Artigo | edição 9 | Janeiro-Junho de 2011
O cinema em quatro momentos da produção cronística de Graciliano Ramos
 
Thiago Mio Salla |
 
Em geral, a vinculação do nome de Graciliano Ramos ao cinema nacional está quase sempre associada, por via indireta, às célebres adaptações de seus romances Vidas Secas (1963) e São Bernardo (1971), realizadas por Nelson Pereira dos Santos e Leon Hirszman, respectivamente (1). No entanto, ao longo de sua produção cronística, que se estende de maneira intermitente entre 1909 e 1952, o escritor alagoano abordou diferentes aspectos do universo cinematográfico brasileiro em quatro oportunidades distintas e isoladas.

Em tais colaborações para imprensa, normalmente, desconhecidas do grande público, o autor de Angústia tratou do panorama do cinema carioca em 1915, quando então vivia na capital federal e escrevia para uma folha provinciana; descreveu, de maneira acrimoniosa, a precariedade de uma casa exibidora do interior alagoano, bem como a falta de decoro dos espectadores; ao mesmo tempo louvou e criticou o filme Descobrimento do Brasil (1937) de Humberto Mauro; e em crônica memorialística da década de 1940, mencionou como a chegada da arte cinematográfica no sertão, no início do século XX, pôs fim ao teatro amador do lugar.

Ao privilegiar tal recorte temático, em meio a um conjunto de 195 crônicas do escritor (2), as quais, como não poderia deixar de ser, tratam de assuntos variados, de acordo com diversidade temática e conceitual caracterizadora do próprio gênero, pretende-se apresentar e discutir esta faceta pouco explorada da produção de um dos artistas mais celebrados pela crítica literária nacional no século XX.


O Rio de Janeiro da Belle Époque

A primeira crônica de Graciliano dedicada ao cinema é a de número VIII da série “Traços a Esmo”, publicada no jornal provinciano Parayba do Sul, da cidade fluminense com o mesmo nome, em maio de 1915. Na ocasião, o escritor contava com apenas 22 anos e, no intuito de aproveitar as oportunidades abertas pela Primeira Guerra Mundial, decidiu deixar Palmeira dos Índios (AL) e tentar um emprego na imprensa da capital federal. De 15 de abril a 5 de agosto de 1915 (com alguns intervalos), foi responsável pela referida seção do jornalzinho interiorano.

Escrevendo do centro do país para uma folha provinciana, o cronista, que assina os textos apenas com as iniciais R. O. de seu sobrenome (Ramos de Oliveira), coloca-se como uma espécie de correspondente. Graciliano procurava se deter na ficcionalização de certas práticas, tipos e objetos específicos, sobretudo àqueles relacionados ao universo cultural da cidade, tais como o jornalismo, a figura do literato em esboço, certas polêmicas literárias e o cinema, entre outros tipos e manifestações. No entanto, trata-se ainda de uma inserção modesta do autor no diálogo cosmopolita do Rio de Janeiro, tendo em vista, sobretudo, sua condição de iniciante no mundo das letras e a circulação restrita do jornal com o qual colaborava (3).

Contudo, já se percebe o esforço do cronista em construir uma identidade e um estilo bem definidos, o que concorre para a unificação de relatos aparentemente tão dispersos. Para tanto, procura incorporar, de maneira efetiva, certos traços da tradição cronística de Eça de Queirós, adotando o humor, o sarcasmo e o ceticismo. Utiliza também o discurso irônico como forma de argumentação e reflexão, buscando a conivência do destinatário em novas leituras de velhos episódios. Nesse sentido, a abordagem que faz do cinema carioca da belle époque não escapa de um tratamento zombeteiro e questionador, ao mesmo tempo em que revela um narrador atento aos principais debates em torno do cinema da época.

Logo de saída, Graciliano destaca o próprio lugar comum que era tematizar o universo cinematográfico num texto de jornal (4): "Haverá um homem que rabisque para os jornais e que não tenha tido desejo de dizer alguma coisa sobre esses estabelecimentos que têm sempre, às portas enormes, cartazes onde avultam espaventosas letras encarnadas e negras, essas casas que do meio-dia à meia-noite, nos atordoam os ouvidos com estridentes sons de campainhas e surdos zunzuns de ventiladores" (RAMOS, 2005: 36).

