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As mulheres nas brechas do esporte e dos Jogos Olímpicos

Segundo a autora italiana Teresa de Lauretis, para que seja possível desconstruir o conceito de gênero, é preciso encontrar uma visão a partir de um outro lado, desafiando o sistema estabelecido, que é baseado em narrativas masculinas.

Isso quer dizer, para a autora, “espaços nas margens dos discursos hegemônicos, espaços sociais entalhados nos interstícios das instituições e nas fendas e brechas dos aparelhos de conhecimento-poder […], nas práticas micropolíticas da vida diária e das resistências cotidianas que proporcionam agenciamento e fontes de poder ou investimento de poder; e nas produções culturais das mulheres, feministas, que inscrevem o movimento dentro e fora da ideologia, cruzando e recruzando as fronteiras – e os limites – da(s) diferença(s) sexu(ais).”

Se pensarmos na história da mulher no esporte, é possível perceber que esta ideia de Lauretis está presente na forma como as mulheres ocupam os espaços esportivos e na desconstrução que elas fazem sobre os papéis e ideais de gênero.

Foi justamente a partir das fendas institucionais e a partir de movimentos de resistência que as mulheres conseguiram participar dos Jogos Olímpicos, tanto na Grécia Antiga, como na modernidade.

Na antiguidade, os Jogos Olímpicos eram exclusivos para cidadãos gregos, ou seja, as mulheres não podiam participar do evento. Nas competições de hipismo, no entanto, donos de cavalos pagavam para que outras pessoas comandassem suas carruagens, mas eram eles quem ficavam com a premiação. Assim, mulheres que tinham cavalos (o que acontecia geralmente na elite da época) conseguiam se inscrever nas competições, e até mesmo chegaram a vencer corridas. Porém, vale ressaltar que, como não podiam entrar nas arenas, elas também acabavam não recebendo os prêmios.

Assim como na antiguidade, as mulheres foram excluídas da primeira edição dos Jogos Olímpicos modernos. O seu fundador, o Barão Pierre de Coubertin, era contra a participação delas em competições públicas. Apesar de tal objeção, o Comitê Olímpico Internacional tinha pouco controle sobre a organização dos Jogos, que ficavam a cargo das cidades-sedes. Foi assim que as mulheres conseguiram participar das Olimpíadas a partir de 1900.

Como na Europa e nos Estados Unidos elas já praticavam algumas modalidades, como tênis, golfe e tiro com arco, os organizadores das cidades-sedes colocaram estes eventos nas agendas de competições. Diferentemente de outras modalidades, que eram consideradas incompatíveis com a “natureza da mulher” por serem muito físicas, estas eram vistas como adequadas a elas.

Dessa forma, pouco a pouco elas foram conquistando espaço nos Jogos Olímpicos modernos. A partir de mudanças sociais que foram ocorrendo ao longo das décadas que permitiram que várias fronteiras de gênero fossem sendo cruzadas, as mulheres foram de 22 participantes em Paris 1900 para 5455 atletas em Paris 2024.

Mas mais importante do que a participação nos Jogos Olímpicos por meio de tais brechas, é a participação das mulheres no dia a dia da prática esportiva, ou seja, em atividades da micropolítica diária, que ajudam a ultrapassar os limites das diferenças de gênero.

Se voltarmos ao século XIX, andar de bicicleta era considerado algo masculino na Europa, e as próprias vestimentas das mulheres inviabilizaram esta atividade. Isto até que Libby Miller inventou em 1851 a bloomer, uma calça larga inspirada em vestimentas asiáticas e do Oriente Médio que permitia maior liberdade de movimentos. Apesar de não ser considerada uma roupa apropriada para mulheres, muitas adotaram o uso das bloomers, que permitiam a prática esportiva, mas principalmente que elas se locomovessem pelas cidades de bicicleta, dando-lhes maior independência.

Se pensarmos em situações mais contemporâneas, é possível perceber que essas formas de resistência citadas por Lauretis ainda estão presentes no cotidiano. A pesquisadora e professora Enny Moraes dá exemplos que vão desde o ambiente amador ao nível profissional de meninas e atletas que são desestimuladas e enfrentam diversas barreiras, mas que persistem em jogar.

Ela cita campeonatos de futebol feminino que não tem nenhuma estrutura (como água, transporte e uniformes) para que as meninas possam jogar, algo que não acontece no caso dos meninos. “Estou falando de uma realidade de Alagoinhas, no interior da Bahia. Mas aí quando você vê uma coisa escandalosa, como aconteceu agora na CONMEBOL [com a Libertadores feminina(1)], de jogos condensados, de um tempo mínimo, e as meninas foram exaustas para o final da competição. Parece que é no intuito de dizer assim ‘olha, vamos ver se elas aguentam. Se não, é isso aqui que a gente tem e acabou. Se não quiserem, não participem, não joguem’”.

Para Moraes, mesmo com tais dificuldades, o esporte é um espaço de resistência, coletividade, solidariedade e reconhecimento para as mulheres. Isso se choca justamente contra os padrões de gênero hegemônicos e estabelecidos, e assim elas vão lutando e conquistando seus espaços pelas brechas esportivas.

* Thaís May Carvalho é jornalista e mestranda pelo PPGCom da ECA-USP

REFERÊNCIAS

(1) Ramos, Emiliana. Cadê o respeito às minas?  São Paulo, Jornalismo Esportivo da ECA-USP, 20 de outubro de 2024.
https://www.usp.br/esportivo/?p=4644
Acesso em 7 de dezembro de 2024