Angelita viveu parte da infância no ambiente bucólico da Ilha do Marajó.
Integrante do time de vôlei da Faculdade de Medicina, Angelita vestia a camisa número 11.
Angelita com o padrinho de casamento Alípio Correia Neto, em 1964.
1985: Angelita chega ao Hospital das Clínicas de São Paulo, onde estava internado o recém-eleito presidente Tancredo Neves. A médica fez parte do corpo clínico que o atendeu em seus últimos dias de vida.
Em setembro de 2006, Angelita recebeu, das mão do governador Cláudio Lembo, a mais alta homenagem concedida pelo Estado de São Paulo: a Grã-Cruz da Ordem do Ipiranga. |
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“O maior privilégio da vida é descobrir o que você gosta de fazer.” Se existe alguém com autoridade para fazer tal afirmação, essa pessoa é Angelita Habr Gama. A médica pronuncia essas palavras do alto de uma vida inteira dedicada com brilhantismo à profissão que tanto ama. Pioneira e muito competente em tudo que fez e faz, Angelita é uma das cirurgiãs mais premiadas e reconhecidas de sua área, nacional e internacionalmente.
Filha de libaneses, Angelita nasceu na Ilha do Marajó, no Pará, onde viveu até os 6 anos de idade. Lá começou sua alfabetização, que seria o alicerce da vida de muito estudo que estava por vir. “Como morávamos na Ilha, eu e meus cinco irmãos íamos de canoa à escola”, rememora. Após a morte de um dos filhos por apendicite aguda, seu pai, Kalil Nader Habr, resolveu vender tudo o que conquistara desde sua chegada ao Brasil – os búfalos, a fazenda – e se mudar para São Paulo, onde haveria mais recursos para cuidar da saúde de toda a família.
Na capital paulista, Kalil Habr montou uma mercearia em frente à estação dos bondes da Vila Mariana e comprou uma casa na Praça da Árvore, onde parte da família mora até hoje. Angelita realça as mudanças ocorridas desde então: “Naquela época, o local era absolutamente deserto. Hoje a casa fica em frente à estação do Metrô”.
“Atirada, trabalhadora e boa aluna”, Angelita não tinha dificuldades nos estudos. Sempre enfrentou com sucesso os processos seletivos para ingressar nas ótimas escolas públicas de então. Dessa forma, fez o primário e o ginásio no Instituto de Educação Caetano de Campos e o colegial no Colégio Estadual Presidente Roosevelt. Nesse período, também descobriu seu talento para o vôlei e fundou com as colegas de classe um clube chamado Adamus, existente até hoje.
Em 1951, clube, colégio e antigos amigos tiveram que ser deixados para trás. O ingresso na Faculdade de Medicina da USP (FM/USP) dava início a um novo ciclo da vida de Angelita, durante o qual ela manteve o dinamismo habitual: estudava o dia todo, fazia aulas de natação na atlética, participava de competições de vôlei pela faculdade, era integrante – a primeira do sexo feminino – do “show da medicina” (apresentações lúdicas utilizando os conhecimentos adquiridos na faculdade), e ainda arrumava tempo para sair com os amigos: “A vida de faculdade é de muito estudo, mas também é muito divertida. Tínhamos muitas atividades, como bailinhos uma vez por mês, e meus colegas de turma eram fantásticos”.
A partir do terceiro ano, assim como seus colegas de classe, Angelita passou a freqüentar os diversos departamentos da medicina, a fim de descobrir a área que mais lhe agradava. Foi quando se apaixonou pela cirurgia e se tornou pioneira: “Fui a primeira mulher a fazer residência nessa área. A cirurgia naquela época era quase que reservada para os homens. As mulheres iam mais para pediatria, ginecologia, obstetrícia, clínica médica”. Em seguida, especializou-se em cirurgia do aparelho digestivo, campo em que atua até hoje.
Por ser uma das poucas mulheres cirurgiãs da época, Angelita viveu algumas situações inusitadas: “Às vezes eu estava atendendo o doente, examinando-o, e quando chegava a hora de operá-lo ele perguntava – Cadê o médico, quem vai me operar, que horas vai chegar o cirurgião?”.
No início dos anos sessenta, com o apoio da Cultura Inglesa e da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), Angelita conseguiu uma bolsa para fazer seu pós-doutorado no St. Marks Hospital de Londres, único hospital da época que lidava com doenças de intestino, reto e ânus. Assim como no Brasil, Angelita também foi pioneira na Inglaterra: “Levou um tempo para eles me aceitarem, pois lá também só havia homens”.
Daí em diante, a já bastante atarefada rotina de Angelita foi se tornando cada vez mais cheia. Isso explica porque, embora seja casada desde 1964, ela não tem filhos. O marido, Joaquim José Gama Rodrigues, também era médico e, assim como ela, se tornaria livre-docente da Faculdade de Medicina da USP. “A vida inteira tivemos um ritmo muito puxado. Quando durmo muito, são seis, sete horas por noite”.
Apesar disso, o casal Gama tem uma vivência familiar constante: “Nossa família é grande, temos muitos sobrinhos formidáveis. Eles participam de toda a nossa vida, nos ajudam, e nós também participamos da vida deles”. E é geralmente com os sobrinhos que Angelita e Joaquim têm seus momentos de lazer. A médica adora cinema, mas adverte: “Só não gosto de filme muito barulhento, de guerra, pois não faz sentido para mim. Gosto de filmes que têm enredo”. Jantar fora e assistir a teatros e concertos musicais são outros programas que ela procura fazer quando sobra um tempinho, o que nem sempre acontece. “A vida da gente é muito atarefada, mas, em compensação, somos muito gratificados, nosso trabalho é gratificante.”
Angelita aproveita o tempo como ninguém: “O pessoal me pergunta, você gosta de aeroporto e eu digo que adoro. O avião pode atrasar que eu não estou nem aí, basta que eu tenha um livro e um lápis. Assim passa qualquer tempo de espera”. Leitora assídua desde criança, a cirurgiã já leu de Sherlock Holmes a Nietzsche.
Primeira mulher a se tornar professora titular em
Cirurgia no Departamento de Gastroenterologia da Faculdade
de Medicina da USP, Angelita aprimorou técnicas
cirúrgicas e foi importante na estruturação,
desenvolvimento e avanço da coloproctologia
no Brasil. Atualmente, é livre-docente da FM/USP,
supervisora da equipe médica de cirurgia do
Hospital das Clínicas, cirurgiã do Hospital
Alemão Oswaldo Cruz, dona de uma clínica
e presidente da Associação
Brasileira de Prevenção do Câncer
do Intestino (Abrapreci), entre outras atribuições.
Pelo trabalho desenvolvido na Universidade e por sua luta pela prevenção e tratamento do câncer de intestino, Angelita recebeu, em setembro de 2006, a mais alta homenagem concedida pelo Estado de São Paulo: a Grã-Cruz da Ordem do Ipiranga, entregue pelo governador Cláudio Lembo. Alguns meses antes, a médica já se tornara a primeira especialista latino-americana a ganhar o título de Membro Honorário da Associação Européia de Cirurgia pela carreira médica, prêmio só dado a 17 médicos no mundo até hoje.
Viver a vida da melhor maneira possível é algo que Angelita sempre valorizou: “Os médicos têm a oportunidade de, vendo a morte, aprender a viver melhor, pois a morte é a única coisa verdadeira na vida, é natural. O melhor dessa vida é você estar bem com você mesmo, fazendo o que acredita ser correto, sem prejudicar ninguém”. |