Embutida em tal afirmação, já se nota certa perspectiva desmistificadora, que procura apresentar a casa exibidora não como um espaço de sonho e fantasia, mas sim como um lugar barulhento que funcionava exaustivamente ao longo de todo o dia.

Recorrentemente, seu texto também pontua os supostos aspectos educativo, disciplinador e moralizador que eram atribuídos à popular arte cinematográfica. “Afinal todos afirmam que o cinema é uma coisa deleitável, instrutiva e parece que até moralizadora” (RAMOS, 2005: 39). De maneira debochada, retomando a idéia de que a sala escura se constituía num elemento facilitador da lascívia (5), o cronista irá destacar que os filmes, na verdade, ensinariam e ajudariam a colocar em prática a “arte de amar”. “Nenhuma inteligência obtusa será tão inacessível a tão claras lições. Claras não são em rigor o qualificativo adequado...” (Id:. 37). A fim de exemplificar sua visada irônica, o narrador ficcionaliza a experiência de um espectador fascinado por uma fita. O cinéfilo (“cinemófilo” para o cronista), supostamente, teria ouvido o estalo de um beijo e julgara que esse teria acontecido na tela, quando na verdade viera da platéia, uma vez que as fitas eram silenciosas. O cinema, portanto, aparece como um espaço para encontros amorosos – “o ensejo de ver sentada na cadeira vizinha uma criatura gentil e condescendente” (Id:. 42).

Tratando do conteúdo dos filmes, predominantemente italianos e franceses, o escritor não deixa de criticar, de forma zombeteira, a repetição dos enredos melodramáticos, bem como a falta de verossimilhança artística dos dramas contados: “Admiro as florestas da Índia, os palácios exóticos, os ritos bárbaros do Oriente, todas as cópias dos velhos carapetões que Júlio Verne pregou a humanidade” (Idem: 40). Aqui, observa-se como o autor emprega seu repertório literário, pautado, principalmente, pela escola realista européia do século XIX, com destaque para a figura de Eça de Queirós, para ironizar as obras cinematográficas. De acordo com tal perspectiva, satiriza o que considera excessos de fantasia, invenção e romantismo, que estariam no núcleo das atribuições de agente propiciador de sonho e diversão, reivindicado pelo cinema naquele momento inicial de expansão das salas escuras pelo país.


O cinema visto do sertão

Apesar de a capital da República acenar-lhe com boas possibilidades para a continuidade de sua carreira como escriba, Graciliano, após receber a notícia da morte de três de seus irmãos em decorrência de uma epidemia de peste bubônica que assolava Palmeira dos Índios, decidiu retornar ao interior alagoano (MORAES, 1992: 36). De volta à cidade, dedica-se a sua loja de tecidos e mantém-se afastado do jornalismo durante seis anos. No entanto, de janeiro a maio de 1921, passa a colaborar sistematicamente com as 14 primeiras edições do jornalzinho O Índio, dirigido e editado pelo pároco da localidade (6).

O escritor, além de redigir editoriais e outros textos avulsos, era responsável por três seções da publicação: “Factos e Fitas” (epigramas), “Traços a Esmo” (crônicas) e “Garranchos” (crônicas). É nesta última, em 17 de abril de 1921, que Graciliano volta a tratar de cinema. Seu texto, assinado com pseudônimo “X”, ainda continua inédito em livro, uma vez que foi deixado de fora de suas obras completas.

Nos seus “Garranchos”, o cronista “X” adota uma estratégia narrativa diferente daquela que foi observada com R.O. Ele procura deixar de lado as alusões e ironias oblíquas para construir um discurso mais direto e participativo, assumindo, muitas vezes, a condição de defensor da população palmeirense representada pelo jornal. Para tanto, vale-se de um tom opinativo e mordaz de polemista, dispensando moderadamente pseudogrosserias jocosas.

Ao tratar da casa de exibição local, chamada Cine-Helvética, o cronista revela sua preocupação com a precariedade do espetáculo oferecido aos espectadores. Este seria incompatível com a modernidade da qual a cidade aspirava fazer parte. Em princípio, reclama dos moleques esfarrapados a saírem gritando pelas ruas – “Cinema é hoje! É hoje é hoje!”:

    E assim que se anuncia o cinema de Palmeira! É simplesmente espantoso que, a trinta quilômetros da via-férrea, uma cidade com um relativo progresso, em cujas ruas, cortadas de fios elétricos, transitam carros Ford e sapatos a Luiz XV, que usa perfumes Caron e figurinos de Paris, que dança one-step, que toca piano e faz jornais, esteja a usar as velhas coisas de seu Procópio do circo! (RAMOS, 1921).

