Artigo | edição 2 | Janeiro-Junho de 2008
Jornalismo sem conflito
 
Adriana Santana |
 
Duas faces, uma só moeda

A edição de um jornal diário não se faz sozinha, dependendo de uma série de personagens, instituições, ferramentas e políticas para moldar-se e ir às ruas. Assim, forma-se não apenas o conteúdo das matérias, mas principalmente a linha editorial pela qual o veículo deverá ser conduzido. Dentre essa gama de atores, as assessorias de imprensa têm se tornado destacadas partícipes no fornecimento de informação aos jornalistas, de tal forma que acabam por orientar e definir a produção jornalística, atuando ao mesmo tempo como fontes e produtores de notícias.

Há momentos em que, sim, o assessor pode ser considerado o ‘melhor amigo’ do repórter. A assiduidade dessa relação profissional, que às vezes pode beirar – perigosa e antieticamente – a amizade, tende a ser maior quanto menor for o número de profissionais de uma editoria de jornal. Isso porque, geralmente, quanto menos jornalistas, maior é o trabalho individual. Assim, tanto menor for a equipe e, conseqüentemente, maior for a quantidade de matérias destinadas a um mesmo jornalista, o assessor tende a ser mais requisitado. Dessa forma, não é difícil imaginar que assessores vez por outra atuem como ‘fornecedores’, fontes ou mesmo os próprios autores de pautas e até notícias. Lage diz que o assessor de imprensa tem a prerrogativa de escolher o que julga ser interessante a ser divulgado e que “deve conjugar isso com seu compromisso com o empregador: desempenhar a tarefa com inteligência, o que significa gerir conflitos de interesses que sempre cercam a administração da informação” (2002: 69).

A atividade de assessoria de imprensa tomou corpo com a difusão da idéia de que o diálogo permanente com o público era parte fundamental de um produto, serviço, estratégia de inserção ou mesmo manutenção no mercado – caminho que foi percorrido lentamente no País, tomando forma principalmente com a abertura política, nos anos 80, e mais consistentemente na década de 90, com o contato das empresas com novos mercados (CHINEM, 2003). Essa trajetória que levou empresas a adotarem a prática da comunicação com o público seguiu a passos lentos, principalmente se levarmos em consideração que a lendária máxima “the public be dammed”, de 1882, (traduzida para o português como “o público que se dane”), atribuída ao empresário norte-americano Williams Henry Vanderbilt, norteou o pensamento empresarial da época até pelo menos o início do século 20 (LOPES, 1994).

Originalmente, o «release», principal ferramenta de uma assessoria de imprensa, tem como objetivo funcionar como uma sugestão, um ponto de partida para o trabalho do jornalista (CHINEM, 2003). No entanto, os textos elaborados por assessorias de imprensa podem acabar com o «status» de material definitivo que será publicado no dia seguinte, pois as etapas de checagem e até mesmo de redação final da matéria por vezes são ‘queimadas’ por repórteres, que chegam a publicar os «releases» na íntegra, ou com pouquíssimas alterações, ainda assim de teor meramente estilístico (uma ou outra mudança em frases, cortes, substituições de termos, inversão da ordem de parágrafos – mas com pouca ou mesmo nenhuma adição de informação). Algumas assessorias até, para evitar que o assunto se limite ao texto do «release», costumam não colocar depoimentos nos textos que são enviados às redações, para que o repórter, ao menos, telefone à fonte para entrevistá-la.

Quando se trata da questão da função da assessoria de imprensa, há que reconhecer as duas faces da atividade. A primeira diz respeito ao compromisso jornalístico, à necessidade de tratamento correto da informação, ao objetivo de bem informar veículos de comunicação e públicos acerca do funcionamento de uma instituição. Seu papel, nesse caso, é ser um elemento de integração e catalisador de informações. Por outro lado, a outra função de um profissional de assessoria de imprensa passa primordialmente pelo campo de interesses dessa mesma instituição. É uma atividade estratégica e, como todos os setores pertencentes a uma empresa, precisa estar em consonância com os objetivos da organização. Assim, não se pode esperar que a principal função de um assessor seja informar o público, e sim informá-lo a respeito dos fatos que sejam de interesse da instituição para a qual trabalhe.

