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N
osso grupo de canoagem – a Companhia de Canoagem – é formado por umas 20 pessoas de várias idades e profissões, todas unidas pelo interesse comum em remar e curtir a natureza. Nas férias são programadas saídas mais longas, em geral 15 dias, para locais mais remotos do País. Em julho passado, o rio escolhido foi o Aquidauana, no Pantanal de Mato Grosso do Sul. O grupo utiliza canoas tipo canadense, fabricadas pelo fundador do grupo, Tonico Osse. São canoas de 15 e 17 pés, de fibra, leves e resistentes, para um ou dois remadores.

Saímos no dia 2 de julho, após muitas démarches, mudanças de rio e discussões nos meses que precederam a viagem. Os participantes foram Tonico Osse, mestre em Ecologia e fabricante das canoas; Sadao Matsuda, matemático, executivo da Daimler Chrisler; Paulo Kunt, microempresário em Sorocaba; Eduardo Carvalho, biólogo e criador de avestruzes; Álvaro De Pierro, professor titular de matemática da Unicamp e este articulista.

Fomos com uma caminhonete puxando a carreta com as canoas e mais um veículo. Às 6h30 já estávamos na Castelo Branco e, depois, na Marechal Rondon, rumo a Aquidauana. Paramos para almoçar numa casa muito simpática, já no Estado do Mato Grosso do Sul. Fogão a lenha, arroz, feijão, costelinha de porco, boa pimenta... Perguntei ao simpático proprietário se tinha uma cachaça boa. Ele fez uma careta e disse: “Cachaça nenhuma presta. Tenho umazinha que não vale nada. Quer?”. Quis. Depois pedi uma cerveja e fez outra careta: “Só tenho de lata”. Após o almoço piquei um fumo de corda e enrolei um cigarro de palha. Outra careta: “E além disso fuma essa coisa!”. Cheguei à conclusão de que devia ser crente.

Forno de barro

Chegamos a Anastácio, cidade gêmea de Aquidauana, às 21 horas, para passar a noite. Não havia onde comer. A churrascaria da cidade estava fechada e não havia pizzaria. Comemos uns aperitivos de pintado e tomamos várias brahmas em um bar em frente ao hotel. Saímos bem cedo rumo a uma pousada a 75 quilômetros de Anastácio, em estrada de chão. A idéia era deixar as canoas lá e levar os veículos até Paço do Lontra, ponto onde havíamos planejado sair do rio, distante 310 quilômetros do ponto de entrada.

A pousada era muito aprazível e a dona, simpática e boa conhecedora da região, nos desencorajou: “Vocês vão viajar o dia inteiro e voltar quebrados. Fica muito mais barato pagar dois motoristas para levar os carros”. Assim foi feito, e curtimos a pousada, muitas latinhas a 3 paus cada, cachaças, charuto, tererê, cabeça de vaca morta no dia anterior e assada em forno de barro com couro e tudo e tripa leiteira, que eu nem sabia que existia, mas que junto com bochecha de vaca era considerada a melhor iguaria.

As muriçocas já atacavam firme mostrando o que íamos enfrentar. O dono era um senhor forte, fazendeiro aposentado que ajudava a filha a complementar a renda, tendo transformado a casa em pousada. Mentia com propriedade e convicção como poucos, com muitas histórias sobre onças caçadas com zagaias. Ao final me disse que o bicho mais perigoso do Pantanal eram mesmo as abelhas africanas. Quando falei em pular n’água, disse para nunca fazer isso, porque elas atacam na cabeça e não deixam o cabra respirar. O fazendeiro tinha um ombro deslocado, muito pior que o meu, mor de um tiro que recebeu de um cunhado que lhe havia roubado 800 reses, assim me disse o Natalino, sempre tomando tererê.

A pousada fica na beira do Aquidauana e junto a uma lagoa cheia de jacarés, que foram chamados pelo João, o faz-tudo da pousada: “carééé”, “carééé” – e uns três jacarés de cerca de dois metros foram chegando, confiantes em receber algum resto de comida. O João é piloteiro, mateiro, garçom e contador de causos – já foi tropeiro, pescador profissional e piloto de chalana. Sabe de tudo e usa termos científicos inclusive para algumas plantas e animais, fala de simbiose, epífitas e outras coisas complicadas. João andava com uns anzóis enfiados no boné dizendo estar preparado para qualquer emergência, e mostrou como fazer linha de pesca com fibra de folha de caraguatá. Me mostrou uma planta do cerrado com frutos grandes, marrons, que chamam de timbó e usam para pescar, a qual nada tem a ver com o timbó que conheço.

Junto à pousada vimos araras azuis (em toda viagem só vimos um casal de araras vermelhas), muitos tucanos, aranquãs, jacus, vários tipos de gaviões, íbis, curicacas, garças, socós, bandos de cardeais, uma infinidade de pássaros pequenos coloridos, capivaras e porcos-monteiros – criados soltos, meio asselvajados, pretos e compridos, com pernas altas, fuçam e comem tudo. João estava preocupado que comessem as canoas.

