Dossiê | edição 7 | Janeiro-Junho de 2010
O antijornalismo público no Jornal do Senado
 
Bruno Sodré e Solano Nascimento |
 
A capa da edição da revista Veja de 30 de maio de 2007, com a manchete Navalha na carne, desencadeou uma das maiores crises registradas no Senado nos últimos anos. A reportagem da revista informava que despesas do senador Renan Calheiros (PMDB-AL), o então presidente do Senado, eram pagas por um lobista de uma empreiteira. As informações da reportagem foram repercutidas e aprofundadas por todos os demais grandes veículos de comunicação do país.

Dessa cobertura participou também o Jornal do Senado, que é publicado de segunda a sexta-feira e distribuído dentro e fora do Congresso Nacional. Os custos de produção e circulação do Jornal do Senado saem do Orçamento da União e, por conseguinte, são bancados pela população brasileira, pagadora dos tributos. Pela forma de seu financiamento, é de esperar que o Jornal do Senado sirva a interesses públicos e, assim, pelo menos se aproxime dos princípios do chamado jornalismo público. Como se verá neste estudo, o Jornal do Senado esteve muito distante desses princípios na cobertura das denúncias contra Renan Calheiros.


Jornalismo público

As primeiras manifestações de jornalismo público nasceram da frustração acerca da cobertura feita pelos grandes jornais da eleição presidencial norte-americana de 1988. Muitos acreditavam que os veículos de comunicação estavam dominados pela tática de campanha negativa – sempre em busca de más notícias ou fazendo a cobertura como se estivessem observando uma corrida de cavalos - e esquecidos de questões importantes para seu público. A impressão dos fundadores do movimento que pregava uma mudança no enfoque da imprensa era a de que os leitores diminuíam a compra de jornais impressos, pois estavam desencantados com a imprensa pela forma com que, às vezes, passava ao largo de suas aflições.

Um desses fundadores, Davis Merrit, editor-chefe do Wichita Eagle, da cidade de Wichita (Kansas), afirmava que uma vida pública efetiva necessitava de informações relevantes, que seriam partilhadas por todos, e de um lugar para discutir suas implicações. Para Merrit, estava claro que a prática jornalística vinha ignorando suas obrigações para a construção de um espaço público mais vibrante e para a resolução de problemas da comunidade. O editor pregava que o jornalismo público deve: 1) ir além da missão de dar notícias para uma missão mais ampla de ajudar a melhorar a vida pública, 2) deixar pra trás a noção de “observador desinteressado” e assumir o papel de “participante justo”, 3) preocupar-se menos com as separações adequadas e mais com as ligações adequadas, 4) conceber o público não como consumidores, mas como atores na vida democrática, tornando assim prioritário para o jornalismo estabelecer ligações com os cidadãos. Ao analisar as ideias de Merrit, o estudioso Nelson Traquina afirma que torna-se um imperativo que o jornalista encoraje o envolvimento do cidadão na vida pública, desenvolvendo esta nova perspectiva do “participante justo” (2003, p. 179).

Com base nas opiniões de Merrit e outros fundadores do movimento, o jornalismo público - ou jornalismo cívico, como também é conhecido – passou a referir a busca por um tratamento diferenciado das notícias, com o intuito de estimular a cidadania e o avanço social em uma sociedade democrática. O jornalismo público agrega aos valores de notícia tradicionais elementos de análise e de orientação do público quanto à solução dos problemas, o que inclui a indicação de serviços à disposição da comunidade. Esse tipo de abordagem visa gerar um vínculo maior com o público e auxiliar a população a compreender as responsabilidades dos distintos atores sociais (e dela mesma) na elaboração de políticas públicas ou na resolução dos problemas apresentados em uma determinada matéria.

Luiz Martins da Silva (s.d.) defende que a principal diferenciação entre o jornalismo público e o tradicional está no fato de o primeiro agregar à notícia um diferencial relacionado à cidadania, um valor agregado em termos de serviço e de orientação do cidadão. Enquanto o jornalismo alimenta-se de fatos carregados de valor-notícia, espera-se do jornalismo público mais que a missão básica de informar. Caberia ao jornalismo público dar ênfase às soluções dos problemas e não aos problemas em si (SILVA, 2004, p.4).