Já em relação ao compromisso maior do jornalista de batente, que é, em teoria, o de bem informar ao público, há de se admitir que, salvo raríssimas exceções, também consta do rol de principais obrigações do repórter não contrariar os interesses do veículo ao qual está vinculado. Analisando por esse viés, jornalistas e assessores têm pelo menos dois pontos em comum, considerando as devidas proporções: usam a informação como matéria-prima e contam com os interesses dos patrões como limitadores ou condutores de seu trabalho. Ainda sobre o jornalista de 'batente', é preciso levar em consideração a posição que o profissional ocupa na empresa, o que lhe dará mais ou menos liberdade de atuação. Barros Filho pondera que o jornalista, ao realizar o trabalho de confecção de uma matéria, age tanto em função do cumprimento de uma rotina da profissão quanto sob “a lógica das relações sociais do universo em que interage, ou seja, em função do conhecimento e reconhecimento de si próprio, do seu nome” (Barros Filho, 2003, p.105). Também seria inócuo exigir do jornalista o abandono total de uma parcialidade que é inerente a qualquer profissional. Afinal, a subjetividade faz parte da profissão. Muitas vezes, até, os jornalistas são, ao mesmo tempo, seu próprio sujeito e objeto de trabalho (BUCCI, 2000). Mas na medida em que o jornal passa a publicar conteúdos de notícia oriundos integralmente de fontes únicas – as assessorias –, constata-se um fenômeno inusitado: a angulação torna-se determinada não pelo repórter, editor ou mesmo linha editorial do veículo, mas sim pelas empresas que contrataram os serviços do assessor de imprensa.

É certo que a participação de um assessor com bom traquejo profissional pode ser decisiva para a realização de uma matéria. Assessores facilitam a vida do repórter quando não transformam seus assessorados em pessoas inatingíveis e conseguem identificar e trabalhar jornalisticamente fatos jornalísticos genuínos. Uma vez ciente das razões que motivaram determinada reportagem, bem como dos procedimentos de determinada redação, o trabalho realizado por esse profissional pode 'salvar' a edição do dia seguinte. No entanto, mesmo contrariando as concepções mais modernas, há vezes em que o papel da assessoria de imprensa não é o de informar, mas o de esconder, evitar conflitos, impedir o fluxo de informações e – em casos extremos – mascarar a realidade, principalmente nos períodos de crise. Afinal de contas, o compromisso maior de um departamento de comunicação é com o bom funcionamento da instituição para a qual trabalha. E reside justamente aí o ponto nevrálgico da relação entre jornalistas e assessores.


Assessoria ou sucursal?

Ultrapassar o tênue limite entre onde acaba a tarefa do assessor e onde começa a do repórter tem se tornado cada vez mais freqüente no processo de produção da notícia. Em levantamento realizado durante todo o mês de dezembro de 2004, na Assessoria de Comunicação (ASCOM) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), chegou-se ao número de 41% de aproveitamento dos 80 releases enviados aos dois maiores jornais pernambucanos: «Jornal do Commercio» e «Diario de Pernambuco» (1). Das matérias enviadas, 33 foram utilizadas, rendendo 38 inserções em forma de matérias, pautas e notas nos dois periódicos.

No período de 1º a 30 de dezembro de 2004 houve 57 notícias publicadas sobre a UFPE nas versões impressas do «Diario de Pernambuco» e «Jornal do Commercio», excetuando-se dessa quantia as matérias sobre vestibular e outras das quais a instituição era apenas citada, não sendo a ‘protagonista’ da reportagem. Dessa forma, das 57 inserções sobre a Universidade, veiculadas no mês de dezembro, 38 tiveram origem direta nos «releases» enviados pela ASCOM, o que totaliza um percentual de mais de 66%. Nesse caso, a estratégia de divulgação à imprensa da UFPE foi responsável pelo expressivo percentual de 66% de todas as matérias publicadas sobre a instituição no período de 30 dias, nos dois maiores jornais locais.

