Artigo | edição 4 | Janeiro-Abril de 2009
A imagem da nação em Terra Estrangeira
 
Marina Soler Jorge |
 
Passados mais de dez anos do lançamento de «Terra estrangeira» (Walter Saller e Daniela Thomas, 1995), é interessante lembrar a importância do filme de Walter Salles e Daniela Thomas no momento em que chegou às telas de cinema, não apenas pela época em que foi concebido – quando o cinema brasileiro apenas começava a sair de seu estado de letargia pós-Era Collor – mas também pelo tema abordado, que nos remete a reflexões sobre identidade nacional, colonização, e que se relacionam ao sentimento de mal-estar e desesperança do início dos anos 90. No entanto, dada a qualidade do filme, a importância do conteúdo e as citações artísticas e cinematográficas que são empreendidas por Walter Salles e Daniela Thomas, «Terra estrangeira» ultrapassa sua época de lançamento, permitindo que façamos hoje reflexões sobre alguns de seus temas que tem se mostrado, em verdade, atemporais. Um destes temas é a idéia da nação, que tem, no filme em questão, uma forma imagética desesperançosa, como se os países no qual se desenrolam os dramas de seus personagens não pudessem desempenhar a função de pertencimento e identidade que, a princípio, como “nação”, deveriam desempenhar.

Podemos perceber isso logo nos créditos iniciais. Num fundo preto, surgem nomes em letras brancas pautados pela música melancólica de José Miguel Wisnik. Entre cada nome anunciado, as notas soam doloridas, e o intervalo entre elas nos suspende por um momento, como se cada compasso tivesse deixado escapar um instante a partir de agora perdido para sempre.

Estas notas parecem ao mesmo tempo algo lamentar em relação ao passado e já anunciar desesperançosamente o destino trágico dos personagens. Melancolia sonora inicial que tem como clímax o símbolo da República Federativa do Brasil sobreposto violentamente, como um carimbo num passaporte, ao nome do filme: «Terra estrangeir»a. Apesar de sabermos que o filme se passa sobretudo em Portugal, parece que não é esta a terra estrangeira enfocada pelo filme. Entrevê-se nos créditos iniciais, portanto, que estaremos diante de uma visão específica de Brasil: ele não é a nossa casa, mas um país estranho, onde não é possível se sentir abrigado e confortável, função de pertencimento fundamental entre as características atribuídas idealmente a uma nação que já de início parece negada pelo filme.

Esta terra estrangeira tem como seu primeiro plano a imagem desoladora do Viaduto Minhocão (ou «Elevado Costa e Silva», seu nome oficial), em São Paulo, provavelmente de madrugada. Num dos prédios que margeiam esta paisagem urbana paulistana deteriorada, vemos uma janela acessa, na qual vislumbramos discretamente o vulto de uma pessoa andando para lá e para cá. Ouvimos a voz de um rapaz declamar um texto (que saberemos depois se tratar de uma peça de teatro) e falar a si mesmo sozinho, refletindo sobre o que está lendo. A câmera se concentra em nos mostrar este prédio com suas inúmeras janelas indiferenciadas, formando um padrão. Sugere-se, nesta composição, que o rapaz em questão é um rapaz qualquer – poderia ser qualquer jovem de classe média baixa falando sozinho de madrugada. Ele é Paco, estudante de física que larga a faculdade para cultivar sonhos de se tornar ator de teatro.

O que veremos em «Terra estrangeira» são personagens que, não obstante os sonhos que cultivam, parecem ser levados à ação segundo as circunstâncias, mobilizados pelo contexto no qual vivem ou viviam. Mais especificamente, mobilizados pela falência de uma nação enquanto projeto superestrutural de integração e como lugar a oferecer perspectivas em relação ao futuro. Desta maneira, os sonhos individuais acabam por se tornar impossíveis.

Assim como Paco sonha ser ator de teatro, e para isso ensaia arduamente o texto de «Fausto», sua mãe também alimenta suas esperanças, que logo serão frustradas, primeiro pelo realismo de Paco, depois pela trajetória do país no qual ela vive.