Estudiosos do jornalismo público, no entanto, destacam que a busca por essa distinta maneira de informar não significa atirar no lixo as bases tradicionais do jornalismo, especialmente o balizamento da prática profissional na busca pela objetividade. Jay Rosen, outro dos pioneiros do jornalismo público, afirma que o conceito de objetividade ainda exprime valores profundamente legítimos, como o desejo de separar o fazer jornalismo do fazer política e a tentativa disciplinada de reprimir inclinações pessoais, utilizando a perspectiva de outra pessoa para encarar fatos. Ainda assim, Rosen defende que o jornalismo público precisa “ter uma ênfase na discussão séria como atividade principal na política democrática, e com um foco nos cidadãos como atores do drama público em vez de espectadores" (ROSEN apud TRAQUINA, 2003, p. 181).


Jornalismo legislativo

O surgimento e desenvolvimento das mídias legislativas no Brasil, assim como o do jornalismo público nos Estados Unidos, também foi fruto de um diagnóstico de deficiência na cobertura realizada pela mídia comercial, que estaria contribuindo mais para o desgaste da democracia que para seu aperfeiçoamento. O pesquisador Francisco Sant’Anna (2006) analisou o fenômeno pelo qual as fontes deixaram de se limitar à tentativa de intervir sobre a agenda da imprensa tradicional e partiram para difundir suas informações diretamente à opinião pública por meio de veículos de comunicação próprios. Esses novos meios são chamados por Sant’Anna de “mídias das fontes” e têm como característica a inversão de papéis no cenário tradicional da difusão de informações: as fontes assumem o papel de difusor. Esses atores sociais atuam com critérios editoriais próprios para definir seus parâmetros de noticiabilidade e selecionar os temas a serem divulgados (SANT’ANNA, 2006, p. 25).

Foi nesse contexto que surgiram, em 1996 e 1998, respectivamente, os veículos de comunicação do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, com o objetivo declarado de levar ao cidadão o máximo de informações sobre a atuação parlamentar, a fim de permitir maior visibilidade ao Legislativo e municiar com informações o eleitor e as instituições da sociedade civil. Antônio Barros e seus colegas pesquisadores explicam que, ao oferecer instrumentos analíticos para que se entenda o processo político/legislativo em sua complexidade, os veículos legislativos acreditam estar contribuindo para a formação política da população e, com isso, formando cidadãos mais participativos e atuantes na sociedade (BARROS et al., 2008, p. 17).

Na avaliação desse grupo de pesquisadores, um diferencial das mídias legislativas em relação aos meios privados é o aprofundamento da discussão pública sobre os temas tratados pelas comissões e pelo plenário. A tematização, quase ausente da cobertura realizada pela imprensa privada, é feita sob a modalidade de debates sobre questões polêmicas em que são apresentados diversos posicionamentos e não apenas os chamados “dois lados da questão” (idem). Com relação ao acesso das fontes ao noticiário, também notam-se diferenças. A proposta é viabilizar a presença no noticiário de um número maior de parlamentares, fugindo do modelo privado que privilegia os líderes partidários.

De acordo com o grupo, essa é a forma peculiar do Poder Legislativo aplicar alguns dos princípios do chamado jornalismo público, já que a informação não é tratada como um produto mercadológico, mas essencialmente como instrumento para o exercício da cidadania e de uma cultura política participativa. Sant’Anna também evidencia esse tratamento diferenciado da notícia e afirma que, muitas vezes, os critérios divergem daqueles utilizados pela imprensa tradicional, propiciando assim uma diversidade maior de informações. Esses critérios devem, contudo, assegurar um padrão de credibilidade, pois do contrário o esforço em falar diretamente à sociedade se perderá no vazio, pela falta de audiência (SANT’ANNA, 2006, p. 25).

Entretanto, esse jornalismo incentivador do debate público democrático nem sempre é alcançado. Em termos gerais, jornalistas da Câmara dos Deputados ouvidos em outros estudos (PAZ, 2006; QUEIROZ, 2007, apud BARROS et al., 2008) enxergam que faltam critérios políticos e editoriais coerentes com os princípios básicos da comunicação pública, apesar do esforço para efetivar essa adequação nos últimos anos.

    No que tange ao jornalismo, especialmente, questionam a semelhança de formatos e critérios ainda existente com aqueles adotados pela mídia comercial. Ao mesmo tempo, e contraditoriamente, os profissionais desses veículos questionam também a adoção de critérios que seriam institucionais, e não jornalísticos. Ou seja, considera-se que o esforço de definição de novos critérios de noticiabilidade nas mídias do Poder Legislativo as afasta do que os profissionais envolvidos entendem como jornalismo (BARROS et al, 2008, p. 18).


