Resenha | edição 7 | Janeiro-Junho de 2010
Os múltiplos olhares para o texto bíblico
 
Luiza Helena Gonçalves Caires |
 
GOHN, Carlos & NASCIMENTO, Lyslei (orgs.). A Bíblia e suas traduções. São Paulo: Humanitas, 2009, 300pp.


Produzidos para o colóquio internacional de mesmo título, realizado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), os ensaios de A Bíblia e suas traduções (São Paulo, Humanitas, 300 pp.) trazem diferentes perspectivas e momentos a partir da história da tradução desta obra.

O tema, porém, não é visto só sob a ótica de especialistas em tradução, em seu sentido mais estrito. Como explica Lyslei Nascimento, professora da UFMG e uma das organizadoras do livro, “a ideia da Bíblia como um arquivo, um acervo de bens culturais, foi tomada a partir de uma ideia ampla de tradução. Por isso, a forma como a literatura ‘traduziu’ episódios, histórias, mitos e personagens bíblicos veio à tona, bem como o cinema, a filosofia e a própria tradução, no sentido interlinguistico”.

Tal diversidade é parte integrante da riqueza do livro, que dá assim um panorama multifacetado das diferentes leituras propostas para um dos textos mais conhecidos do mundo. E que está muito longe de despertar interesse apenas religioso. “O leitor não religioso da Bíblia há de encontrar todos os temas da literatura, da arte, do direito, da filosofia; também o pesquisador, o erudito, o letrado, encontrarão vasto material, ainda por ser desvelado, nas páginas da Escritura. Nosso olhar é no sentido de nos banquetearmos na narrativa, não há sentido religioso, ou desejo missionário”, esclarece Lyslei, que também é coordenadora do Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG.


História e literatura. Mito e psicanálise

Texto dos mais difundidos, a Bíblia é um relato da saga dos judeus, marcante tanto pelos elementos históricos, como pelos mitos fundacionais, pela arte e poesia, pelas leis e moral deste povo. Traz, como define a professora Lyslei, “o maravilhoso, o lírico, a prosa, a música, os livros biográficos, o registro da vida cotidiana; além de temas que, desde sempre, encantam os leitores de todos os tempos: narrativas épicas, relatos de guerra, dramas pessoais, romances, genealogias, milagres. Para não falar das histórias de crimes, ciúme, traição, amizade, amor, derrotas e vitórias”.

Apreciadora do diálogo com a literatura e com o mito – este último pode mesmo ser considerado uma de suas ferramentas de trabalho –, seria natural que a psicanálise se voltasse para um texto repleto dos dois elementos, e com tamanha influência ao longo dos séculos. É assim que a psicanalista e mestre em comunicação, Daisy Wajnberg, se volta para o tema do conflito fraterno abordado nas histórias de Caim e Abel e, em particular, de Esaú e Jacó. Mas a análise aqui, privilegiada pelo conhecimento da autora em língua e cultura judaicas, traz para o primeiro plano os aspectos semânticos envolvidos. Por meio das sutilezas que emergem no destrinchar de termos e expressões é que são reveladas as questões mais sutis envolvidas nos planos de vingança de Jaú ao longo desta novela que encerra o Gênesis.


A arte de traduzir

Ao investigar o trabalho de Haroldo de Campos com os textos bíblicos, o ensaio de Enrique Mandelbaum analisa o conceito de “destradução”, processo que libera os signos desse texto do que as variadas visões religiosas foram erguendo em torno deles. Essas leituras, segundo o autor, sempre foram compromissadas em demasia com o significado, isto é “a mensagem”. Não se trata de descartar as interpretações contidas nessas traduções, mas de explicitá-las, e é isso que Campos faz: expor o intenso diálogo hermenêutico-ecumênico.

E como age o tradutor diante de contextos que não fazem mais parte do repertório e do cotidiano do público para quem se traduz? Essa é uma das reflexões de Geraldo Carvalho Neto em seu artigo, especialmente quanto aos textos sagrados da Bíblia e do Talmude (uma das obras centrais do judaísmo rabínico). Para respondê-la, recorre às teorias da tradução, como o conceito de metarrepresentação: capacidade – crucial para a comunicação – que as pessoas têm de “enxergar como as outras pessoas veem um determinado estado de coisas, mesmo se diferem em seus pensamentos”.

Ainda abordando a comunidade interpretadora, mas falando do caso específico das traduções da Bíblia no Brasil, e também de outras questões, como os tipos de tradução, documentos e conhecimento da língua, temos o texto de Johan Konings. Adicionalmente, o autor traz um panorama das traduções bíblicas no país, tendo ele mesmo estado envolvido em alguns destes trabalhos.

Steven Engler discute os diversos pontos que envolvem a tradução de textos religiosos, em particular as questões ideológica e de tradição. Enquanto isso, Julio Jeha realiza um estudo centrado em uma tradução específica: a do Pentateuco (ou Tora, para os judeus) – os cinco livros de Moisés – realizada pelo inglês Robert Alter, utilizando técnicas de análise literária.

Em O sopro de Deus e as águas da criação, Suzana Chwarts discute a exegese da cena da criação do mundo, em particular os episódios em que Deus intervém na natureza para alterá-la. Para isso, recupera também as cosmogonias do Oriente Médio antigo, contexto onde se desenvolveu Israel.