Maria almeja voltar a ver a terra de seu pai, San Sebastian, no país basco, Espanha. É uma necessidade imperativa, da qual ela não consegue se livrar. Quando Paco lhe explica que, por causa dos juros altos praticados no Brasil, eles não podem pagar a viagem em prestações, ela procura explicar a necessidade que tem de voltar a ver sua terra de origem.

Teremos, já de início, a tematização de um desejo de volta à nação. Maria não se sente em identidade com o país no qual vive, uma terra estrangeira para ela. Ela não viverá para realizar seu sonho de voltar a San Sebastian. As condições históricas e objetivas do país no qual vive matarão seu sonho e, consequentemente, matarão a ela. Enquanto Paco assiste furtivamente e embevecido a um ensaio de «Hamlet», sua mãe, em frente ao aparelho de TV, assiste estarrecida à ministra Zélia Cardoso de Mello anunciar o bloqueio de todas as aplicações financeiras, incluindo a poupança, onde ela guarda suas economias.

Lado a lado, a seqüência do teatro de Paco e a morte da mãe são sintomáticas de uma falência intelectual da nação brasileira, que, segundo «Terra estrangeira», coincide, não por acaso, com o início do governo Collor. Paco, a partir de então, irá enveredar-se no caminho do crime, de início de maneira discreta mas acabando por ser fatalísticamente envolvido numa trama complexa, tendo de abandonar os sonhos artísticos que cultivava anteriormente. A cultura erudita, livre, arrebatadora como representada pela interpretação do «Hamlet» de Beth Coelho e pelo desejo de Paco, não é uma possibilidade dada a situação concreta da nação na qual vivem nossos personagens. A associação entre desejos artísticos falidos e/ou frustrados e a opção pelo crime – materializada agora em Paco e como veremos também em Miguel e Pedro – relaciona-se à falência intelectual e artística da sociedade brasileira, às difíceis condições pelas quais passam os artistas e aqueles que desejam seguir essa carreira num contexto social que faz com que a arte – e sobretudo a arte erudita – seja impossível.

Não sabemos exatamente quais as causas patológicas da morte de Maria, e parece importante que nada saibamos. Sua morte permanece então como uma alegoria da falência da nação a partir da morte de uma mãe. A morte da mãe é, portanto, a morte da nação, figura também feminina e materna, e marca o fim da esperança e o começo da derrota, não apenas de um país, mas da arte produzida nele. A meu ver temos aqui, na verdade, duas mortes, a do pai e a da mãe. O pai de Maria morre simbolicamente quando o confisco da poupança acaba com os sonhos de volta à terra natal. Como conseqüência segue-se a morte da mãe, Maria, agora não num nível simbólico mas fisicamente.

Há, porém, um outro nível de morte, paterna e materna: podemos associar a figura do pai ao Estado e a da mãe, como já fizemos, à Nação. Ao pai/Estado cabem os papéis relativos à manutenção da ordem, da autoridade, do poder hierárquico e impessoal, que desempenha a função de protetor e que deve prover materialmente seus filhos. Este papel, em «Terra estrangeira», está mal desempenhado. A figura investida do poder de Estado (o presidente da República) é um sujeito amedrontador de olhos flamejantes. A visão de Fernando Collor de Mello aciona nos espectadores brasileiros um passado de irracionalidade, demência e frustração. Um “pai” autoritário (o que é diferente de ter autoridade) que quis mal a seus “filhos”, enganando-os quanto ao que faria com o dinheiro deles. Um pai que, de certa forma, chegou a “roubar”, ainda que momentaneamente, as economias de seus filhos, construídas com muitas dificuldades em épocas de inflação. E um pai que não deixava de proclamar, efetivamente, que visava diminuir o papel do Estado, reduzir suas funções, deixando a seus filhos a missão de se auto-organizarem, os mais fortes vencendo os mais fracos (o chamado Neoliberalismo). À mãe/Nação cabem os papéis relativos ao acolhimento e abrigo, a função de pertencimento a um todo maior, de sentir-se bem e em casa, de transmissão de amor e de cultura (de nutrir portanto dos alimentos essenciais para o espírito), da proteção afetiva. Se o pai puder ser associado à idéia de sociedade e a mãe à de comunidade, temos aqui a morte de ambos. A morte da simbólica do Brasil enquanto sociedade – com desemprego, falta de perspectivas para os jovens, miséria – e enquanto comunidade – o que significa que os laços de identidade que une seus cidadãos, que deveria os manter visceralmente próximos, estão rompidos. Paco é o órfão nesta situação, o que o ambiente de extrema decadência externa e interna a seu personagem o filme procura explicitar.