Na verdade, o grande objetivo do cronista, dirigindo-se ao “senhor empresário”, proprietário do cinema, é questionar a precariedade da exibição e da própria sala:

    Já vos não pedimos que corrijais a vossa desgraçada projeção, que nos vai aos poucos desgraçando os órgãos visuais; não exigimos também que endireiteis os vossos escangalhados bancos, que se rebentam sob as nossas infelizes pernas. Não queremos sacrifícios (Id.).

E continua:

    Não notastes como o povo daqui tem boa vontade para convosco? Exibis os filmes de trás para a diante, pelo avesso, de cabeça para baixo; pára o vosso motor por falta de combustível e de cuidado - e ele, o povo, a esperar paciente, quieto, calmamente, a cochilar sobre a dura madeira dos vossos móveis, sem reclamar, sem ao menos atirar-vos às costas uma chuva de pedras como protesto (Id.).

Segundo José Inácio de Melo e Souza, na década de 1910, seriam comuns comentários sobre a falta de qualidade do espetáculo cinematográfico oferecido – “filmes que se rompiam a todo o instante, o mau estado das películas, erros no manejo dos equipamentos, irregularidades no fornecimento elétrico” (SOUZA, 2004: 65). De maneira análoga, ao escrever para o público sertanejo, Graciliano parece recuperar tal tópica, valendo-se das experiências cinematográficas que colhera na capital federal, em 1915. Daí, colocando-se em uma condição superior, cobrar mais eficiência na execução das projeções e qualidade e conforto para os espectadores da sala de cinema local, em que se exibiam, sobretudo, dramas americanos e italianos (7).

Como se percebe, na medida em que Graciliano se debruçava criticamente sobre a materialidade da vida do município, abordava o espetáculo cinematográfico, sobretudo, enquanto um evento social, que atraía e mobilizava os habitantes do lugarejo, mas não correspondia à modernidade da qual a cidade dizia participar. Nesse sentido, além de censurar a precariedade das instalações da sala de exibição, também tematizou, num texto não assinado, porém facilmente atribuível ao autor alagoano (8), o comportamento reprovável dos espectadores no ambiente da sala escura:

    A platéia, a deliciosa platéia de Palmeira... Não sabemos bem se vamos ao cinema assistir às magníficas projeções que há ali ou admirar o espírito que grande número de espectadores exibe. É realmente admirável a graça que certos rapazes desta encantadora cidade possuem. É de a gente morrer de rir. Apenas a sala fica às escuras, começam os trabalhos. São guinchos, gritos, patadas nos bancos, urros, cacarejos e outros interessantes rumores onomatopaicos. Se na tela um sujeito beija uma rapariga, estalam nos bancos beijos em chusma, num barulho irritante que mexe o sistema nervoso de um pobre que não esteja habituado àquilo. Os comentários que se fazem às figuras que ali há são coisas incisivas, numa linguagem que não abusa de metáforas; de uma clareza admirável. Muito espirituosa a platéia... Cogita-se seriamente de acabar de rebentar a pitoresca mobília daquela interessante sala. É o que parece, pois muitos espectadores que naturalmente gostam de deitar-se cedo – confundem aquilo com cama, recostam-se, espreguiçam-se, escancaram a boca num bocejo e... lá vai o encosto do banco cair em cheio nas pernas da gente que está à retaguarda. (...) Sim senhor, boa troça rebentar os móveis (O ESPÍRITO, 1921).

Mais do que reconhecer o valor artístico dos filmes exibidos, o cronista trata o cinema como espaço de convivência social (9), regido por certo decoro, o qual era desrespeitado pela inculta população palmeirense. Nesse sentido, ao abordar a experiência cinematográfica na pequena cidade sertaneja, Graciliano deixara de lado o enfoque específico de um filme estrangeiro ou mesmo das produções nacionais contemporâneas a seu momento de enunciação, inclusive aquelas realizadas no Nordeste ou mesmo em Maceió (10).

Vale lembrar que no momento em que o texto do autor alagoano veiculava seu texto no jornalzinho sertanejo O Índio, iniciava-se, na capital do Estado, o chamado “ciclo de cinema de Alagoas”, mediante o trabalho do italiano Guilherme Rogato, que realizara Carnaval em 1921 e Inauguração da ponte em Quebrangulo, filmes exibidos em 1921, no Cine Floriano de Maceió (11).


