Artigo | edição 8 | Julho-Dezembro de 2010
A entrevista no telejornalismo e no documentário: possibilidades e limitações
 
Christina Ferraz Musse & Mariana Ferraz Musse |
 
A entrevista como estratégia de verdade

A entrevista é um dos recursos primordiais para ilustrar, fundamentar e legitimar a narrativa jornalística. Seja na elaboração de um minucioso perfil ou na agilidade da confecção de um “povo fala”, é raro o produto audiovisual que não lance mão da entrevista como elemento fundamental para contextualizar e garantir o status de verdade que caracteriza os gêneros telejornalístico e documental. Neste artigo, nosso projeto não é o de tentar classificar a entrevista, mas fazer uma reflexão sobre suas possibilidades e limitações e a forma pela qual a entrevista tem sido trabalhada em ambos os gêneros.

Para estabelecer uma comparação entre os gêneros trabalharemos com a categorização estabelecida por Nilson Lage (2001) em relação às fontes no telejornalismo. O autor acredita que elas podem ser mais ou menos confiáveis, pessoais, institucionais ou documentais. Lage as classifica em três grupos: a) fontes oficiais, oficiosas ou independentes. As oficiais seriam aquelas geralmente mantidas pelo Estado, empresas ou organizações como sindicatos. As fontes oficiosas são reconhecidamente ligadas a uma entidade ou indivíduo, porém não falam em nome dela. As fontes independentes englobam as organizações não institucionais; b) fontes primárias e secundárias. As primárias são aquelas em que o jornalista se baseia para colher o essencial de sua matéria e fornecem fatos, números, dados; já as secundárias são consultadas, por exemplo, na hora da elaboração de uma pauta; nesta classificação, ainda nos resta um último grupo: c) os experts e as testemunhas. Os experts seriam as pessoas que interpretam ou dão versões sobre determinado evento. No mesmo grupo, Lage identifica a testemunha, que talvez seja a fonte mais próxima do documentário. Esta fonte dá o seu olhar, seu testemunho, que neste caso é “normalmente colorido pela emotividade e modificado pela perspectiva” (LAGE, 2006: 66) e vai depender e variar a partir do ponto de vista de quem está testemunhando, ou contando sua versão sobre os fatos.

Na rotina acelerada das redações, a seleção das fontes é um dos processos mais complicados para os produtores de telejornais. Não é necessário apenas ter os contatos, mas conseguir a concordância e a disponibilidade daqueles que vão ser entrevistados. Mais que isso, além de terem o domínio do assunto, é desejável que os entrevistados sejam capazes de reduzir suas reflexões àqueles preciosos quinze segundos de tempo que caracterizam as sonoras, o que fez Bourdieu (1997) apelidá-los de fast thinkers, ou seja, aqueles profissionais que praticamente têm uma receita pronta sobre o que vão falar e são capazes de, nos seus 15 segundos de notoriedade, discorrer sobre os mais delicados e intrincados temas. Sem descartar as vantagens da objetividade, levando-se em consideração o modelo de jornalismo praticado na maior parte das redes comerciais de televisão, é crucial que se observe que, no processo de seleção de fontes, os produtores têm por hábito escolher sempre os mesmos especialistas para falar dos mesmos assuntos. Recentemente, na cobertura da epidemia da nova gripe (H1N1), ficou patente a reduzida opção de fontes entre os infectologistas entrevistados pelas grandes redes de TV, seja pela oferta escassa, já que nem todas as assessorias de órgãos públicos se dispõem a organizar guias de fontes, ou pela dificuldade em se acertar a escolha de um profissional que, mesmo não tendo se sujeitado aos cada vez mais comuns processos de media training, saiba escapar das armadilhas dos jargões e seja capaz de responder às perguntas sem titubear. Este último aspecto chama a atenção, porque, na verdade, a produção não pretende perder tempo com a dúvida ou a incerteza, portanto, há uma procura pelos profissionais capazes de confirmar aquilo que já é uma hipótese da redação, isto é, a opção é sempre pelo consenso, o dissenso não é desejável.

    A importância da notícia é geralmente julgada de acordo com a sua abrangência, isto é, segundo o universo de pessoas às quais pode interessar. Esse é o critério mais utilizado em jornalismo de televisão que, dando ênfase ao aspecto da amplitude, pode tender a transformar a notícia em entretenimento ou em espetáculo, tratando apenas de questões amenas ou desprovidas de polêmica (CURADO, 2002: 16).

