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A prudência – A virtude da decisão certa, de Tomás de Aquino, tradução direta do latim, introdução e notas de Jean Lauand, Editora Martins Fontes, 120 páginas.

 

 

 



E
xiste uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? (Reflexão do jagunço Riobaldo em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa)

Pensando agir com base na razão, o homem ocidental moderno acostumou-se a tomar decisões fundamentado, muitas vezes, em suas próprias paixões. Decide-se por inveja, por ambição, por medo e até por respeito ao “politicamente correto”, mas nem sempre pela ratio (razão, em latim). Nada mais prejudicial à conduta humana do que esse equívoco, poderia dizer o filósofo medieval Tomás de Aquino (1224-1274). Para ele, existe uma virtude capaz de fazer com que o ser humano encontre, em cada decisão que toma, aquela “receita”, aquele “caminho certo, estreito”, de que fala Guimarães Rosa através de Riobaldo. Essa virtude é a prudência – ou melhor, a recta ratio agibilium (reta razão aplicada ao agir), segundo a definição de Aquino.

Para explicar esse conceito ao leitor brasileiro, o medievalista Jean Lauand, professor da Faculdade de Educação da USP, lançou recentemente A prudência – A virtude da decisão certa, de Tomás de Aquino, traduzido diretamente do original em latim. Publicado pela Editora Martins Fontes, o livro reúne artigos sobre a prudência – uma das quatro virtudes cardeais, segundo o pensamento medieval – extraídos da Suma teológica, a célebre obra de Tomás de Aquino.
Mais do que uma contribuição para a história das idéias, o livro pode ajudar o homem moderno a refletir sobre sua própria conduta e a elucidar alguns de seus mais urgentes problemas existenciais – entre eles, a incerteza sobre o agir certo ou errado –, como diz Lauand na introdução. “É dessa perspectiva que tomamos as idéias fundamentais de Tomás, no que têm de potencial de diálogo antropológico com o homem de hoje.”

Ação

A prudência em Tomás de Aquino nada tem a ver com o moderno significado do termo, que hoje se refere à cautela – às vezes motivada pelo oportunismo ou
pelo egoísmo – no momento de tomar uma decisão (ou não tomar), explica Lauand. Ao contrário, ela diz respeito à arte de decidir corretamente, não em virtude de qualquer tipo de sentimento, mas com base na realidade mesma. “Prudência é ver a realidade e, com base nela, tomar a decisão certa”, afirma o professor, que tem outros textos sobre Tomás de Aquino disponíveis na página eletrônica da Editora Mandruvá (www.hottopos.com).

Ver a realidade é apenas uma parte da prudência, continua Lauand. A outra parte é transformar a realidade vista em ação. “De nada adianta saber o que é bom se não há a decisão de realizar esse bem”, nota o professor. Ele destaca que o homem moderno tanto desaprendeu a “ver a realidade” como tende a esquivar-se de tomar decisões, atentando assim frontalmente contra a prudência. “A grande tentação da imprudência (sempre no sentido clássico) é a de delegar a outras instâncias o peso da decisão que, para ser boa, depende só da visão da realidade”, acrescenta Lauand. “Há diversas formas dessa abdicação: do abuso de reuniões desnecessárias à delegação das decisões a terapeutas, comissões, analistas e gurus, passando por toda sorte de consultas esotéricas.”

Para Lauand, a obra de Tomás de Aquino é o reconhecimento de que a direção da vida é competência do indivíduo e que não há “receitas” de bem agir, pois a prudência versa sobre ações contingentes, situadas no “aqui e agora”. “É que a prudência é virtude da inteligência, mas da inteligência do concreto: a prudência não é a inteligência que versa sobre teoremas ou princípios abstratos e genéricos. Ela olha para o ‘tabuleiro de xadrez’ da situação presente, sobre a qual se dão as nossas decisões concretas, e sabe discernir o ‘lance certo’, moralmente bom. E o critério para esse discernimento do bem é a realidade.”

Deixar de ser prudente, no sentido dado por Tomás de Aquino, pode ser desastroso para o homem. Segundo o professor, isso equivale à despersonalização do indivíduo, à falta de confiança em si mesmo. Pode transformá-lo como que num “menor de idade”, incapaz de decidir, que transfere a direção de sua vida para outros – seja o Estado ou a Igreja. “Em qualquer caso, é sempre muito perigoso.”



“O bem é objeto da vontade”

A seguir, trechos extraídos de A prudência, de Tomás de Aquino.

Como dissemos ao discutir as virtudes em geral, virtude é o que torna bom aquele que a possui e seus atos. Contudo, o bem pode ser considerado em dois sentidos: materialmente, aquilo que é bom; e formalmente, sob o aspecto de bondade. O bem, sob o aspecto de bondade, é o objeto da vontade. Portanto, se há hábitos que tornam reta a consideração da razão sem levar em conta a retidão da vontade, eles terão menos caráter de virtude, pois encaminham ao bem materialmente, isto é, àquilo que é bom, mas não por ter caráter formal de bem. Mais caráter de virtude têm aqueles hábitos que se voltam para o bem não só materialmente, mas também formalmente, isto é, para o bem considerado como tal: levando em conta a retidão da vontade. Ora, é próprio da prudência a aplicação da reta razão ao agir, o que não ocorre sem a retidão da vontade. Daí que a prudência possua não só o caráter de virtude que têm as outras virtudes intelectuais, mas também o caráter de virtude das virtudes morais, entre as quais igualmente é enumerada.

O fim das virtudes morais é o bem humano. O bem da alma humana, porém, é ser segundo a razão, como fica evidente no IV cap. De Div. Nom. de (Pseudo) Dionísio. Daí que seja necessário que os fins das virtudes morais preexistam na razão.

Do mesmo modo que na razão especulativa há certos conhecimentos evidentes, naturalmente conhecidos, que competem à “inteligência”, e outros conhecimentos derivados a que chegamos por meio deles, como conclusões, que competem à “ciência”; assim também na razão prática preexistem como que certos princípios naturalmente conhecidos e que são os fins das virtudes morais, pois o fim está para as ações assim como o princípio está para a razão especulativa. E há também no âmbito da razão prática o correspondente às conclusões (na razão especulativa), que se dirigem ao fim, por meio das quais atingimos o fim. E este é o papel da prudência: aplicar os princípios universais às conclusões particulares do âmbito do agir. E, assim, não compete à prudência indicar o fim das virtudes morais, mas somente lidar com os meios para atingir o fim.

Prudência, como vimos acima, é a reta razão aplicada ao agir. Daí que seu ato principal será o ato que for mais importante para o agir fundado na razão.
Ora, a prudência comporta três atos: o primeiro é aconselhar, que diz respeito à descoberta, pois aconselhar é inquirir; o segundo ato é julgar, avaliar o que se descobriu, e este é um ato da razão especulativa. Mas a razão prática, que se volta para o agir, vai mais além no terceiro ato, que é comandar: aplicar ao agir o que foi aconselhado e julgado. E como este é o ato mais próximo ao fim da razão prática é também o principal ato dela e, portanto, da prudência. Um sinal claro disso é que a perfeição de uma arte consiste em julgar e não em comandar: considera-se melhor artífice aquele que, de propósito, erra em sua arte do que aquele que erra sem querer, pois nesse caso há um erro de juízo. Mas na prudência ocorre o contrário; como diz Eth., VI, 5, é mais imprudente quem erra sabendo (pois atenta contra o ato principal da prudência) do que quem erra sem querer.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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