Descobrimento do Brasil

Depois de sua saída da prisão, em 1937 (12), Graciliano, já bastante aclamado pela crítica após a publicação de seus três primeiros romances (Caetés, S. Bernardo e Angústia), decide se fixar no Rio de Janeiro e se dedicar à carreira de escritor. Passa a escrever para Imprensa Brasileira Reunida Limitada (I.B.R. Ltda.), uma agência de notícias, de São Paulo, que distribuía matérias de diferentes colaboradores para uma cadeia de mais de duzentos jornais de todo país, entre eles o Diário de Notícias do Rio de Janeiro, o qual recebia os textos do autor alagoano com exclusividade na capital federal. Além disso, sem intermediários, colaborou em vários jornais e revistas cariocas (SALLA, 2010: 98-99).

Na medida em que constrói um perfil artístico bem definido, o cronista muda de estatuto: não se tratava mais do jornalista iniciante que escrevia para veículos provincianos, encoberto por pseudônimos, mas sim de uma entidade cultural de relevância nacional, assinando os textos com o mesmo nome que figura nas capas de seus romances. Ao longo desse processo, adota um posicionamento que procura ser mais sério e equilibrado, condizente com sua posição de grande escritor. Deseja manter o compromisso com tal imagem. Nesse processo, por mais que mantenham certo sarcasmo e ironia, suas crônicas perdem o tom mais debochado e zombeteiro das narrativas anteriores.

O escritor alagoano começa também a participar com mais constância e efetividade do discurso cosmopolita: o grande diálogo nacional em que se discutia, sobretudo, literatura intensamente. Trata-se de um momento de polarização política e literária entre os adeptos do romance social, de cunho regionalista, e os defensores do romance psicológico de matiz católico. Sua fala intervém nessa massa discursiva e seu referente passa a ser, sobretudo, a produção cultural do momento em que vivia. Essa situação estende-se até o momento de sua morte, em março de 1953 (BUENO, 2006).

Entre seus textos jornalísticos deste período, destaca-se a crônica “Uma tradução de Pero Vaz”, distribuída pela I.B.R. Ltda. e publicada primeiramente no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, em março de 1938. Nela, comenta o filme Descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro. Trata-se do texto sobre cinema, de autoria do próprio Graciliano, mais conhecido entre os estudiosos da área (13). Além disso, esta é a única oportunidade em que o cronista tem como objeto um filme específico. Como já foi visto, seus textos anteriores abordavam, de maneira geral, diferentes aspectos da experiência cinematográfica, seja a febre por cinema na capital carioca do início do século XX, seja a precariedade da sala escura e a incivilidade dos espectadores sertanejos.

Ao tratar de Descobrimento do Brasil, Graciliano louva a supremacia técnica da fita e o cuidado da produção. Coloca-a muito acima das demais realizações do cinema brasileiro daquele momento. O escritor parece ter como base filmes históricos anteriores, os quais recompunham com certa precariedade os eventos e feitos do passado que pretendiam retratar. O Caçador de Diamantes (1933), de Vittorio Capellaro, por exemplo, apresentava índios barbados. Ao mesmo tempo, parece se valer da mesma perspectiva crítica utilizada para analisar obras literárias: valoriza, principalmente, o apuro técnico e a verossimilhança artística dos textos, ou seja, a suposta correspondência entre o mundo concreto e a realidade plasmada na narrativa.

Com relação a este último aspecto, a fita de Mauro recebe duras críticas. Para o cronista, ao se basear na carta de Pero Vaz, o diretor teria realizado um retrato histórico deturpado e interessado da relação entre índios e portugueses, na medida em que apresentava estes como corteses e acolhedores no trato com aqueles. “E lamentamos que nesse trabalho de Mauro, trabalho realizado com tanto saber, se dê ao público retratos desfigurados dos exploradores que aqui vieram para escravizar e assassinar o indígena” (RAMOS, 2005: 204).