Teríamos então um mecanismo semelhante ao da “audiência presumida” (VIZEU, 2008), neste caso, tomando como referência o depoimento do entrevistado, que deve preencher a lacuna, atendendo ao que é presumido pela redação. É o pensamento da rotina de produção, que prevê menos desgaste, quando enfrentamos menores surpresas. De acordo com Muniz Sodré:

    A realidade é que grande parte dos acontecimentos, no jornalismo impresso ou televisivo, transcorre em pautas ou roteiros já fortemente codificados pela produção midiática. As grandes cerimônias oficiais, as competições esportivas, as entrevistas políticas, mesmo com a possibilidade de que um evento inesperado qualquer transgrida a ordem de enquadramento, são relatadas ou transmitidas ao vivo a partir de uma “gramática” de antecipações logotécnicas – uma retórica, em suma – destinada a produzir uma narrativa (SODRÉ, 2009: 74).


A produção da notícia: objetividade e subjetividade

Hoje, observa-se nas redações uma tendência cada vez maior a produzir a notícia. Para tanto, basta que se leiam as pautas hiper detalhadas que são distribuídas às equipes de externa e onde costuma estar “mastigado”, em especial para o repórter, tudo o que se espera confirmar na gravação daquele material. No nosso ponto de vista, a necessidade de aumentar a produtividade das equipes de externa têm levado a um excessivo trabalho de pré-produção, que corre o risco de “engessar” a gravação do material de externa.

Na rotina dos jornalistas a obrigação de muitas vezes fazer até três matérias por turno e a cobrança gerada pelo deadline acabam influenciando seu trabalho, e, consequentemente, sua relação com os entrevistados. Enquanto no documentário geralmente não se tem uma preocupação com o tempo e por isso gravam-se horas de relatos, Lage observa a visão mais objetiva do telejornalismo quanto ao tempo e à preocupação com a “verdade” que a fonte irá dizer, o que leva a se privilegiar a memória de curto prazo.

    De modo geral, o testemunho mais confiável é o mais imediato. Ele se apóia na memória de curto prazo, que é mais fidedigna, embora eventualmente desordenada e confusa; para guardar fatos na memória de longo prazo, a mente os reescreve como narrativa ou exposição, ganhando em consistência o que perde em exatidão factual (LAGE, 2006: 67).

Ao privilegiar o factual, o telejornalismo tende a enfatizar os depoimentos mais imediatos, que, por ainda não terem se distanciado do acontecimento, costumam ser mais fidedignos. Talvez resida nesta observação uma das chaves para entendermos a dificuldade do jornalista de televisão em lidar com velhos ou com a memória dos velhos, ou com os fatos que se distanciam na história. Nestes depoimentos, as reticências costumam ocupar mais tempo do que as frases curtas, rápidas e que não dariam margem às dúvidas. Ecléa Bosi, pesquisadora da memória, sugere um longo e cuidadoso caminho que deve ser seguido pelo pesquisador das ciências humanas aplicadas ao recolher esses depoimentos. “Teremos que transpor, às vezes, enorme distância temporal entre o fato narrado e o acontecido, experiência sempre difícil devido às transformações ocorridas, sobretudo nas mentalidades” (BOSI, 2003: 61). Quando esses cuidados não são tomados, quando não se cria um vínculo mínimo entre entrevistador e depoente, a entrevista não funciona como diálogo, troca. “Se não fosse assim, a entrevista teria algo semelhante ao fenômeno da mais-valia, uma apropriação indébita do tempo e do fôlego do outro” (BOSI, 2003: 61). Nada mais condizente com a lógica mercantil do tempo presente e instantâneo, que é a marca da contemporaneidade.