Maria é enterrada num cemitério de concreto vertical, feito para quem não pode pagar por uma cova, e quando os homens que transportam seu caixão fecham a tampa da zimbra, a câmera permanece lá dentro. Somos enterrados junto com Maria, e como espectadores enclausurados, somos então imobilizados, encerrados num estado melancólico. Enterrados com Maria, símbolo aqui de nossa Nação, passamos então, como Paco, à condição de desterrados. Por enquanto em nossa própria terra, mas em seguida desterrados pelo mundo, mais especificamente em Portugal.

Num close da lista de candidatos ao teste de «Fausto» (quando ficamos sabendo efetivamente tratar-se do texto de Goethe), uma voz em «off» chama Paco: “O próximo... Francisco Eizaguirre”. Vemos seu rosto trêmulo e um tanto ausente em meio às sombras – num plano no qual a falta de transição entre os claros e escuros exacerba o aspecto desolador do personagem – e ouvimos as batidas de seu coração. Logo ficará claro que Paco não conseguirá dizer uma palavra, enquanto a voz distante do diretor insiste para que ele comece logo o teste. Uma gota de suor de seu rosto cai no chão e vemos na seqüência o rapaz caminhar desesperadamente pelas ruas de São Paulo, terminando sua trajetória sentado desoladamente no chão de uma estação de metrô, alheio ao que se passa a sua volta. Mais uma vez a arte e a “realidade” colocam-se lado a lado, na montagem de «Terra estrangeira», em detrimento daquela, numa sugestão de que o mundo das obras espirituais não se encontra afastado dos condicionantes mais imediatos. E, deste modo, a partir da associação entre o estado desolador de Paco e o cenário em seu entorno, vemos a impossibilidade da arte no contexto nacional em questão. Paco, antes um jovem aspirando uma carreira artística, encontra-se abandonado anônimo em meio à cidade que passa alheia à sua dor. Na próxima seqüência a decadência do personagem, bêbado num bar, continua, e ele torna-se alvo fácil de Igor, contrabandista de pedras preciosas que o leva a Portugal.

Durante toda a seqüência de acontecimentos envolvendo Paco e sua mãe no Brasil, «Terra» estrangeira mostra ao mesmo tempo a trajetória de um casal de brasileiros em Portugal, país que o jovem paulistano está prestes a conhecer. Em montagem paralela, os planos filmados no Brasil alternam-se aos filmados em Portugal. Há aqui um sentimento antecipatório ao fato de que, em algum momento, as trajetórias dos personagens no Brasil e em Portugal se cruzarão. Há também um paralelismo temático que a montagem constrói, mostrando as trajetórias do Brasil e de Portugal como parte de uma mesma nação derrotada, de um mesmo desejo de evasão, de um mesmo fracasso do projeto dos cidadãos de um país. Além, é claro, da exposição da idéia de que os acontecimentos narrados nos dois países são simultâneos. O Brasil deixará de aparecer no filme assim que Paco chegar a Portugal. A última imagem brasileira que vemos é a do aeroporto, onde Paco se prepara para viajar. O plano imediatamente anterior nos mostra também um brasileiro que vai partir: Miguel explica a seu amigo português Pedro (João Lagarto) que buscará sua mulher Alex e sairá de Portugal, partindo então para a “Europa”. Partir, abandonar um lugar ou abandonar-se, faz parte de certo “destino” português; conforme explica Pedro num dado momento a Paco:

«Isso aqui não é sítio para encontrar ninguém. Isto é uma terra de gente que partiu para o mar. É o lugar ideal para perder alguém ou para perder-se de si próprio».