Das 38 veiculações originadas dos «releases» enviados pela ASCOM, 23 (60,5%) foram publicadas no «Jornal do Commercio» e 15, (39,4%) no «Diario de Pernambuco». Dessas 38 inserções, 100% tiveram conceito positivo ou neutro, ou seja, nenhum «release» originou matérias com temas negativos em relação à Universidade. A maioria das inserções (57,8%) foi de notas. As matérias realizadas ficaram em 42,1% do total.

Na catalogação, também foi analisada a forma de aproveitamento do «release» nos jornais, a saber: «Nota» (quando o texto não era necessariamente copiado do original, podendo ter sido modificado ou trazido alguma informação adicional); «Nota baseada no release» (quando o «release» deu origem a uma nota sem quaisquer informações adicionais e poucas mudanças textuais, ou seja, a nota havia sido retirada de um trecho do «release», com pouca ou nenhuma modificação); «Matéria baseada em release» (mesmo que o anterior, com a diferença do tamanho, que no caso da matéria é maior do que a nota) e «Pauta» (quando o «release» serviu como sugestão para o repórter, que complementou as informações recebidas, quer seja com entrevistas ou com mais dados).

Por essa classificação, das 38 inserções, 13 (34,2%) foram de «Notas baseadas em releases», outras 13 renderam «Pautas» (34,2%), 8 (21%) foram de «Notas» e 4 (5%) de «Matérias baseadas em releases». Assim, pode-se afirmar que 55,2% (21) das inserções foram de notas e matérias que tiveram alguma intervenção do repórter e 44,7% (17) tiveram pouca ou nenhuma participação do repórter, configurando-se apenas como notas e matérias meramente copiadas ou reescritas dos «releases».

Numa confirmação de que foi grande o aproveitamento de «releases» da ASCOM no período analisado, no dia 3 de dezembro de 2004, a assessoria enviou à imprensa um boletim com cinco notícias. Dessas, três foram reproduzidas numa mesma coluna, veiculada no dia 05 de dezembro. A coluna «Repórter JC», da edição deste dia do «Jornal do Commercio», publicou as notas «Pernambucanos recebem de Lula o Prêmio Finep, Contra a Aids» e «UFPE terá recursos para pesquisa», todas reescritas do material enviado.

Uma vez que 100% de tudo o que foi publicado com base nos «releases» enviados pela UFPE em dezembro de 2004 foram aproveitados de forma positiva ou neutra, ou seja, renderam matérias com bom conceito para a instituição, abre-se uma brecha para questionar se essas matérias teriam sido veiculadas de forma diferente caso houvesse apuração do repórter. Talvez resida justamente nessa ausência de informação, ou no dado não aprofundado, a importância de uma notícia para o leitor. Além disso, se há «releases» suficientes para determinar a pauta do dia, acaba-se tornando desnecessária a busca por outros assuntos, por outras angulações.

Se o trabalho do jornalista muitas vezes é facilitado pelas assessorias, com ele também se esvai a possibilidade de checagem da veracidade das informações fabricadas nas empresas, ou mesmo a chance de o jornalista enriquecer a história com dados não abordados pelo «release». Afinal, é no processo de captação das informações que hipóteses são levantadas. “A coleta de dados pelo corpo da reportagem, a coleta secundária, via agências de notícias, e as informações capitalizadas por articulistas individualizados dão forma à intenção da empresa jornalística que angula e edita essas mensagens” (MEDINA, 1988: 90).

No encalço de causas para levar ao superaproveitamento de «releases» nas redações, é comum apontar o fator tempo com um dos catalisadores do processo. Sempre implacável, é senhor e juiz desse processo de produção da notícia. O ritmo imposto pela rotina das redações pode tolher a possibilidade de ângulos diferentes de abordagem numa mesma matéria, pois não há tempo hábil para se procurar outras fontes que não as tradicionais (MORETZSOHN, 2002). Muitas vezes, é o tempo (ou a falta dele) que irá definir quantas fontes serão consultadas, o tamanho do texto e, até mesmo, quais frases e palavras constarão na reportagem.