Outra tendência que temos a observar no telejornalismo é a de privilegiar a dramatização dos fatos, no lugar da seleção objetiva de aspectos a serem enfatizados. No fundo, a tendência seria a de chocar, sensibilizar, emocionar, muito mais do que a de explicar, esclarecer e ensinar. “A estruturação do noticiário televisivo em torno de problemas, ações e disputas guardaria semelhanças com o que classificamos como um drama cotidiano” (COUTINHO, 2003: 99). Neste aspecto, destaca-se a adoção de muitas estratégias até então características dos programas populares: a adoção de uma câmera mais livre, movimentos rápidos, planos-sequência e planos de detalhe; a linguagem coloquial, os desabafos, a revolta, os xingamentos e até mesmo as gírias que passam a fazer parte da cena, que sofre cada vez menos a interferência do processo de pós-produção, o que aumenta a sensação de realidade, e serve de modelo para as transmissões ao vivo, isto é, a impressão de uma captação da realidade sem intermediação.

Para o telespectador, parece que o entrevistado pode falar o que quer, sem interferências, o que não passa de uma ilusão. O repórter geralmente atua de forma incisiva, de maneira a direcionar a entrevista, nem sempre no sentido de esclarecer, mas de apenas confirmar uma idéia pré-concebida na redação sobre determinado assunto. Percebe-se uma tendência a evitar a edição, inclusive com ênfase cada vez maior no que é instantâneo, gravado ao vivo, sem retoques, uma dinâmica que lembra aquela dos clipes, como se observa nas gravações do programa Profissão Repórter, da Rede Globo de Televisão. Esta tendência parece contaminar até mesmo a postura dos apresentadores. Considerados a “cara” da emissora, eles sempre mantiveram uma posição de distanciamento em relação ao telespectador, inertes, sentados atrás das bancadas. Aos poucos, foram se movimentando pelo cenário, ficando de pé, trocando de lugar. Agora, além de interagirem com os repórteres de externa e comentaristas de esporte, eles próprios saem do estúdio, para se banhar de realidade. O texto severamente marcado do script, aos poucos, vai cedendo espaço para uma conversa, simula-se um diálogo com o espectador, que sugere matérias, é “ouvido”, enfim, mas tudo dentro dos “segundos” sacramentados.

No início de julho de 2009, durante o Seminário Temático Intercom, O jornalismo da TV Globo, esta inovação pareceu sacramentada na apresentação de Renato Ribeiro, então diretor regional de Jornalismo da Globo Rio. Ao falar das novas tendências do jornalismo regional, Ribeiro destacou a mobilidade, a instantaneidade e a coloquialidade. O jornalismo local é visto como um laboratório de linguagem e de conteúdo e hoje é um “grande prestador de serviço”. O RJ Móvel, um verdadeiro “carro redação”, percorre os lugares de mais difícil acesso, o Globocop, o helicóptero da emissora, tem agilidade para sobrevoar os pontos mais engarrafados sem atraso de tempo. A aproximação com o telespectador é uma meta. “O repórter não pode ficar distante da informação” (RIBEIRO, 2009). Entre os projetos de aproximação com o público, Ribeiro desta a rotina de acompanhar o dia inteiro a vida da comunidade. “O RJ Móvel passa uma semana em algum lugar e vai mostrando os problemas. E, depois, volta para mostrar, novamente, o que se conseguiu” (RIBEIRO, 2009). Neste sentido, ficaria enfatizada a ideia de jornalismo como espaço público por excelência, como convém ao discurso da Modernidade:

    Emergindo historicamente na passagem do Estado absoluto ao Estado de direito, como porta-voz dos direitos (civis) que inauguram a modernidade da cidadania, a imprensa traz consigo a novidade ideológica da liberdade de expressão, mas sem abandonar por inteiro a garantia de alguns velhos hábitos mitológicos, a exemplo da construção de uma narrativa sobre si mesma como entidade mítica que administra a verdade dos fatos sociais, e mais, a retórica encantatória na narração fragmentária sobre a atualidade (SODRÉ, 2009: 12).

Na verdade, a tendência dos apresentadores conversarem com os correspondentes no exterior e com repórteres que estão no lugar dos acontecimentos, ao vivo, sugere uma familiaridade e uma naturalidade que não é tão simples assim, mas, quando as emissoras dão espaço até para os ágeis “moto links”, no sentido de estarem presentes de forma mais imediata e instantânea no lugar dos fatos, não há como escapar ao fetiche da sua onipresença e onipotência.

