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Com coletes azuis, mochilas nas costas e muita disposição para andar, as 36 agentes comunitárias da Unidade Básica de Saúde saem às ruas, desde fevereiro de 2003, para visitar cerca de 24 mil pessoas que vivem no Jardim São Jorge, na zona oeste da cidade de São Paulo. É junto com essa equipe que se desenvolvem as atividades práticas dos alunos da disciplina Atenção Primária à Saúde, da Faculdade de Medicina da USP. Os estudantes aproveitam para reconhecer o território, afinal as agentes são moradoras e conhecem cada beco e ruela do bairro.


Com a agente comunitária Shirlei Barbosa, Lucas Chaves Neto, aluno do primeiro ano da Faculdade de Medicina, nascido em Dourados, no Mato Grosso do Sul, foi visitar a residência de José Aureliano Teixeira, de 74 anos. Internado por problemas de coração, Teixeira ouve atentamente as perguntas da agente Shirlei, que solicita os exames para levar à médica da Unidade Básica de Saúde, já que ele não pode andar muito, – “senão dá uma dor muito forte que perco a noção”, murmura. Enquanto isso, Lucas presta atenção nos detalhes e na conversa que chega até as lágrimas, pois Teixeira não se conforma de ter perdido a mulher, há um ano.
Depois de consolá-lo, Shirlei sai pelas ruas cumprimentando e dando atenção a todos que a solicitam pelo caminho. “Quando comecei este trabalho de agente, não gostava de sair pelas ruas. Hoje me sinto importante para essas pessoas. É gratificante saber que tem gente que precisa de você e que você pode ajudá-las.”

Para Lucas, a medicina comunitária sempre foi uma meta, mas mesmo assim surpreendeu-se nas primeiras visitas. “A primeira vez que entrei em contato com a comunidade fiquei supercurioso. Conhecer as peculiaridades do local, com as agentes, é muito importante. Com elas podemos visitar as famílias e saber como elas vivem em suas casas, verificar se há creches na região, áreas de lazer. Hoje tenho mais noção de como é viver num bairro carente e quais são as suas reais necessidades”, afirma.



Em reuniões, os alunos discutem com a equipe da saúde da família (médico, enfermeiro e agentes comunitários) os pontos levantados durante as visitas e depois fazem propostas para melhorar a situação. Já a equipe é supervisionada por docentes dos departamentos da Faculdade de Medicina. Toda a questão teórica e acadêmica é discutida pelos docentes com as equipes e com os alunos.

Mais atenciosos

Para a casa do senhor José Bispo dos Santos foi o médico de saúde da família Gustavo Gusso e a agente comunitária Maria Gersina da Cruz. No caminho, o médico vai contando que os moradores gostam mais desse tipo de atendimento. “Somos mais atenciosos e ouvimos mais os pacientes.” Gersina diz que muitas vezes os pacientes se sentem mais à vontade com ela do que com o médico. “Eles me contam até detalhes que ninguém sabe. É bom ser uma figura importante na comunidade. Moro há 30 anos neste bairro e o conheço como a palma da mão.”

Gusso afirma que, quando os pacientes passam primeiro pelo atendimento do médico da família, os problemas de saúde se distribuem melhor. “O médico da família é uma especialidade que atende de uma forma geral problemas indiferenciados e freqüentes. Por exemplo: uma criança com hiperatividade e a mãe com depressão. Como se trata isso? Procuramos uma abordagem familiar para entender a conjuntura social, que é mais complexa, e daí traçar o encaminhamento do tratamento.”

Os estudantes compõem seis grupos de 15 pessoas. São 180 alunos divididos em dois grupos de 90, os quais se subdividem em seis grupos de 15 pessoas para atuar nos três bairros selecionados. “Durante os três períodos do curso de graduação, os alunos trabalharão com a mesma equipe de saúde da família. Assim cria-se um vínculo com a comunidade”, explica o coordenador da disciplina, professor Yassuhiko Okay. “Essa proposta quer dar ao aluno uma visão mais integral do sistema de saúde. Tem-se idéia clara de como é o ambiente sociocultural e natural daquela comunidade, se favorável à saúde ou à doença.”

 

 

Disciplina quer formar
o médico da família


A reestruturação do sistema de saúde que vem acontecendo nas esferas federal, estadual e municipal tem levado a Faculdade de Medicina da USP a aprimorar sua grade curricular, implementando, desde 2003, a disciplina obrigatória Atenção Primária à Saúde. É uma disciplina transcurricular e interdepartamental, desenvolvida em três Unidades Básicas de Saúde (UBS) situadas no Distrito de Saúde Escola do Butantã, que engloba o Jardim São Jorge, o Jardim Boa Vista e a Vila D’Alva. A atenção primária é o primeiro contato do usuário com o sistema de saúde. É nesse contato que se identifica qual o problema e sua complexidade. Apenas os casos de maior complexidade são referenciados para o nível secundário, que no caso é o Hospital Universitário da usp e, quando necessário, para o nível terciário, que é o complexo Hospital das Clínicas. Isso significa que a maioria dos problemas de saúde é resolvida no nível da atenção primária através de promoção da saúde, prevenção de doenças e acidentes e atenção curativa, simultaneamente.