Não desprezando a possibilidade de que os «releases» possam vir a facilitar a atribulada vida do repórter, “liberando-o teoricamente para investigar outros temas”, Kunczik afirma, sobre as conseqüências dessa relação tão forte entre texto jornalístico e produção das assessorias, que se aceita “com demasiada facilidade e sem nenhum questionamento a informação partidária, que é transmitida como produto jornalístico supostamente genuíno” (KUNCZIK, 2001: 287). O jornalismo que se produz atualmente, caracterizado por Marcondes Filho como sua quarta e última fase – a da era tecnológica –, é realizado com base na velocidade, concorrência desenfreada, adaptações por conta de outros veículos (em especial, televisão e Internet) e padronização de conteúdos.

    É a inflação de comunicados de material de imprensa, que passam a ser fornecidos aos jornais por agentes empresariais e públicos (assessorias de imprensa) e que se misturam e se confundem com a informação jornalística (vinda da reportagem principalmente), depreciando-a ‘pela overdose’ [...] Além disso, a tecnologia imprime seu ritmo e sua lógica às relações de trabalho, definindo os novos profissionais, a nova ética de trabalho, em suma, um outro mundo, que mal deixa entrever os sinais do que se convencionou chamar no passado de ‘jornalismo’ (MARCONDES FILHO, 2000: 30-31).

A questão da velocidade da produção parece estar fortemente associada à recorrência premente de «releases» como fonte primária e, muitas vezes, até única, para a elaboração de notícias. A respeito do ritmo acelerado imposto pelas empresas de comunicação aos profissionais, Moretzsohn (2002: 12) afirma que as próprias condições de trabalho “ficam subordinadas a essa ‘lógica da velocidade’, apresentada como um dado da realidade, como se fosse dotada de uma dinâmica própria, e não como resultado da rotina industrial”. Citando Franciscato, indica que o ritmo imposto pelas empresas jornalísticas, nas quais o tempo e os recursos são escassos, acaba determinando as atividades de coleta, seleção e edição das informações. Dessa forma, estabelece-se uma relação cada vez mais estreita entre velocidade e informação, uma vez em que a primeira será diretamente responsável pelo modo de captação da segunda. Instaurado o ritmo acelerado como modo de produção, os repórteres terminam por se viciar nas mesmas fontes, numa rotina ao mesmo tempo prejudicial (aos leitores, pois reduz a abrangência da notícia) e útil (aos repórteres, que contam com elas para driblar o tempo): “(...) é o habitus que proporciona o estabelecimento de rotinas que levam a notícia a ser procurada ali onde ela é sempre encontrada, o que cria um círculo vicioso que envolve a relação com as fontes.” (MORETZSOHN, 2002: 66).

Traquina (2004), apesar de reconhecer uma autonomia relativa no jornalismo contemporâneo, também aponta situações que parecem condicionar a atividade: horários, hierarquias, concorrência e mesmo a existência de setores da sociedade responsáveis pelas notícias do dia seguinte. Quer seja por conta da falta de tempo, do acúmulo de atividades ou mesmo descuido com a informação, há casos em que o repórter se torna um mero ‘copiador’ de comunicados oficiais. Além de jornais quase idênticos, o prejuízo dessa prática tão comum nas redações é inegável ao público leitor. Mesmo sabendo que não há imparcialidade nos veículos de comunicação – e que a empresa jornalística, por mais séria que seja a postura adotada, quase sempre conduz a produção jornalística de modo a não contrariar seus interesses políticos e econômicos –, a mera publicação de notícias geradas fora dos jornais (em órgãos públicos, empresas privadas, associações de classe etc), sem a devida checagem, apuração e consulta a outras fontes, ‘brinda’ o leitor com informações inegavelmente parciais, verdadeiras propagandas disfarçadas de notícia. Silva vê com pessimismo a transformação orquestrada nos veículos de comunicação do País quando afirma que “o assessor de imprensa sepultou o jornalista”. (Silva, 2000: 26).

