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Quando a violência entra em campo

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A importância de dormir bem

 

Isabela Morais

Futebol

 Seja em sua forma física, direta, dissimulada ou administrativa, violência no futebol torna o Brasil campeão de um título vergonhoso

“As mortes não estão diretamente vinculadas aos jogos.”

 No início do primeiro tempo, Marcos Assunção soltou uma bomba de fora da área. A bola, alta e rápida, desviou nas costas do zagueiro Leandro Castan, confundindo o goleiro adversário. Rente ao travessão, no meio do gol, ela encontrou destino certo no fundo da rede. No dia 25 de março de 2012, aos 17 minutos de jogo, o placar do estádio do Pacaembu inaugurava “Palmeiras 1 x 0 Corinthians”, enquanto a torcida enlouquecia. Porém, quatro torcedores, apaixonados pelos times em campo, não puderam acompanhar a emocionante partida, que acabou em uma virada de três gols do time alvinegro. André Alvez, de 21 anos, e Guilherme Vinícius Jovanelli Moreira, de 19 anos, horas mais cedo, foram mortos em um confronto entre torcidas, que deixou outros dois feridos. O caso engrossa as estatísticas reveladas por uma pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) de 2009, que tornam o País o campeão mundial em mortes relacionadas ao esporte.

De acordo com o jornalista André Luís Nery, autor do livro Violência no futebol – Mortes de torcedores na Argentina e no Brasil, fruto de sua tese de doutorado pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina (Prolam), a partir dos anos 2000, a violência no futebol brasileiro passou a registrar números preocupantes: “Na década de 1990, houve pouquíssimos casos de mortes, geralmente restritos a São Paulo e Rio de Janeiro. Mas nos anos seguintes, a violência se espalhou para todos os Estados”, conta. No estudo, ele traça uma radiografia do tema por meio do levantamento de dados de jornais do Brasil e Argentina, de 1992 a 2012. Os resultados mostram que durante 20 anos ocorreram 133 mortes de torcedores brasileiros, vítimas de enfrentamentos entre torcidas adversárias e acidentes em estádios. Os últimos cinco anos têm sido os mais violentos: só de 2007 a 2011 foram registrados 73 óbitos, cerca de 54% do total.

“É comum pensar se morreu um da nossa torcida, temos que matar um de lá.”

De acordo com Nery, o aumento da mortalidade tem sido acompanhado por uma tendência: a diminuição dos conflitos dentro dos estádios e o aumento de agressões em cenários afastados da cena futebolística. “As mortes não estão diretamente vinculadas aos jogos. Em Alagoas, por exemplo, um torcedor do CSA foi morto a tiros por um torcedor do time rival, o CRB, em um ponto de ônibus. No Rio de Janeiro, torcidas chegaram a marcar uma briga para uma partida de basquete, simplesmente porque estava em jogo a mesma rivalidade dos campos”, diz.

Mais da metade dos óbitos, 59,4%, foi ocasionada por armas de fogo. A segunda causa são agressões e espancamentos, geralmente com barras de ferro e paus, que representam um total de 15,8%. “O confronto entre torcidas acontece em todos os países. Mas no caso específico do Brasil há o acesso fácil a armas de fogo. Em 2011, das 20 mortes ocorridas, 17 foram causadas por esse tipo de armamento. Quando as brigas deixam mortos, o caso ganha destaque na imprensa e o problema se amplifica”, lamenta.

De acordo com André Luís Nery, os conflitos entre torcidas têm aumentado em locais não relacionados ao jogo de futebol

E o que move tanto ódio entre torcedores adversários? Para o jornalista, a principal motivação é a vingança. “É comum o pensamento de ‘se morreu um da nossa torcida, temos que matar um de lá’. Muitas vezes, as pessoas nem são ligadas diretamente àquelas que faleceram, mas elas buscam a retaliação.”