Assim, Graciliano critica o saber consolidado em que a fita procurava se ancorar e o aspecto educativo e pedagógico desta. Os idealizadores de Descobrimento do Brasil, para ressaltarem o tratamento supostamente científico do trabalho, procuraram conferir à obra inúmeras referências autenticatórias. Caminha, por exemplo, figura como narrador-testemunha, ou seja, aquele que escrevera a carta, na qualidade de observador privilegiado, é encarregado de apresentar os desdobramentos do enredo. Além disso, são recorrentes citações a outros relatos históricos e imagens pictóricas sobre o evento, os quais também serviriam para fornecer lastro histórico à produção. As próprias colaborações de Roquette-Pinto e do historiador Afonso Taunay com o projeto também concorreriam para isso (MORETTIN, 2000).

Nesse sentido, Graciliano, de forma indireta, também não reconhece a obra como um monumento ao regime estadonovista tal como propunham seus realizadores (14). Alegoricamente, de acordo com as diretrizes de unidade e coesão nacional da ditadura getulista, o filme procuraria simbolizar a comunhão entre Igreja, Estado e trabalhadores. O cronista, ao questionar o retrato construído do colonizador, parece rejeitar a relação harmônica e paternal entre o poder oficial e a classe trabalhadora, representada pelos portugueses e pelos índios selvagens, respectivamente.

Apesar do propósito distinto e do viés mais austero, a análise que Graciliano faz do filme de Mauro se conecta com sua crônica de 1915, vista acima, pois em ambas depreende-se certa crítica à perspectiva educativa e moralizadora atribuída ao cinema. Enquanto lá, em meio a gracejos pontuados por um tom deliberadamente irônico, o cronista, com foco no caráter social da experiência cinematográfica, insinuava que a sala escura estimularia a lascívia dos espectadores, aqui, destaca que, por mais méritos que o filme Descobrimento do Brasil tivesse, apresentava uma imagem falseada dos colonizadores, comprometendo a historicidade da mensagem veiculada ao público.


O fim do teatro amador

Durante o período de sua segunda permanência no Rio de Janeiro, entre março de 1941 e agosto de 1944 (com alguns intervalos), Graciliano colaborou com a revista Cultura Política, o principal veículo de propaganda ideológica do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo. Inicialmente, além da função de revisor, era responsável pela publicação de uma crônica mensal na seção “Quadros e Costumes do Nordeste” (15). Ao longo de sua carreira como cronista, trata-se de sua participação mais intensa e duradoura em um único veículo.

Tais escritos, estruturados como supostos testemunhos, assumem um caráter predominantemente memorialístico. Neles, Graciliano busca retomar suas experiências sertanejas referentes ao período da Primeira República, criticando, acima de tudo, a precariedade de certas práticas e aspectos da vida social e cultural interiorana. Simultaneamente, ao esboçar uma espécie de etnografia do sertão, o escritor realiza a apropriação simbólica daquele mundo longínquo, dialogando com ideais de redescobrimento do país e de unidade nacional, presentes tanto no discurso da intelectualidade como nas páginas do periódico getulista naquele momento.

Entre suas lembranças colocadas em narrativa, o cronista, no texto intitulado “Teatro II”, de outubro de 1941, apontava o cinema como responsável pelo fim do teatro amador sertanejo: “Havia uma escola dramática. Extinguiu-se depois do cinema: os amadores, vendo a tela, perceberam que não faziam nada com jeito e largaram o palco envergonhados” (RAMOS, 1962: 55). O mesmo movimento modernizador seria projetado para outras instituições sertanejas da cidadezinha “ingênua e presunçosa”: “Provavelmente o rádio matará a filarmônica, os hospitais suprimirão a sociedade beneficente, os livros que se multiplicam, inutilizaram o grêmio literário” (Idem).

Nesse sentido, de uma maneira arrebatadora, a arte cinematográfica, tida como mais recente e sofisticada, teria não só causado a extinção, mas tomado o lugar das apresentações teatrais tacanhas e cambembes. O autor sugere, portanto, que uma forma artística aparentemente “superior” substituíra a outra, pois não haveria espaço para a convivência entre ambas (16).

Depois de lançada essa hipótese e a fim de justificá-la, o cronista, quase como um arqueólogo cultural, começa a tratar dos dramas e comédias que eram encenadas no palco improvisado do lugarejo. As peças, em geral, apresentariam enredos repetitivos e seriam marcadas por tolices e grosserias que se ajustariam ao público sertanejo, o qual, recorrentemente, é rebaixado pelo narrador. Sugere, dessa maneira, que o espetáculo canhestro seria ajustado ao indivíduo comum do interior.