O que parece ser um dos piores frutos desse processo de aproveitamento indiscriminado de «releases» é que, ao leitor, não é informado que determinada informação foi criada dentro das próprias empresas, e não fruto de um trabalho de investigação, do ‘faro’ do repórter. Uma vez estampado numa página de jornal, o fato, mesmo vindo a ser posteriormente desmentido, tem boas chances de configurar-se como verdade. Ainda que as notícias transmitidas por departamentos de comunicação sejam verdadeiras e até de interesse do público, como critica Pierre Bourdieu, “na falta de tempo, e, sobretudo de interesse e informação, os jornalistas não podem trabalhar em tornar os acontecimentos realmente inteligíveis, colocando-os no sistema de relação em que estão inseridos” (BOURDIEU, 1997: 37).

Apesar de fenômeno crescente e cada vez mais inserido nas rodas de conversa de jornalistas, assessores e até na Academia, ainda são incipientes as estatísticas sobre a influência do trabalho de assessorias de imprensa na produção jornalística. No Brasil, é ainda raro encontrar esse tipo de estudo sendo desenvolvido no meio acadêmico. Kunczik agrupou algumas pesquisas desenvolvidas na Europa para identificar o nível de utilização de releases nos jornais germânicos. Uma delas, desenvolvida pela dupla Nissen e Menning, ainda em 1977, apontou que, no estado de Schleswig-Holstein, mais da metade dos comunicados enviados via boletins de imprensa do governo e partidos políticos foi publicada nos três jornais pesquisados. Desse montante, entre 73% e 90% do material foram utilizados na íntegra, sem comentários (2001; 283). Bárbara Baerns (apud KUNCZIK, 2001) identificou, num estudo sobre a eficácia das relações públicas de uma multinacional na Alemanha, que “as RP determinam o conteúdo dos meios de comunicação sempre que os jornalistas as empregam sem investigação própria” (BAERNS apud KUNCZIK, 2001: 284). E de acordo com Sponholz, “mais da metade das notícias que sairão nos jornais americanos e alemães de amanhã vem de assessorias de imprensa ou foi ‘provocada’ por estratégias de relações públicas” (SPONHOLZ, 2002: 02).

O uso de informações produzidas por assessorias de imprensa é tão recorrente na mídia mundial que foi fundado, por jornalistas e instituições não-governamentais norte-americanas, o projeto «Center for Media & Democracy» (Centro de Mídia e Democracia – CMD), que se dedica a investigar a legitimidade das informações pulverizadas pelo que a organização chama de “práticas de relações públicas”. Segundo o texto de apresentação do centro, o CMD serve a cidadãos, jornalistas e pesquisadores que buscam reconhecer e combater as “práticas manipuladoras e enganosas” dos serviços de relações públicas.

O assessor de imprensa costuma ter conhecimento da forma com que os jornais aproveitam e por vezes reproduzem os «releases» e notas produzidas pelas assessorias, já que a maioria desses departamentos tem como padrão de controle de seu trabalho a confecção de relatórios, em que constam as estatísticas e tabelas com o nível de aproveitamento de seus boletins e sugestões de pauta. O repórter e o editor também têm consciência de que boa parte das notícias impressas nos jornais provém de textos enviados por organizações das mais variadas espécies via assessoria (já que se utilizam, diariamente, desse material), como Charon atesta no excerto a seguir: “Comunicados e convites, dossiês e coletivas, cafés-da-manhã, almoços, viagens... Hoje em dia, a informação que antes era preciso buscar vem espontaneamente ao jornalista” (CHARON apud Marcondes Filho, 2000: 41).