A imagem da nação brasileira em «Terra estrangeira» está, então, relacionada à imagem da nação portuguesa, de modo que ambas são colocadas lado a lado a partir do ponto de vista de brasileiros desterrados. Para se pensar o Brasil parece fundamental pensar em Portugal, explicitando desse modo a decadência de duas nações ligadas por um passado colonial que, de maneiras diferentes, fracassaram: a falência do Brasil como “país do futuro” (e a morte de Maria é uma explicitação possível desse futuro não concretizável) e a falência de Portugal como um país preso a um passado de glórias que não mais se repetirão.

Fernando Pessoa está presente aqui como poeta do passado português ao mesmo tempo belo e tristonho, de conquistas e separações, nostálgico porque relacionado ao mesmo tempo às viagens longas e incertas e por invocar uma época em que Portugal era, junto com a Espanha, um país absolutamente central: “Ó, mar salgado, quanto do teu sal/São lágrimas de Portugal!/Por te cruzarmos, quantas mães choraram/Quantos filhos em vão rezaram!/Quantas noivas ficaram por casar/Para que fosses nosso, ó mar!/Valeu a pena? Tudo vale a pena/Se a alma não é pequena” (3). Pessoa aparece na figura de Pedro, personagem dado a frases “poéticas” («nada é definitivo nessa vida, nem a dor»), e que, conforme o dono do Hotel dos Viajantes informa a Igor, é parecido com o poeta:

«Era um português mais ou menos da sua idade, talvez um pouco mais baixo. De cabelo preto, já com grandes entradas. Sobrancelhas grossas. Assim... um tipo meio intelectual... com óculos redondos, à Fernando Pessoa».

Nesse sentido, é de se notar a diferença que marca no filme a paisagem de Portugal e a brasileira. De alguma forma é como se o Brasil mostrado não comportasse uma «tradição», preso que está às contingências do presente. Ao contrário, portanto, de Portugal, preso ao passado, invocado como nação que se lançou ao mar e que desde o fim da era das navegações não conseguiu mais “fazer parte” da Europa. A história brasileira narrada no filme está ligada ao acontecimento imediato, ao instantâneo (4) – à Era Collor – e quando nos voltamos para o passado nacional é para localizá-lo enquanto território colonial, relacioná-lo portanto à tradição de Portugal. Isto aparece na diferença de tratamento que é dispensado aos planos filmados em Portugal e no Brasil. Ao Brasil são relegados planos desoladores e associados a uma degradação urbana. Cartazes de propaganda envelhecidos poluem o ambiente, há o barulho de sirenes de polícia e ambulância (barulho que nos causa apreensão, antecipando tragédias) e também de televisores anônimos ligados enquanto Paco anda nas ruas. Ele quase tropeça em um mendigo e desvia de um catador de lixo. Portugal, por outro lado, tem o mar, navios melancolicamente apitando ou poeticamente encalhados, e suas ruas têm aquele aspecto de antigüidade e História que tende a encantar o brasileiro, privado que está da vivência em grandes cidades “históricas”.

A degradação do Brasil não está apenas na cidade, mas no apartamento de Paco após a morte da mãe, quando lixo, cartas e louças sujas começam a se acumular. A cidade degradada nos relaciona ao Estado degradado, o que por sua vez nos remete à degradação da nação, representada simbolicamente por aquilo que está relacionado a Maria. Esta degradação generalizada nos sugere uma lacuna histórica, um desligamento da experiência do presente com aquela do passado, típica de um país que sempre está para ser construído. Isso não ocorre em Portugal. As imagens deste país nos sugerem uma cultura na qual passado e presente estão intimamente ligadas, na qual, justamente, a experiência do passado de certa forma condiciona o presente (e aí o mito de Sebastião faz todo o sentido...). O apartamento de Pedro é, por exemplo, um acúmulo do passado, cheio de quadrinhos na parede e livros antigos. No entanto, em «Terra estrangeira», esse acúmulo de cultura e de passado não leva a nada, na medida em que Portugal também é enfocado, segundo penso, como um país no qual os desejos e projetos também não podem ter prosseguimento, um país parado no tempo e afastado da “Europa”.