Metodologia

O Jornal do Senado é distribuído principalmente dentro do Congresso Nacional, mas também fora dele. Além da versão impressa, a mais tradicional, há uma versão do jornal na internet. Distribuído nos cinco dias úteis da semana, o jornal costuma ter entre os assuntos de maior destaque fatos ocorridos no Senado no dia anterior a sua publicação. Às segundas-feiras, o jornal publica informações sobre a semana anterior e antecipa assuntos que deverão ser discutidos no Senado nos dias seguintes.

Para este estudo, foram analisadas as capas de todas as 23 edições do Jornal do Senado do mês de agosto de 2007. Foi um mês marcado pelo auge da crise gerada a partir das denúncias contra Renan Calheiros. No dia 12 de setembro, foi votado e rejeitado o pedido de cassação do mandato do senador. No entanto, Calheiros precisou renunciar ao cargo de presidente do Senado.

De todas as 23 edições do Jornal do Senado em agosto de 2007, somente em cinco não houve menção na capa da publicação às denúncias contra Calheiros ou a seus desdobramentos. Nas outras 18 edições, o assunto foi tratado em manchetes (títulos principais), chamadas (títulos secundários), textos e fotografias.


Apresentação e análise dos dados

Somadas manchetes e chamadas, houve nas capas do Jornal do Senado daquele mês 19 títulos sobre o caso envolvendo Renan Calheiros. Esses títulos podem ser classificados em três grupos, a partir da forma como trataram a figura do então presidente do Senado: negativos, positivos e neutros. São, assim, títulos que podem ser considerados ruins (negativos) para Calheiros, bons (positivos) para Calheiros; ou indiferentes (neutros) para Calheiros. A classificação dos títulos resulta no seguinte quadro:

Quadro 1: Títulos sobre Renan Calheiros

Positivos7
Neutros11
Negativos1
Total19


Entre os títulos considerados neutros, que formam a maioria, estão aqueles que tratavam de desdobramentos formais do processo aberto para apurar as denúncias dentro do Conselho de Ética do Senado. Eram títulos como Conselho de Ética define cronograma, da edição do dia 6 de agosto, e Escolha do relator fica para a semana que vem, publicado no dia 10 de agosto. Também estão no grupo dos neutros títulos que denotavam um certo equilíbrio. Foi o caso do título Aberto terceiro processo contra Renan, que revida, que estava na capa da edição do dia 20 de agosto.

No grupo dos sete títulos positivos, estavam aqueles que mostravam algum tipo de ação de Renan Calheiros em relação às denúncias. No dia 7 de agosto, por exemplo, o jornal estampou na capa o título Renan se defende de novas acusações. Outro exemplo apareceu na edição do dia 23 daquele mês: Renan presta esclarecimentos ao Conselho. Todos os títulos positivos continham a palavra “Renan”.

Situação distinta ocorreu com o único título negativo para o então presidente do Senado. Na edição do dia 14 de agosto, o jornal publicou o título Tuma convida Lyra a esclarecer denúncias sobre a compra de rádios. Segundo as denúncias, Renan Calheiros seria o dono de veículos de comunicação registrados em nome dos chamados laranjas, pessoas que formalmente assumem propriedades que não possuem. O título negativo, portanto, não continha palavras do nome do senador, apesar de as denúncias serem conta ele.

A análise somente das manchetes – os títulos principais – mostra que, naquele mês, três delas trataram do caso envolvendo Renan Calheiros. Uma pode ser considerada neutra – Conselho decidirá caso Renan em voto aberto, da edição de 31 de agosto – e duas eram positivas para Renan. Foram elas Renan acusa Abril de fazer negócios ilegais, publicada no dia 10 de agosto, e Renan acusa revista. Oposição obstrui, da edição do dia 15 de agosto.

Outra forma de se avaliar a parcialidade na edição do Jornal do Senado é a análise de expressões empregadas nos títulos, nas legendas de fotografias e nos textos apresentados na capa da publicação. O verbo “acusar” apareceu, em diferentes conjugações, sete vezes na capa do Jornal do Senado em agosto de 2007. Em seis dessas vezes, o verbo foi empregado para mostrar ação de Renan Calheiros. Ou seja, era o senador quem estava acusando. Foi o caso da manchete da edição do jornal no dia 10 de agosto: Renan acusa Abril de fazer negócios ilegais. A Abril é a editora que publica a revista Veja. O texto da capa que acompanhou a manchete tinha frases como Renan envia carta aos senadores acusando revista.