Além do uso indiscriminado de «releases», o mesmo jornalista que denuncia práticas profissionais antiéticas em matérias pode vir a não se negar a produzir um caderno com matérias ‘encomendadas’ e a publicar (ou não) determinada notícia para ‘quebrar o galho’ de um assessor de imprensa de suas relações. Travancas (1993), ao analisar o dia-a-dia dos jornalistas nas redações sob o viés antropológico, chega à conclusão de que a ética profissional do jornalista se apresenta com um eterno embate entre a teoria e realidade.

Essa espécie de conformismo dos jornalistas também foi analisada por Breed (1993), através de seis vertentes que seriam causas para um comportamento avesso a conflitos entre os profissionais de um meio de comunicação. Segundo ele, o conformismo nas redações é gerado por conta da: 1) autoridade institucional, ou seja, o poder exercido pelo dono do jornal; 2) as sanções existentes no veículo; 3) os sentimentos de obrigação e até estima para com os superiores hierárquicos; 4) as aspirações de ascensão na carreira, que levariam o jornalista a pensar duas vezes antes de incorrer numa ‘desconformidade’; 5) falta de conflitos de lealdade; 6) pelo prazer da atividade exercida, ou seja, de trabalhar na imprensa.


Questões de ética e ‘cordialidade’

As relações de compadrio também são sentidas no jornalismo. Aquele profissional de redação que escapa – ou tenta escapar – da intricada rede de relações que se estabelece entre jornalistas, assessores de imprensa e instituições (públicas ou privadas) pode ser visto como excessivamente ‘caxias’ pelos companheiros. Apesar de presentes enviados a jornalistas - os jabás (2) - muitas vezes serem alvo de pilhéria, quem se nega a recebê-los de assessorias também se arrisca a ser taxado de demagogo, pelos companheiros de redação, e de descortês, por aqueles que enviaram o presente. Por outro lado, o assessor que não tem como costume tratar jornalistas com ‘cordialidade’, oferecendo-lhe com freqüência brindes e outras benesses, poderia não ser visto com bons olhos pelos jornalistas. Parece se repetir, em alguns círculos jornalísticos, o mesmo que acontece com o indivíduo (3) no país:

    No Brasil, [...] o indivíduo é também aquela identidade social que pertence ao mundo anônimo das massas. Pois o que significa renunciar ao mundo no Brasil e na Índia? Trata-se, em ambos os casos, de recusar um poderoso sistema de relações sociais. E isso, no caso brasileiro, conduz à rejeição da família, do compadrio, da amizade e do parentesco, deixando quem assim procede na situação de certos migrantes nossos conhecidos: inteiramente submetidos às leis impessoais da exploração do trabalho e ainda aos decretos e regulamentos que governam as massas que não têm «nenhuma relação» (grifo do autor) (DAMATTA, 1997: 23-24).

Quase semanalmente, «Jornal do Commercio» e «Diario de Pernambuco» trazem encartados, sem diferenciação tipográfica ou mesmo de estilo editorial, publicações pagas por instituições públicas e privadas, geralmente um resumo – em forma de reportagens – do que determinada empresa realizou num determinado período de tempo. Prefeituras e estatais são campeãs desse novo tipo de ‘serviço jornalístico’, que, não custa ressaltar, muitas vezes não vem identificado como material de cunho publicitário, e não poucas vezes é redigido, fotografado e editado pelos mesmos profissionais que fazem parte do corpo de jornalistas contratados desse veículo. Ou seja, os jornalistas que escrevem esses textos ‘encomendados’ são os mesmos que trabalham para levar ao público informações conseguidas através do trabalho diário de apuração. Cornu (1998) afirma que o ‘informe publicitário’ não tem qualquer relação com a deontologia do jornalismo, sendo apenas mais uma forma de fazer publicidade. Na medida em que o leitor não é informado desses detalhes, um caderno de notícias elaborado através de um contrato com uma prefeitura, por exemplo, pode passar ao grande público como algo que foi fruto do trabalho investigativo corriqueiro dos repórteres do jornal. É o que Marshall (2003: 41) classifica como “informação-publicidade”.