Já Teresa Barbosa, focaliza-se especificamente no prefácio da carta aos Hebreus. Seu estudo reconhece, como já feito por outros comentadores, a beleza poética e até sonora de alguns trechos, mas busca sobretudo compreender a ideia de sofrimento como expressão da divindade, maneira de um pai se comunicar, ou mesmo educar um filho.


Outras “traduções”

A palavra “tradução” adquire uma definição mais aberta em textos como “As muitas faces de Eva”, Nancy Rozenchan. Ela comenta como a literatura judaica “traduz” esta figura do Gênesis, destacando inicialmente sua associação com o mal, com os desejos carnais, e com a tentação do homem pelo demônio. Rozenchan também aborda a literatura hebraica contemporânea, que dá à personagem bíblica diferentes contornos, menos fechados em preconceitos e mais condizentes com sua complexidade.

Elcio Cornelcien verifica como vários episódios e figuras bíblicas – como a prostituta Babilônia, do Apocalipse – são integrados ao romance do escritor alemão Alfred Döblin. Em Berlim Alexanderplatz, como avalia Cornelsen, a intertextualidade é marca fundamental, e os aspectos mítico-religiosos ajudam a desenhar o pensamento filosófico do escritor, com a atualização dos temas bíblicos em um novo sistema, para transmitir sua visão de mundo.

A obra de escritores da língua portuguesa também guarda intensas relações com os temas bíblicos. Mariângela Paraizo analisa a metáfora de Canaã, a terra prometida que no livro de mesmo nome de Graça Aranha – do ponto de vista do imigrante alemão Milkau – é o próprio Brasil.

E a professora Lyslei recupera um trecho de Papéis avulsos em que Machado de Assis se dirige ao leitor, com sua inconfundível ironia. Assim, investiga, os vários níveis da significação para investigar a referência que Machado faz a Diderot e a São João Evangelista. A reunião de contos é comparada à enciclopédia, de abrangência “mostruosamente infinita”, mas nesse caso do saber marginal que constitui a literatura; e ao Apocalipse, cujo simbolismo é o recurso principal para as “revelações”.


Bíblia e arte

As referências bíblicas, aliás, não estão somente na literatura: são usadas durante toda a história de todas as artes. E não é diferente com a “sétima”. Como revela o texto de Luiz Nazario, o cinema do italiano Píer Paolo Pasolini traz uma ideia de sagrado como força humana, com uma natureza erótica, e muito independente das igrejas. Assim, metáforas dos mitos cristãos, judaicos e clássicos são uma constante em sua obra polêmica. O cineasta, em sua singular leitura (para muitos, genial), foi alvo tanto de crítica da esquerda neorrealista, quanto de revolta dos religiosos: sofreu 33 processos e quase todos os seus filmes foram censurados.

São Jerônimo (1999), do cineasta brasileiro Júlio Bressane, é analisado por Renato Pucci Jr. sob o ponto de vista da problemática da tradução, já que mostra a vida de um Santo que foi ele mesmo tradutor bíblico, sendo por muitos considerado como o padroeiro dos tradutores.

Abrem e fecham A Bíblia e suas traduções textos que têm a música como referência. O ensaio do professor Carlos Gohn, também organizador do livro, é inserido num momento em que o ocidente promove diversas tentativas de reparações históricas – sendo o povo judeu um dos alvos reconhecido. Assim, no plano cultural, o autor busca a recuperar a matriz judaica dos Salmos, em um contexto cristão, e termina em um produto audiovisual que procura realizar esse acerto de contas: um vídeocolagem com interpretações do Salmo 8.

Finalmente, Thiago Saltarelli reflete sobre Paixão segundo São João, de J. S. Bach, argumentando que essa obra realiza uma espécie de tradução de toda a cultura bíblica e cristã. Como demonstra, a composição continua atual mesmo fora do contexto em que foi criada, e pode nos dizer muito sobre a natureza humana.

A Bíblia e suas traduções, portanto, é um livro que atende satisfatoriamente ao propósito de reunir abordagens acadêmicas originais sobre o tema. E seus eixos temáticos, ainda que não explicitados numa divisão de partes, também o permitem superar sem maiores dificuldades o desafio a que são submetidas todas as propostas de coletâneas: a costura coerente do patchwork.

Além disso, guardadas as devidas proporções, do mesmo modo como a Bíblia suscita leituras muito diversas de sua motivação central, religiosa, este lançamento da editora Humanitas proporcionará uma leitura enriquecedora também para o público não acadêmico: apreciador das artes, ou apenas que tenha curiosidade em conhecer alguns aspectos da complexa tarefa de traduzir – linguística ou artisticamente – uma obra de tamanha importância histórica, cultural e religiosa, observando alguns dos múltiplos significados construídos em torno dela.

 
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GOHN, Carlos & NASCIMENTO, Lyslei (orgs.). A Bíblia e suas traduções. São Paulo: Humanitas, 2009, 300pp.
 
Versão estendida e adaptada do texto "A Bíblia e suas traduções" expande texto bíblico para além da religião, publicado originalmente em 01/12/2009 no site http://www4.usp.br/index.php/cultura/18020.
 
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