos tradicionais de mídia e do editor de livros.

Ambos trabalham com informação e esta recebe um peso diferente em cada atuação desse profissional. É muito mais importante em termos de conteúdo para o jornalismo do que para a literatura, especialmente a de ficção. “A informação no mundo moderno reveste-se de numerosas e muitas vezes complexas formas. Na sua natureza como nas suas funções, a informação é fundamental às relações entre indivíduos e sociedades. A raiz de seu processo está na linguagem” (BELTRÃO, 1960, p.9, 23 e 49).

Como conclusão, cabe afirmar que “há diferença entre artigos de jornal e página de literatura”. O escritor expressaria suas próprias idéias, ao contrário do jornalista que ao se comunicar “retrata pensamentos, ações e fatos do cotidiano da sociedade”. A preocupação primeira do texto literário deve ser criadora e estética. A do jornalista é informar e, conseqüentemente, também criar um produto cultural.

O jornalista, então, produz sentido ao narrar o mundo, e o que ele diz da realidade constitui outra realidade, a simbólica. Ele é, portanto, um produtor cultural, que reflete uma marca autoral, inovadora, de mediador-autor. Mediador, porque está inserido em um contexto social com demandas por informação. Autor, pois ao “compreender” o fato, o acontecimento, produz sentido com sua narrativa. O editor de livros e o jornalista são mediadores sociais. O jornalista, porque deve buscar a polissemia a partir da polifonia. Esse é seu papel social. O editor de livros, porque ao lançar (e apostar em) um livro deve pensar no contexto social em que este lançamento se dá (seja por uma questão comercial, educacional ou social). É também na sua preocupação com o direcionamento (ao) e a conquista do público que as funções de editores de livros e jornalistas têm sua convergência. Sem a aproximação com a sociedade onde está inserido, é impossível ao jornalista, seja ele editor de veículos jornalísticos ou de livros, ser mediador de seu povo e alcançar, seja com um texto noticioso quanto com o fictício, o chamado “humano-genérico” (HELLER, 1985).

 
__________________________________________________________________________
BELTRÃO, Luiz. Iniciação à filosofia do Jornalismo. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1960.

BULHÕES, Marcelo. Jornalismo e literatura em convergência. São Paulo: Ática, 2007.

CALDAS, Valdenyr. Literatura da cultura de massa. São Paulo: Musa Editora, 2000.

DESSAUER, John P. Tudo sobre a publicação de livros: a experiência editorial nos Estados Unidos. São Paulo: Mosaico, 1979.

ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cem Anos de Solidão. Rio de Janeiro: Record, 1967.

GENRO FILHO, Adelmo. O Segredo da Pirâmide – para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre: Tchê, 1987.

HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

JOBIM, Danton. Espírito do Jornalismo. São Paulo: Edusp – Com Arte, 1982.

KOTSCHO, Ricardo. Do golpe ao planalto – uma vida de repórter. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

LEGOFF, Jacques. “História”. In: Enciclopédia Einaudi. Le Goff, Jacques (org.). Porto: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984.

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.

MEDINA, Cremilda. O signo da relação – Comunicação e pedagogia dos afetos. São Paulo: Paulus, 2006.

________. A arte de tecer o presente, narrativa e cotidiano. São Paulo, Summus Editorial, 2003.

MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1988 .

MIOTTO, Gaspar Bianor. “A invenção da notícia”. In: Jornalismo além da notícia. Silveira, Ada Cristina M. da. (org.). Santa Maria: FACOS – UFSM, 2003.

MORIN, Edgar. Sociologia: a sociologia do microssocial ao macroplanetário. Portugal: Europa-América, 1998.

MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise pragmática da narrativa jornalística. In: Metodologia de Pesquisa em Jornalismo (LAGO, Cláudia e BENETTI, Marcia, orgs.). Petrópolis: Editora Vozes, 2007.

MOTTER, Maria de Lourdes. Ficção e História: imprensa e construção da realidade. São Paulo: Arte & Ciência, Villipress, 2001.

SCHAFF, Adam. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1978.

TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo – Porque as notícias são como são. Vol. 1. Florianópolis: Editora Insular, 2005.

________ . Teorias do Jornalismo – A tribo jornalística: uma comunidade interpretativa transnacional. Vol. 2. Florianópolis: Editora Insular, 2005.

________ . O estudo do jornalismo no século XX. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2001.


Sites consultados

DÍAS ARIAS, Rafael (2008). La formalización de la realidad: noticia, acontecimiento mediático, ciberacontecimiento. In: III Congreso Internacional de Periodismo en la Red, 23-24 abril 2008, Madri. Disponível em: http://www.scribd.com/doc/2666334/La-formalizacion-de-la-realidad-noticia-acontecimiento-mediatico-ciberacontecimiento. Acesso em 28 de maio 2008.

HOUAISS, Antonio. Dicionário. http://www.uol.com.br/dicionario. Acesso em 20 de maio de 2008.

 
(1) Movimento surgido na França, nos anos 1930. Tira o foco histórico dos grandes personagens, passando-o às pessoas e ao dia-a-dia.

(2) O termo jornalismo no presente trabalho se refere ao jornalismo impresso.

(3) Vertente do Novo Jornalismo, na qual o repórter se coloca na reportagem, usando a descrição como uma de suas estratégias narrativas.

(4) “Trata-se (na literatura) de dotar a linguagem verbal de uma dimensão em que ela não é meio, mas fim; tomá-la como matéria em si, portadora de potencialidades expressivas. Na literatura, a linguagem não é mera figurante, mas centro das atenções” (BULHÕES, 2007, p.12).

(5) Enredo segundo ECO (1994: 39), é “a história como de fato é contada, conforme aparece na superfície, com as suas deslocações temporais, saltos para frente e para trás [...], descrições, digressões, reflexões parentéticas”.

(6) O trecho em que Kotscho afirma “o que era um jornal de autor ganhou um texto padronizado” vale a pena ser discutido. A adoção do Manual de Redação da Folha de S. Paulo não foi sem polêmica, mas tampouco pode-se afirmar que o jornal antes não tivesse uma padronização, como todos os demais grandes veículos da época.

 
voltar