Partindo da visão do brasileiro como ‘homem cordial’, expressão utilizada por Buarque de Holanda, pode-se tentar explicar o «modus operandi» de parte do jornalismo contemporâneo. O sociólogo nos traz a compreensão dessa cordialidade como sendo elemento de formação da ‘alma brasileira’, e que tem sido responsável pela contribuição do esgarçamento das fronteiras entre o público e o privado.

    Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o “homem cordial”. [...] Seria engano que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante (BUARQUE DE HOLANDA, 2003 [1936]: 146).

O ‘jornalista cordial’, então, poderia ser definido como aquele profissional que, ao querer agradar a todos, acaba por não cumprir sua função social de investigador e responsável por levar informações do interesse dos cidadãos. No entanto, é necessário lembrar que certos comportamentos, como aquele que leva ao conformismo diante de uma política editorial, podem ter raiz na própria lógica organizacional nas redações (BREED, 1993). Mais do que uma 'cordialização', Marcondes Filho (2002: 59) preconiza o fim da atividade, a “desintegração” da figura do repórter. Enquanto esse fim anunciado do jornalismo não chega (e se é que chegará algum dia), pode-se sair em defesa dos jornais apontando páginas e mais páginas de informações postas à disposição dos leitores a cada edição diária. Esquece-se de dizer, contudo, que cada vez mais o jornalismo que se pratica nos jornais perde a função de conflito. Por mais incongruente que isso possa parecer, o que tem sido observado nos veículos é o distanciamento da prática da reportagem e da investigação dos fatos.

Trazemos novamente a figura do ‘jornalista cordial’ para ilustrar e tentar entender as novas características que o momento atual tem produzido na profissão. Numa apropriação da noção de ‘sociedade contra o social’, de Janine Ribeiro (2000), talvez possamos enriquecer a análise acerca da ‘cordialidade’ no jornalismo. Em obra homônima, ele defende a idéia de que os valores nacionais (brasileiros) batem de frente com o sentido do social, já que a manifestação das individualidades não tem como fim a obtenção de resultados coletivos. Continuando o paralelo com o jornalismo, acontece o mesmo – essa falta de preocupação com o coletivo – quando um jornalista privilegia seus ganhos pessoais em detrimento do bem informar o público. A troca de favores, o ‘toma-lá-dá-cá’ diário entre redações e assessorias – os famosos ‘jabás’ funcionando como moeda no mundo da informação jornalística – são exemplos de que há um quê de permissivo nas relações entre jornalistas e empresas. Cornu defende que os profissionais da informação, sozinhos, nunca serão vigilantes o suficiente para não cair nas ‘armadilhas’ dos presentes – os quais ele classifica como “verdadeira praga da profissão” –, já que as “empresas, sociedades e associações públicas prevêem esse tipo de vantagem miúda em seus orçamentos no campo da comunicação” (CORNU, 1998: 53).


Algumas conclusões: por menos acomodação

Na ponta da rota percorrida por jornais, repórteres e assessores, o único protagonista a desconhecer a prática parece ser o maior interessado, o leitor, que recebe seu jornal diário sem saber que uma quantidade considerável das informações que digere junto ao café-da-manhã foi produzida não nas redações, mas nas inúmeras assessorias de comunicação espalhadas pelo país. Mesmo podendo ter a noção de que uma ou outra matéria é de interesse do grupo controlador do jornal, ou dos aliados políticos do veículo, o leitor ignora solenemente que mesmo o comentário daquele colunista tão respeitado pode ter sido ‘soprado’ a ele por um profissional de assessoria.