De certa forma, parece-nos que o telejornalismo diário tende a ser produzido cada vez mais para possibilitar a veiculação do produto final em várias plataformas, que privilegiam a instantaneidade, a mobilidade e a participação popular. Renato Ribeiro exemplifica as várias modalidades dessa participação na TV Globo: Você no RJ TV; Caixa Postal; Disque-Reportagem; Bom Dia Responde. O telespectador é um parceiro do jornal, “ele faz o jornal” (RIBEIRO, 2009). O telejornalismo tende cada vez mais a apostar na interatividade, na convergência das mídias e no jornalismo de serviço.

De certa forma, é inegável que, assim, busca-se não apenas um diferencial da concorrência, capaz de reconquistar pontos perdidos nas recentes medições de audiência, mas também uma inovação que pode dar uma nova roupagem ao formato um pouco desgastado dos telejornais. Há poucos anos, por exemplo, Lage (2006: 83) chamava a atenção para o fato de que, na edição, costuma-se cortar “a voz esganiçada, a testa franzida, o soluço e as lágrimas de um entrevistado. No entanto, tais momentos podem ser os mais significativos e importantes”. Hoje, apesar do tempo restrito, a tendência do ao vivo parece-nos indicar exatamente o sentido contrário, isto é, uma realidade “menos maquilada”, apesar de evidentemente construída como narrativa.

Numa visão mais pragmática, Fabíola Costa (apud MAGALHÃES, 2008: 39), diz que o tempo para aparição na TV estaria relacionado a dois fatores: a importância daquela pessoa para a audiência e para os patrocinadores. Este tempo, como lembra a jornalista Olga Curado (2002), é bastante restrito e cada matéria levada ao ar deve ter entre 1'05" e 1'30". Airton Miguel Grande ressalta essa questão do tempo, mostrando que a cobrança dos editores e o ritmo acelerado da produção fazem com que o jornalista tenha pouco tempo de contato com os “sujeitos de sua reportagem, não podendo se aprofundar em abordagens mais cuidadosas” (2004:39). Grande alerta ainda para como os sujeitos representados se sentem, já que não tendo tempo para falar, só verão nas matérias aquilo que interessa aos jornalistas.

Nos documentários, a realidade é outra, como ele observa:

    Apesar de existirem padrões de tempo para documentários – em geral, aqueles produzidos pelas redes de televisão – a regra não é essa. O tempo vai sendo definido de acordo com a perspectiva de sentido que o documentarista quer conferir ao seu trabalho. Assim, alguns documentários têm apenas alguns minutos, enquanto outros atingem horas (GRANDE, 2004:39).

É com certeza uma questão que não nos abandona como jornalistas. Até que ponto a linha editorial de um telejornal compromete a maneira como a informação é passada ao telespectador? Até que ponto o tempo destinado a uma matéria narra os fatos com veracidade? Como ser objetivo e seguir padrões quando alguns fatos podem ser cheios de subjetividade?

O debate em torno de como o telejornal forma a opinião de milhares de cidadãos e a maneira como os discursos e as falas selecionadas são passados para a população como uma amostra da “realidade” fazem com que o papel do jornalista seja ainda de maior responsabilidade, tendo o cuidado para que sonoras e imagens não recriem uma “realidade”, mas que de fato mostrem a realidade dentro da sua diversidade, levando em consideração a narrativa telejornalística como “construção” (TRAQUINA, 2005).

Sylvia Moretzsohn (apud GRANDE, 2004: 35) sugere que quando o telejornalismo aceitar a “dúvida como componente de trabalho” – já que a realidade é mutável, inconstante e ela é a matéria prima do telejornalismo como também dos documentários – o discurso jornalístico passará a ser menos afirmativo e conclusivo e assim menos mistificador. É nesse sentido que Bourdieu (1997: 29) afirma que a televisão “que se pretende um instrumento de registro torna-se um instrumento de criação da realidade”, já que elimina a dúvida, o silêncio, o não verbalizável, que, muitas vezes, está muito mais carregado de sentido do que aquilo que é dito.

O documentário, apesar de algumas vezes sofrer influências de patrocinadores ou instituições, na maioria delas, se afasta dos procedimentos utilizados na produção de uma matéria jornalística e, por isso, permite que o formato não seja limitador de sentidos e oferece, acima de tudo, um outro olhar sobre a realidade que é narrada para o espectador.