Com a criação do Programa Saúde da Família (PSF) pelo Ministério da Saúde, o médico que trabalha no posto de saúde passou a ser considerado um profissional mais respeitado e de confiança da comunidade. É ele quem faz o primeiro diagnóstico, para depois encaminhar, se necessário, ao especialista ou para o atendimento em hospital. Carinhosamente denominado “médico da família”, ele recebe uma formação mais geral, humanista, crítica e reflexiva. 
Okay: interação com a realidade  



Segundo Yassuhiko Okay, vice-diretor da Faculdade de Medicina da USP, com a municipalização da saúde, a faculdade sentiu necessidade de ampliar seu paradigma de atenção à saúde. “Esta faculdade sempre buscou formar especialistas gerais e subespecialistas, através de 41 programas de residência médica. Essa formação se dá preferencialmente no hospital de nível secundário ou
terciário com atenção predominantemente curativa”, explica. Também coordenador da disciplina, Okay afirma que uma faculdade de medicina deve formar alunos que tenham conhecimento do sistema de saúde como um todo.

Ensino e pesquisa

A atenção básica em saúde é hoje a área que mais se expande na medicina. Muitos cursos de especialização, pólos de capacitação, programas de residência médica em medicina de família e comunidade surgiram nos últimos anos.
Nessa proposta de atuação voltada para a atenção primária através da estratégia de saúde da família, Okay explica que a intenção é reordenar o sistema de saúde a partir da atenção primária, o que significa que a porta de entrada do sistema passa a ser a atenção primária e não o hospital, como costuma acontecer. “Os pacientes passam a ser referenciados pelo nível de atenção primária ao nível secundário ou terciário, segundo suas necessidades, mas subentendendo que na atenção primária pelo menos 85% dos pacientes terão seu problema resolvido, sem precisar ir para os outros níveis de tratamento, resultando, muitas vezes, em internações e procedimentos desnecessários.”
Okay explica que, com o protocolo de intenções assinado entre a USP e Secretaria Municipal de Saúde, em 2002, e a solicitação do convênio entre as duas instituições, a faculdade passa a se inserir nas políticas públicas de saúde da secretaria e se integrar à comunidade, desenvolvendo seu papel de extensão universitária, sem desprezar
a questão do ensino e da pesquisa.

A disciplina de Atenção Primária à Saúde é inter e multidepartamental e sua coordenação está diretamente ligada à diretoria da Faculdade de Medicina. Criou-se, na diretoria, um grupo de atenção primária que congrega quatro departamentos fundamentais: Clínica Médica, Pediatria, Ginecologia e Obstetrícia e Medicina Preventiva e Social. Segundo Okay, futuramente serão contatados outros departamentos, que estão sendo convidados para compor o programa da disciplina de Atenção Primária à Saúde, bem como da residência médica.
A estrutura do curso é transcurricular, pois abrange o primeiro, terceiro e quinto anos, e interdepartamental por desenvolver-se com outros departamentos. “O primeiro ano é dedicado às atividades na comunidade centrada no agente comunitário de saúde; o terceiro ano, nas atividades da equipe de saúde da família intra-unidade e nos aspectos do planejamento da intervenção em saúde. Finalmente, no quinto ano o aluno desenvolverá, sob supervisão direta dos profissionais da UBS, as funções de médico da família”, ressalta Paulo Elias, professor da Faculdade de Medicina.

Okay explica que dessa forma os alunos vão assumindo responsabilidades crescentes ao longo da exposição da disciplina. Começa pela identificação do território, quando eles acompanham os agentes de saúde, realizam o cadastramento das famílias que corresponde àquele território, avaliam quais os fatores propícios à saúde ou à doença e através de mecanismos intersetoriais buscam solucionar os problemas.

Treinamento

Maior entusiasmo para aderir ao curso de medicina. Assim definem Okay e Elias o crescente entusiasmo da primeira turma da nova grade curricular, que dá mais enfoque sobre o treinamento em serviço. “Na proposta antiga, a prática só era adquirida na residência médica. Agora parte-se da prática para referir todo um arcabouço teórico conceitual. Isso é interessante porque nos tempos atuais favorece a adesão dos alunos à proposta, já que eles interagem concretamente com os problemas e a partir daí vão buscar a reflexão teórica e conceitual para o auxílio na resolução dos problemas”,
diz Okay.

Elias diz ainda que a estruturação do curso procura levar os alunos a viver a realidade da periferia, e saber como se processa a vida na comunidade. “Passam de três a quatro períodos caminhando e reconhecendo o que é chamado de imersão, ou seja, o reconhecimento do território. Depois passam a seguir todos os passos do agente comunitário de saúde para se apropriar dos problemas, entender qual o alcance e os limites desse trabalho, que cuidados têm que ter, como isso se vincula com a equipe de saúde da família, com a UBS. A partir daí vão progredindo tendo aulas de antropologia para entender as diferenças e a cultura, fazemos uma interdisciplinaridade. Levantam os problemas e apresentam soluções para a intervenção na comunidade.”
Com a municipalização a cidade de São Paulo foi dividida em distritos.
A proposta da faculdade acontece no Distrito de Saúde Escola Butantã. Ele inclui vários bairros com uma população de quase 400 mil habitantes. Devido à boa repercussão da disciplina, foi solicitado, ainda este ano, à Comissão Nacional de Residência Médica, o credenciamento da Residência de Saúde da Família e da Comunidade. “Queremos formar o médico da família”, destaca Okay.

A formação do médico da família não se confunde com a formação do médico generalista. Para o médico da família, além dos conhecimentos de medicina, são exigidos conhecimentos adicionais de psicologia social, educação para a saúde, noções de sociologia e antropologia. Okay ressalta que ele não é um simples médico. “Ele vai assumir questões gerenciais, vai ser um gestor, um educador para a saúde. Poderá propor, dentro dos levantamentos que serão feitos, mudanças na subprefeitura do distrito junto à com a população, que também é envolvida para que todos juntos proponham soluções para os problemas.”

 

 

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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