Possivelmente por conta do próprio dia-a-dia dos jornalistas e da dinâmica de trabalho das redações, está sendo delineada uma burocratização ou acomodação dentro da prática jornalística. Acomodação esta que leva o repórter a não contatar as próprias fontes indicadas no «release» nem mesmo para confirmar as informações repassadas. Acomodação que instrui o profissional a não sair da redação para buscar notícias, a ficar na dependência apenas de fax, e-mails e, quando muito, telefonemas. Acomodação responsável por fazer o ‘cão farejador’ aposentar o faro e optar pela matéria pronta, embalada para presente. Acomodação que chega às raias da irresponsabilidade, pois faz alguém que é pago para apurar e escrever delegar esse trabalho a assessores de imprensa. Acomodação que leva o jornalista e atropelar ética e bom senso, quando copia integralmente um texto, chegando a assinar a matéria como se fosse de sua autoria. Essa acomodação diante do fato jornalístico é vista por Marcondes Filho como mais um reflexo do processo de desencanto impulsionado pelo fim da modernidade, o que levaria ao “desaparecimento [...] da política como embate, competição, confrontação radical” (MARCONDES FILHO, 2000: 15).

A revolução industrial e o advento do linotipo, em 1880, obrigaram o jornalismo a passar por mudanças (LAGE, 2002), já que os novos leitores começaram a exigir textos mais objetivos e menos opinativos. Talvez o caminho para a imprensa atual, cada vez menos avessa a conflitos e responsável pela mesmice dos temas abordados, seja uma transformação – severa, é verdade – nos hábitos profissionais dos jornalistas.

Checar a informação, ouvir os dois ou mais lados de uma história e duvidar sempre seria um bom ponto de partida. Poder-se-ia imaginar que seguindo esses preceitos básicos até não fosse necessária uma revolução das técnicas atuais de reportagem para sanar a situação. O simples cumprimento desses princípios que norteiam o jornalismo, os quais todo profissional sabe (ou deveria saber) de cor, como a preocupação com a veracidade das informações, o compromisso com o leitor e a boa e velha compulsão para ir atrás das notícias – características que ajudaram a construir o estereótipo da figura do repórter como o «cão farejador» (KUNCZIK, 2001) – parece ser um grande (re)começo.

 
__________________________________________________________________________
BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

BREED, Warren. “Controlo Social na Redacção. Uma Análise Funcional”. In: TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo: questões, teorias e "estórias". Lisboa: Vega, 1993.

BUCCI, Eugênio. Sobre Ética e Imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

CHINEM, Rivaldo. Assessoria de Imprensa: como fazer. São Paulo: Summus, 2003.

CORNU, Daniel. Ética da Informação. Bauru (SP): EDUSC, 1998.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma Sociologia do Dilema Brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1995 [1936].

KUNCZIK, Michael. Conceitos de Jornalismo: Norte e Sul: Manual de Comunicação. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.

MARCONDES FILHO, Ciro. Comunicação e Jornalismo. A saga dos cães perdidos. São Paulo: Hacker Editores, 2000.

MARSHALL, Leandro. O jornalismo na era da publicidade. São Paulo: Summus, 2003.

MORETZSOHN, Sylvia. Jornalismo em tempo real: O fetiche da velocidade. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

RIBEIRO, Renato Janine. A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SANTANA, Adriana. CTRL+C CTRL+V: O Release nos Jornais Pernambucanos [Dissertação de Mestrado]. Recife (PE): Universidade Federal de Pernambuco, 2005.

SILVA, Juremir Machado. A miséria do Jornalismo Brasileiro: as (in)certezas da mídia. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo, porque as notícias são como são. Florianópolis: Insular, 2004.

TRAVANCAS, Isabel Siqueira. O Mundo dos Jornalistas. São Paulo: Summus, 1993.

 
Trabalho apresentado no XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Santos, de 29 de agosto a 02 de setembro de 2007), e no VII Encontro dos Núcleos de Pesquisa em Comunicação (NP de Jornalismo).

(1) Dados levantados para a dissertação de mestrado CTRL+C CTRL+V: O Release nos Jornais Pernambucanos, defendida pela autora deste artigo em abril de 2005, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, sob orientação de Isaltina Mello Gomes.

(2) "Jabás" são presentes enviados a jornalistas. Nos casos mais sutis, são objetos de pequeno valor, viagens e algumas benesses. Nos mais grosseiros, suborno.

(3) O indivíduo aqui tem o sentido de pessoa que não faz parte de uma rede de relações, aquele que está por conta própria.

 
voltar