No campo do documentário percebe-se que, principalmente, entre as décadas de 80 e 90, houve uma ênfase na palavra falada utilizada como linguagem das produções que permitiram uma relação diferente daquela estabelecida pela “voz over” (similar à voz em off do telejornalismo), muito utilizada em produções institucionais. Nessa nova relação tem voz quem é documentado, e essa voz é captada geralmente através da entrevista, um dos principais métodos de abordagem no documentário contemporâneo, pois, acima de tudo, pressupõe o encontro e o contato fundamentais para que o documentário exista. A entrevista no documentário pode ser utilizada para construir e resgatar uma memória coletiva, quando vários personagens falam de suas experiências ou lembranças, e também como construção da história de um personagem, através de seus relatos e reflexões sobre sua própria vida.

    As entrevistas são uma forma distinta de encontro social. Elas diferem da conversa corriqueira e do processo mais coercitivo de interrogação, à custa do quadro institucional em que ocorram e dos protocolos ou diretrizes específicos que estruturem. As entrevistas ocorrem num campo de trabalho antropológico ou sociológico; tomam o nome de “anamnese” na medicina e no serviço social; na psicanálise, tomam a forma de sessão terapêutica; em direito, a entrevista torna-se o processo prévio de “colher meios de prova” e, durante julgamentos, o testemunho; na televisão, forma a espinha dorsal dos programas de entrevista; no jornalismo, assume tanto a forma de entrevista como coletiva para imprensa; e na educação, aparece como diálogo socrático. Michel Foucault argumenta que todas essas formas incluem formas regulamentadas de troca, com uma distribuição desigual de poder entre cliente e profissional da instituição, com raízes na tradição religiosa da confissão. Os cineastas usam a entrevista para juntar relatos diferentes numa única história. A voz do cineasta emerge da tecedura das vozes participantes e do material que trazem para sustentar o que dizem (NICHOLS, 2007: 160).

Jean-Claude Bernardet foi uma dos primeiros pesquisadores que alertaram para alguns problemas advindos dessa nova tendência do documentário. Ele se preocupou em mostrar que esse método de abordagem, que privilegiou os depoimentos, não significou um enriquecimento das estratégias narrativas, mas acabou virando uma mania e um ato quase automático.

    Entre as consequências estéticas desse sistema estariam a dominância do “verbalizável”, a fraca capacidade de observação de situações reais em transformação, a repetição de uma mesma configuração espacial (aquela típica da entrevista), a ausência de relação entre os personagens – em função do enfoque centrado na interação entre cineasta e entrevistado (LINS; MESQUITA, 2008: 30).

Apesar da crítica, percebe-se que, em especial nos documentários que relatam a vida de personagens e resgatam perfis, há cada vez mais a presença dos depoimentos, captados através de entrevistas em que o entrevistador pode ou não aparecer. O que parece diferenciar basicamente esta relação em comparação à entrevista da televisão é a espécie de vínculo que acaba por ser criada entre entrevistado e entrevistador. Há maior preparação prévia, especialmente, mais tempo de elaboração.

Philippe Lejeune (2008) lembra que uma vida pode ser contada em tempos diferentes: uma hora, dez minutos, dez horas e de acordo com esse tempo serão atingidos graus de “ampliação” diferentes. O autor acredita que a quantidade de informação coletada nesses relatos não é proporcional à duração do que ele chama de pesquisa, mas que a qualidade pode ser variável. Ele explica essa relação:

    O prolongamento da pesquisa pressupõe e engendra uma personalização da relação; da qualidade dessa relação depende em grande parte o interesse da narrativa coletada. Pois uma narrativa de vida não é apenas a soma de informações (que poderiam ser obtidas por outros meios): é, antes de tudo, uma estrutura (a reconstrução de uma experiência vivida em discurso) e um ato de comunicação (LEJEUNE, 2008:154).

O tempo da entrevista é apenas um dos fatores que podem interferir ou não no resultado final do trabalho. Mais importante do que ele é a relação criada entre os dois lados, e a cumplicidade ou a capacidade do entrevistado em relembrar fatos, ou contar sua história. A relação que será criada entre entrevistador-entrevistado vai depender de outras relações e do conhecimento prévio que o entrevistador possa ter da vida daquela outra pessoa – quando, por exemplo, o entrevistado é alguém da família – ou pelo conhecimento da região que aquela pessoa habita, os lugares que frequenta, sua classe social. Essa situação de “preparação” para uma entrevista não está restrita ao entrevistador. O entrevistado muitas vezes também já vai preparado para o encontro e para a ocasião da entrevista. Dependendo do seu papel, se está representando uma empresa, por exemplo, já tem “pré-concebida” a ideia que quer passar. No documentário, quando a entrevista é agendada, o entrevistado tem tempo para se “transformar” para a câmera, por isso, alguns documentaristas optam por uma abordagem mais espontânea.