A expressão “inocência” e suas variações, como “inocente” e “inocenta”, apareceram quatro vezes na capa do Jornal do Senado em referências ao então presidente da instituição. A edição de 24 de agosto apresentou dois exemplos. Um dos títulos era Renan depõe e reafirma que é inocente. Em um dos textos da capa, foi publicada a frase Almeida Lima se disse convencido da inocência de Renan. A expressão “culpa” e suas variantes, como “culpado” e “culpabilidade”, não apareceram nenhuma vez nas capas do Jornal do Senado.

O desequilíbrio no tratamento da crise envolvendo Renan Calheiros também transpareceu na utilização de expressões que indicam incredulidade ou incerteza, como a palavra “suposta” e verbos no condicional. Essas expressões sempre acompanhavam informações sobre denúncias contra o senador. Na edição do dia 13 de agosto, por exemplo, o jornal publicou na capa: “(...) segundo a revista Veja, (Calheiros) seria dono de rádios em Alagoas”. A edição do dia 20 tinha outro exemplo em um dos textos de capa: “(a denúncia) trata da suposta compra, pelo presidente do Senado, de duas emissoras de rádio”.

O uso dessas expressões poderia ser elogiado – por ser saudável ao jornalismo quando se noticia algo que ainda não foi provado - caso tivesse sido mais amplo. Quando a capa do Jornal do Senado tratou de denúncias feitas por Renan Calheiros, os textos não foram alvo do mesmo cuidado, deixando de empregar expressões que denotassem incerteza. Assim, no dia 10 de agosto, a capa apresentou uma manifestação de Calheiros na qual ele aparecia “relatando irregularidades no processo de transferência societária da concessionária TVA”. A concessionária pertenceu à editora Abril. Não foi usada a expressão “supostas” para qualificar a palavra “irregularidades”. Da mesma forma, a capa do dia 15 de agosto continha um texto segundo o qual Calheiros “responsabilizou a revista Veja e adversários políticos de Alagoas por promoverem contra ele uma campanha de inverdades”. Não se tratava, segundo o texto, de uma “suposta campanha”, mas efetivamente de algo que estava ocorrendo. Ou seja, conforme o Jornal do Senado, a favor de Renan Calheiros existiam fatos. Contra ele, suposições.


Conclusão

Estudiosos como Merrit, Traquina, Rosen e Silva coincidem ao apontar entre os principais deveres do jornalismo público o reforço à cidadania e a conscientização das pessoas em relação aos papéis e responsabilidades dos atores em uma sociedade democrática. Por sua vez, pesquisadores como Sant’Anna (2006) e Barros (2008) concordam que as mídias legislativas precisam auxiliar na formação de cidadãos críticos, dando-lhes ferramentas para maior participação no processo político.

A edição das capas do Jornal do Senado mostrada neste estudo revela que a publicação se afastou, e muito, de todos esses princípios. Ao favorecer o senador Renan Calheiros, o jornal não se prestou, nem um pouco, à divulgação de informações que pudessem reforçar a cidadania e a participação de cidadãos no processo político. A forma como o Jornal do Senado tratou as denúncias contra Renan Calheiros se transformou em um grande exemplo daquilo que pesquisadores mostram que não pode ocorrer em uma mídia legislativa. Não foi assegurado o “padrão de credibilidade”, que Sant’Anna diz ser imprescindível, e critérios institucionais superaram os jornalísticos, como nos temores de Barros. Nesse caso, aliás, nem os critérios institucionais foram seguidos à risca. Se a preocupação fosse preservar a instituição, o debate sobre as denúncias contra Renan Calheiros deveria ter transparecido nas capas do Jornal do Senado como ocorria dentro da instituição, com uma grande divisão de forças. Na verdade, a edição das capas do Jornal do Senado aponta para a preocupação de preservar a pessoa que na época ocupava a Presidência do Senado, e não a instituição.

 
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BARROS, A. T.; BERNARDES, C. B.; LEMOS, C.R.F. As mídias legislativas e a redefinição da noticiabilidade política no Brasil. Em Questão (UFRGS), v 4, p. 11-23, 2008.

SANT'ANNA, Francisco. Mídia das fontes: o difusor do jornalismo corporativo. Biblioteca on-line de Ciência da Comunicação, Lisboa, 2006

SILVA, Luiz Martins. Jornalismo Público: o social como valor notícia. Brasília: Casa das Musas, 2004.

TRAQUINA, Nelson. O estudo do jornalismo no século XX. 2.ª reimpressão. São Leopoldo (RS): Editora Unisinos, 2003.

 
Trabalho apresentado no GP Jornalismo Impresso do IX Encontro dos Grupos/Núcleos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Curitiba-PR, 04-07/09/2009).
 
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