Já o psicólogo social Felipe Tavares Paes Lopes, que no início do ano defendeu a tese de doutorado “Discursos sobre violência envolvendo torcedores de futebol: ideologia e crítica na construção de um problema social” no Instituto de Psicologia (IP), acrescenta que as causas da violência no esporte não são simples nem superficiais e é preciso, antes, traçar um diagnóstico adequado do assunto. “A violência direta e física entre torcedores pode ser tanto espontânea (como aquela que ocorre, por exemplo, no calor de uma discussão) como previamente arquitetada. Em geral, sobre essa última, que tem sido mais comum, sustenta-se que ela é fonte de prazer, de status e identidade social para os que dela participam, pois a esses isto seria invariavelmente negado nas esferas educativas e ocupacionais”, explica.

Porém, de acordo com Lopes, existem diversos tipos de violências praticadas contra o torcedor que podem determinar os confrontos entre adversários. “Há o abuso policial, a falta de infraestrutura dos estádios e, até mesmo, a cobertura midiática, que, além de ‘botar lenha na fogueira’ em véspera de grandes jogos, pode estar atraindo pessoas mal-intencionadas para os estádios. Tampouco podemos nos esquecer do processo de elitização pelo qual passa o esporte, o que é expresso, por exemplo, numa política deliberada de aumento do preço dos ingressos. Isso exclui grande parte da população brasileira do espetáculo futebolístico, reduzindo as possibilidades de lazer das classes economicamente menos favorecidas”, analisa.

 

Felipe Tavares Paes Lopes defende que a extinção das torcidas organizadas não é medida eficaz para a diminuição dos episódios de violência

Torcidas organizadas

 Em maio, o Ministério Público (MP) de São Paulo entrou com ações civis públicas na Justiça solicitando a dissolução de seis torcidas organizadas de futebol, com a justificativa de que elas teriam se envolvido em atos de violência. De acordo com o promotor de Justiça Roberto Senise Lisboa, autor da ação, os confrontos recentes entre as agremiações Gaviões da Fiel (Corinthians), Mancha Alviverde (Palmeiras), Serponte e Jovem Amor Maior (Ponte Preta), e Guerreiros da Tribo e Fúria Independente (Guarani) teriam deixado dois mortos e um ferido.

É justamente essa relação entre a violência e as torcidas organizadas que foi o alvo da pesquisa do psicólogo. Ao estudar o debate público sobre o assunto, ele concluiu que os discursos enunciados defendem pontos de vista estigmatizantes desses grupos. “Não digo que não existam segmentos violentos dentro das torcidas organizadas, mas existe um processo de condenação a esses grupos levado a cabo pela imprensa que funde a imagem do torcedor à do torcedor violento em uma mesma figura. Essa associação é certamente simplista, dissimuladora e abusiva”, conta.

Da própria condenação, surge outro fator que aumenta a violência no esporte. “Essa estigmatização é uma forma de violência brutal, porque os nega, os repudia, os rechaça, enfim, os desumaniza e destrói a possibilidade de se ter empatia e se estabelecer laços solidários com eles”, critica. Já de acordo com Nery, o comportamento violento de alguns em meio a um cenário geral de paixão por um time tende a se manifestar, principalmente, pela impunidade. Ele diz: “Os casos de agressões e mortes acontecem e são rapidamente esquecidos. A grande maioria deles termina sem culpados e sem punições”.

Tanto o jornalista quanto o psicólogo são enfáticos ao afirmar que a dissolução das torcidas organizadas de futebol não é um método eficaz para acabar com a morte de torcedores. Para Lopes, a medida exclui os mecanismos de pressão dentro do futebol profissional que se posicionam contra o processo de elitização do esporte e destrói um importante meio de comunicação entre o Estado e a juventude. Já Nery afirma que a atitude, a longo prazo, pode até mesmo aumentar a violência. “É muito mais fácil identificar os indivíduos violentos, aqueles que organizam brigas ou andam armados em um grupo determinado. Há, com certeza, uma parcela de pessoas que participa das torcidas utilizando o futebol apenas como pano de fundo para atividades ilícitas. Mas a grande maioria, principalmente os jovens, participa por paixão”, diz.

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