Em entrevistas mais longas cabe, muitas vezes, ao entrevistador rever seu papel diante daquela pessoa que está prestes a dividir experiências pessoais ou debater determinado assunto a partir de seu ponto de vista. Muitas vezes o entrevistado terá reações não esperadas, divagará ou não se sentirá à vontade para falar de certos assuntos, e caberá ao entrevistador passar confiança a quem está “dando ouvidos”, atingindo uma certa cumplicidade. É uma dupla tarefa a do entrevistador: colher os dados que precisa, mas, ao mesmo tempo, envolver o entrevistado sem se envolver por inteiro na vida dele. “O que pode parecer, visto de fora, um simulacro de complacência, corresponde de fato a um difícil trabalho de escuta, de atenção e de deciframento” (LEJEUNE, 2008: 156). Sem este trabalho do entrevistador seria difícil pensar na emissão desse relato de vida e na retransmissão do mesmo.

No campo do audiovisual existe ainda uma relação maior que a do entrevistador, é o papel do sujeito-da-câmera que engloba não só a pessoa que está operando a câmera, mas toda a equipe que está “atrás da câmera” no momento da tomada. É este sujeito o responsável pela dimensão da realidade que a tomada terá para o espectador, ele se torna o responsável por como o espectador vai perceber a tomada, como ele vai senti-la, compreendendo algo além da imagem (RAMOS, 2008: 84). Ramos cria várias categorias para enquadrar as diversas possibilidades de trabalho e abordagem do sujeito-da-câmera. Iremos explicitar apenas a definição de sujeito-da-câmera agindo e intervindo.

Este sujeito é aquele que “centra seu estilo sobre a intervenção direta no que é exterior (a partir de si e pelo espectador) ao campo de sua subjetividade” (RAMOS, 2008: 101). As formas típicas deste sujeito são entrevistas, câmera na mão, a imagem tremida e o plano-sequência. Em alguns casos este sujeito pode-se tornar personagem central da narrativa documentária e em outros casos a história do filme torna-se parte da sua história, ou seja, ao mesmo tempo em que conta a história de alguém também está contanto a sua. O sujeito interventivo pode ser considerado uma tendência do documentário contemporâneo quando ele interfere em uma situação, na realidade, para que seu filme possa existir. É o que faz Eduardo Coutinho em Cabra Marcado para Morrer quando não só localiza a personagem Elizabeth Teixeira, como a traz de volta para o mundo de sua família, modificando a sua vida e fazendo com que reencontre os filhos (RAMOS, 2008: 102). No telejornalismo, a incorporação do sujeito-da-câmera parece revelar uma nova tendência: através de sua sensibilidade, de planos e movimentos rápidos, ele parece resgatar para a reportagem televisiva uma linguagem da imagem iniciada por Fernando Meirelles e Marcelo Tas, na TV Cultura, nos anos 80, e hoje disseminada pelo telejornalismo diário, em que, a reportagem passa a ter dupla assinatura: junto à do repórter, aquela do repórter cinematográfico.


A título de conclusão

Telejornalismo e documentário para a televisão são gêneros que se aproximam e se afastam, dependendo do contexto. Neste artigo, procuramos evidenciar algumas possibilidades e limitações do uso da entrevista em ambos os gêneros, observando que este é um dos recursos narrativos mais presentes na televisão contemporânea. Na instantaneidade e urgência do ao vivo ou na duração de um lento suspiro do documentário, estão registradas maneiras singulares de representação da matéria-prima que é a realidade. Nessas narrativas, ficam subentendidas formas de contar e de fabular, que podem revelar ou subtrair, mostrar ou esconder, lembrar ou esquecer. Sendo assim são maneiras de registrar de forma muito específica as relações entre os homens e de nos fazer entender o espaço público e os cidadãos que nele se movem, de acordo com cenários marcados pela dominação do mercado, mas com brechas e rupturas por onde é capaz de ainda subsistir alguma poesia.

 
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