Se o teatro amador fora substituído pelo cinema, este, como ícone da modernidade que chegava ao sertão, também tinha suas limitações. Na crônica “Carnaval”, que abre a colaboração de Graciliano na revista getulista, em março de 1941, a cidadezinha do interior nordestino tematizada é descrita por meio de um cinema silencioso, “onde as fitas se quebram durante longas horas de exibição, sem risco para os freqüentadores atentos aos dramas em série” (RAMOS, 1962: 17).

Dessa maneira, fica a impressão de que mesmo com a chegada do cinema a precariedade caracterizadora das manifestações culturais do lugar se manteria. Para o narrador, essa tacanhice apenas teria ganho uma feição mais moderna com o predomínio das exibições capengas de filmes importados na sala escura do município (onde tudo acontecia “às claras”, uma vez que a todo o momento as luzes se acendiam para que a projeção fosse corrigida). Essa sala, por sua vez, recuperaria aquela descrita na crônica de 1921, escrita para o jornalzinho O Índio e examinada acima, na qual Graciliano já reclamava das condições oferecidas aos espectadores do município de Palmeira dos Índios.

 
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Uma abordagem inicial e reduzida do tema deste artigo foi apresentada no X Encontro da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine), realizada em Ouro Preto-MG (outubro de 2006).

(1) Além de Vidas Secas (1963), Nelson Pereira também dirigiu Memórias do Cárcere (1984), adaptação da obra memorialística homônima de Graciliano.

(2) Este número de 195 textos engloba 99 crônicas reunidas em Linhas Tortas (1962) e 38 em Viventes das Alagoas (1962), ambos volumes póstumos, integrantes das obras completas do escritor, bem como outras 58 inéditas em livro identificadas, coletadas em diferentes acervos paulistas, cariocas e alagoanos, e organizadas pelo autor do presente artigo, no âmbito da confecção da tese O fio da navalha: Graciliano Ramos e a revista Cultura Política (SALLA, 2010), na qual se procurou estudar a colaboração do autor de Vidas Secas no principal veículo de doutrinação ideológica do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), do Estado Novo de Vargas.

(3) Tal semanário, que saía somente às quintas-feiras, tinha apenas quatro páginas (de tamanho standard), divididas em seis colunas. “Traços a Esmo” recorrentemente ocupava o espaço privilegiado da primeira página, ao lado de outra seção, chamada “Do Rio...”, e de algum editorial. O provincianismo da folha fica claro no destaque dado a tudo aquilo que vinha da cidade do Rio de Janeiro, centro em torno da qual o município interiorano de Paraíba do Sul gravitava.

(4) Vicente de Paula Araújo destaca como ano de 1912 teria sido marcado pela quantidade de escritos sobre a cinematografia no Rio de Janeiro. “Nunca se falou tanto em arte cinematográfica, indústria de filmes, gosto artístico, fita dramática, etc. Por outro lado, os anúncios dos exibidores ocupam grandes espaços nos jornais e páginas inteiras nas revistas” (ARAÚJO, 1976: 377).

(5) José Inácio de Melo Souza, retomando trecho de Balão cativo: memórias, de Pedro Nava, destaca o temor que se tinha dos “bolinas”, “aproveitadores de ‘mulheres indefesas’, agindo acobertados pela escuridão do cinema” (SOUZA, 2004: 57).

(6) Tratava-se de uma publicação em tamanho tablóide, de quatro páginas divididas em quatro colunas. Nas duas primeiras, normalmente, constavam editoriais, pequenos textos, notas opinativas, epigramas e crônicas. A terceira era ocupada por telegramas, pequenas publicidades e pelas seções “Crônica Social” (com informações sobre eventos e figuras da elite municipal), “De Maceió” (com notas sobre a capital do Estado) e “A pedidos”. Na quarta, ganhavam espaço correspondências, pequenas notas e praticamente toda a publicidade e classificados.

(7) Graciliano, na mesma crônica, destaca fitas em que estariam presentes os artistas Priscilla Dean, Lyda Borelli e Eddie Polo e Francis Ford. Este último, irmão mais velho de John Ford, também atuava como diretor (LAHUE, 1968: 222). Nota da seção “Crônica Social”, do jornal O Índio, de 17 de abril de 1921, indicava que “o grandioso filme em 9 séries O Mistério dos Treze (The Mistery of 13) ”, dirigido por ele, há dias estava em cartaz no cinema local e vinha “atraindo a atenção dos freqüentadores daquela casa” (CRÔNICA SOCIAL, 1921).