A nação portuguesa, porém, que é vista através das lentes de «Terra estrangeira» como um lugar belo e ligado ao passado, também é um lugar de impossibilidade da arte. Paco está lá para ser contrabandista, e não para realizar seu sonho de ser ator de teatro. Miguel, enquanto não consegue viver de sua música, vai se virando imerso no mundo do crime. Até Pedro, violinista e amante dos livros e da música, nos dá a entender que também já teve relações, talvez bem íntimas, com Igor. O corredor de seu apartamento, no qual Paco e Alex brigam em meio a quadros que vão caindo das paredes, também é de certa forma um retrato de uma cultura acumulada mas que ali parece estar descontextualizada e inutilizada. E Portugal também é um lugar de preconceito, já que lá brasileiros passam por dificuldades financeiras e angolanos são discriminados. Os dois primeiros planos filmados em Portugal mostram justamente Alex e Miguel sofrendo rejeição na atividade que desempenham – ela porque é brasileira, ele porque não quer dar ao público a música que o público quer ouvir.

Assim como Miguel, Paco também fracassou em seu desejo de sobreviver como artista. A arte “autêntica” ou erudita, tal como Paco e Miguel desejam fazer, não habita um mundo à parte em relação ao mundo “real”, ao imediato, à economia, à política e ao medo do futuro incerto, e é justamente por isso que a arte se torna impossível diante da falência da nação. Miguel, que quer manter sua arte “pura” da contaminação da cultura de massas, é um dependente de drogas e está envolvido com o crime internacional, e portanto não está caracterizado como vítima, mas como alguém enfiado até o pescoço com o mundo “concreto”, com a situação imediata.

Paco falha em seu teste de teatro porque o desejo de elevar-se via cultura erudita não é imune à tragédia social de um país. A arte não imediatamente comercial não pode sobreviver à falência de uma nação. Em «Terra estrangeira», a meu ver, existe uma tendência a apresentar a cultura erudita e a não-contaminação do artista pelo gosto comercial de maneira positiva. Os personagens de Paco e Miguel, não obstante as relações que estabelecem com o mundo do crime, são tipos com os quais nos identificamos, provavelmente, segundo penso, em decorrência da situação difícil pela qual passam e pelos desejos artísticos que carregam.

A cidade de Lisboa, que será abandonada, parece ser efetivamente um lugar com o qual os personagens em trânsito não têm vínculos. Paco está nela de passagem (para San Sebastian) e nada em Alex nos dá a impressão de que algum motivo especial a prenda lá. Ambos estão disponíveis para a mudança. Na verdade, o casal não tem vínculo com lugar nenhum, nem com o Brasil. Ele não quer voltar para seu país de origem e nem sente saudades ou nostalgia, como dirá:

«Voltar para o Brasil? Eu não vou voltar para o Brasil! Eu não quero voltar para o Brasil! Eu não tenho nem como voltar para o Brasil!»

Ela, durante a viagem, manifesta algum desejo de voltar para casa, mas é um desejo tão pouco fundamental que ela nem sabe o que seria sua casa, ou seja, ela não tem um lugar para onde efetivamente queira voltar, algum lugar que cumpra a função precisa de lar:

«Paco – Onde é que é a tua casa?»

«Alex – Boa pergunta. Sei que aqui não é, né? Sei lá, viu? Moema, Duque de Caxias, Mooca... Acho que eu ficava feliz até se morasse debaixo do Minhocão, viu?»