(8) Conforme indica Moacir Medeiros Sant’ana, durante a passagem de Graciliano pelas primeiras quatorze edições de O Índio, o autor alagoano fora responsável pelos editoriais sem assinatura veiculados pela publicação, entre os quais estaria este que ora se examina (SANT’ANA, 1983). Em carta ao amigo Mota Lima, em agosto de 1927, o próprio escritor refere-se ironicamente a sua colaboração intensa nos primeiros números do jornalzinho palmeirense. “Durante o tempo que ali trabalhei, esforcei-me por melhorar os artigos dos outros. Mas quem melhoria os meus, que eram quase todos” (RAMOS, 1982: 76).

(9) Graciliano parece pautar-se por um procedimento comum entre os cronistas do período, que se dedicavam à matéria cinematográfica. Segundo José Inácio de Melo e Souza, no início do século, ao mesmo tempo em que o cinema continha grande carga simbólica, como espaço de convivência social, apresentava reduzido valor cultural, tanto em termos eruditos, quanto populares (SOUZA, 2004: 67-68).

(10) Futuramente, Graciliano viria a ser um entusiasta do cinema regional. Segundo Dias, o romancista, juntamente com Aurélio Buarque de Holanda, Jorge de Lima, entre outros intelectuais que viviam em Maceió no início da década de 1930, apoiara o trabalho do cineasta Edson Chagas, figura chave do surto cinematográfico do Recife, que chegara à capital das Alagoas, em novembro de 1930, com o propósito de fazer filmes de enredo. Um ano depois, após executar pequenos trabalhos de cunho documental, Chagas acaba por realizar o primeiro longa-metragem alagoano, Um bravo do Nordeste (1931) – western adaptado para a vida regional (DIAS, 1980: 23).

(11) Como se sabe, a década de 1920 no Brasil, ainda no contexto do cinema silencioso, foi marcada pelo surgimento de ciclos regionais em diferentes cidades do país. Em termos nordestinos, destaque para o ciclo de João Pessoa (PB), de Recife (PE) e mesmo de Alagoas (MIRANDA e RAMOS, 2000: 15).

(12) Como se sabe, Graciliano foi preso em 1936, em Maceió, sem nenhuma acusação aparente. Logo em seguida, o escritor foi levado para a capital federal, onde ficou preso até janeiro de 1937.

(13) Há referências a este texto de Graciliano na Enciclopédia do Cinema Brasileiro, mais precisamente no verbete sobre Humberto Mauro (MIRANDA e RAMOS, 2000: 365) e em obras dedicadas a tal cineasta como na tese de Eduardo Morettin, Os limites de um projeto de monumentalização cinematográfica: uma análise do filme Descobrimento do Brasil, de Humberto Mauro (MORETTIN, 2001), no livro Humberto Mauro e as imagens do Brasil (SCHVARZMAN, 2003: 150), de Sheila Schvarzman, e na coletânea Humberto Mauro: sua vida, sua arte, sua trajetória no cinema (VIANY, 1978: 205), organizada por Alex Viany.

(14) A relação entre o filme e o regime fica mais explícita na carta endereçada por Lourival Fontes, então diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), a Humberto Mauro, quando do lançamento da obra: “A realização do Descobrimento do Brasil, na sua fidelidade histórica e na sua orientação técnica, representa um índice indiscutível de progresso e aperfeiçoamento da imprensa nacional” (SCHVARZMAN, 2003, 149).

(15) Esta seção, ao longo das diferentes fases da revista, viria a se chamar “Quadros e Costumes Regionais” e, em seguida, apenas, “Quadros Regionais”.

(16) Ronaldo de Andrade e Silva, ao examinar a trajetória do teatro amador na capital alagoana, a partir do século XIX, também ressalta o forte impacto causado pela chegada do cinema (“indicador de novos tempos”) à cena teatral maceioense. Contudo, diferentemente de Graciliano, cujo foco restringia-se ao interior sertanejo, o pesquisador destaca que o surgimento e a expansão da atividade cinematográfica não teriam levado à substituição das encenações tradicionais, realizadas por amadores, em diferentes palcos de Maceió. Ambas as manifestações artísticas teriam convivido lado a lado, dividindo espaços de exibição (SILVA, 1993: 40).

 
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