A presença do cinema de Glauber Rocha faz-se notar em «Terra estrangeira», mas agora a discussão que havia no pré-golpe sobre a possibilidade de revolução («o sertão vai virar mar») transforma-se em desânimo diante das incertezas quanto ao futuro. Não há o plano do mar, que em Glauber Rocha funciona como um futuro qualquer (ainda que indeterminado), e a esperança da transformação social está ausente. Esperança, «hope», resume-se a um outdoor de calcinhas ao lado do Viaduto Minhocão. A referência ao Cinema Novo torna-se nostálgica porque lhe falta esperança e também a presença de algo que está por vir. É o que a morte de Paco parece nos anunciar – ou melhor, não anunciar, pois ela nada antecipa. René Gardies escreve sobre os personagens de Glauber Rocha: “O herói glauberiano será o homem da passagem. Com ele morre um mundo, um outro toma forma” (BERNARDET, 1991: 50). Paco morre sem que nenhum outro mundo possa ser vislumbrado; nem a mera possibilidade da existência de uma outra coisa qualquer está presente. Ainda que Glauber Rocha cale-se sobre o que está por vir, silenciando-se sobre o que há entre os planos do sertão e o do mar e prevendo apenas que algo virá (pensando aqui em «Deus e o Diabo na Terra do Sol»), em «Terra estrangeira» não temos nem esta previsão. E ainda que Alex permaneça dizendo, diante da figura moribunda de Paco, que eles estão indo para casa, a letra e a melodia de «Vapor Barato» colabora para um sentimento de desistência.

Esta casa mencionada por Alex seria a cidade de San Sebastian? Há, acredito, uma centelha de utopia no carro que corre em direção à capital basca, uma utopia que é entrevista na forma como Alex, diante da visão do barco encalhado na praia, abraça Paco e decide satisfeita: «Vamos embora para San Sebastian, Paco». Seria, porém, uma utopia invertida em relação ao paraíso imaginado pelos conquistadores da era das navegações, que acreditavam que o Eldorado estivesse localizado no Novo Mundo. Mas esta utopia de San Sebastian, como saberemos, não se realiza. O casal provavelmente não chegará ao país basco.

Também não vimos Manuel, o vaqueiro de «Deus e o Diabo na Terra do Sol», chegar ao mar. Mas ele continua correndo, e o plano seguinte nos mostra um longo «travelling» do mar. Glauber Rocha parece saber qual é o ponto de partida e o ponto de chegada para a transformação, ainda que se cale quanto ao caminho que conduz um a outro. O final de «Terra estrangeira», ao contrário, não se pronuncia quanto ao futuro, e o caminho está já de antemão condenado, na medida em que Paco provavelmente não sobreviverá. A sensação é de uma grande derrota. Uma derrota não apenas individual mas, principalmente, uma derrota nacional.

A música que ele executa no violino dado por Alex é um fado. O filme se encerra, portanto, com o som que corporifica o destino, e aqui, ao vermos o fim que foi dado ao instrumento e às pedras, pisoteadas por transeuntes, temos a sensação de que esse destino, incluindo toda a trajetória de Paco, é completamente desprovido de sentido. Não há lição a ser apreendida, não há esperança no futuro colocada, Paco morreu cumprindo uma trajetória de fracassos, e o contrabando, que o colocou no caminho de sua trágica história, está anônimo e destruído em alguma estação do metrô de Lisboa. «Terra estrangeira» procura, a nosso ver, trazer uma discussão sobre a nação brasileira em seu passado recente e remoto, e, nesse sentido, desesperançosamente recusa-se a apresentar uma visão de futuro.

 
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BERNARDET, Jean-Claude & GOMES, Paulo Emílio Salles (orgs.). Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991 (Coleção Cinema).
 
(1) Este trabalho é resultado de pesquisa de doutorado defendida na USP em abril de 2007 e financiada integralmente com os recursos da Fapesp. Texto originalmente apresentado no X Encontro da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE, 2006).

(2) Doutora em sociologia pela USP e pós-doutoranda em sociologia pela Unicamp.

(3) Segunda parte do poema de Fernando Pessoa «A mensagem», intitulada “Mar português”.

(4) Este “instantâneo” surge, por exemplo, nas imagens de Fernando Collor e da ministra Zélia vistas através da televisão de Maria, ou seja, imagens que “colam” o filme ao aqui e agora, que contextualizam com precisão o tempo histórico do filme.

 
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