Na fazenda havia alguns pés de carandá, uma palmeira que parece a carnaúba (é também uma Copernicia). Muito elegante, é uma das poucas palmeiras cujo tronco pode ser usado em construção. Não era muito comum. A região é dominada pelo bacuri, uma outra palmeira cujo fruto é muito apreciado por cutias e pacas – esta é muito abundante e algumas vezes acampamos sob bacurizais. O buriti apareceu em apenas alguns lugares, mas em um trecho da viagem vimos uma mata espetacular de buritis adultos e com frutos.

Macacos-prego

O rio estava excepcionalmente cheio para a época, o que nos preocupou pela possível falta de praias para acampar. Finalmente na água, saímos alegres e excitados, após arrumar cuidadosamente a tralha nas canoas, ouvindo bandos de bugios, que trovoavam assustadoramente, e aranquãs estridentes. O ar estava fresco e a silhueta da mata ciliar refletia na água tranqüila que exalava um vaporzinho.

Os planos eram remar 30 quilômetros por dia e fazer o percurso em dez dias – o rio fluía a uma velocidade variável entre 2,5 e 4,0 km/h, dependendo do vento. No primeiro dia fizemos 39 quilômetros – o alvo era chegar no Retirinho, uma fazenda de uma cunhada do dono da pousada. Usaríamos o nome dele para pedir licença para acampar em terras da fazenda. Mas paramos um pouco antes ao encontrarmos um camping grande e abandonado. Aparentemente as instalações já foram muito boas, com banheiros, cozinha e quartos, mas tudo estava abandonado há alguns meses. Havia pés de limão-cravo e uma mexerica muito azeda. Logo após montar as barracas, um bando de macacos-prego atravessou o acampamento pelo alto das árvores. Fiz uma tentativa de pescar, mas nem vestígio de peixe e as nuvens de pernilongos não permitiram insistir muito, especialmente para quem não gosta de repelente e não tomou vitamina B.

Ao sairmos para uma caminhada no final da tarde, varamos uma porteira onde havia uma placa proibindo a entrada – não fizemos conta porque não estávamos entrando mas saindo, e quando voltamos já estava escuro e não vimos a placa. Caminhamos por uma trilha por mais de uma hora através de um cerrado aberto, com árvores altas, onde as aves já estavam se recolhendo para passar a noite. Pegamos uns frutos de jenipapo para pescar pacus, guardados cuidadosamente pelo Paulo. Vimos muitas pegadas de onças, jaguatiricas, guaxinins, catetos e outros bichos. Tonico viu um tamanduá-mirim e nós vimos uma vara de queixadas. Voltamos para o acampamento já no escuro.

Peões armados

Dia seguinte saímos às 8 horas com céu nublado, o tempo esfriando e um ventinho que espantou os pernilongos, o que tornou o café menos traumático. Vimos ariranhas e macacos logo na saída. Uns dois quilômetros abaixo chegamos ao Retirinho, na realidade uma belíssima fazenda com um local incrível para acampar, uma mesa, pia e chuveiro na beira do rio. A fazenda era de propriedade da cunhada do dono da pousada onde havíamos ficado. Fui o único a descer e pisar no barro. Bati palmas em uma bela casa e a empregada me disse que a dona ainda dormia. Como não íamos parar, achei prudente não acordá-la. Enchi dois garrafões de água de poço enquanto ouvia de um vaqueiro que trabalhava na fazenda que a onça havia pego um porco naquela noite. Admirou-se de nossa aventura e perguntou se tínhamos ouvido a onça à noite. Acho que a fogueira e o ronco de nosso querido professor de matemática devem ter assustado a dita cuja.

A preocupação, neste segundo dia, é que não tínhamos um ponto programado para pernoitar – o mapa mostrava uma zona completamente deserta – e não havia praia ou barranco alto, só bancos de coivaras, charão e camalotes. Já um pouco preocupados, com os pessimistas querendo acampar em qualquer biboca e os otimistas achando que na próxima curva haveria uma praia legal, vimos com alegria uma área mais limpa para o gado beber água, sob um grande ingazeiro debruçado sobre o rio e ao lado de uma lagoinha cheia de aguapés com suas flores azuis. Enfiamos os pés em um barro cinza ao desembarcar, mas achar onde parar foi um alívio. Acho que remamos uns 40 quilômetros até achar esse local.

Após já estarmos instalados, o Paulo e o Edu pescando na lagoa (parece que o Paulo pegou um armal, mas não vi fotos e a testemunha era suspeita), ouvimos uns gritos estranhos, como que de índios, vindos do mato. Logo reconhecemos que eram vaqueiros juntando gado no mato (não havia pasto, apenas umas trilhas). Chegaram três peões montados em dois burros picaços e uma mula tordilha. Jovens, morenos, dois deles estavam armados com revólveres em coldres de pele de bezerro e todos traziam facões-jacarés em uma bainha larga, com uma chaira, enfiada na cintura, na parte de trás.

Fui logo ao encontro deles sorrindo e fiquei feliz por ainda estarmos vestidos e não estarmos tomando nossa preciosa cachaça, cuja escassez eu já antevia. “Taarde, será que os senhores dariam licença de pernoitar aqui? Estamos remando desde Aquidauana, estamos cansados e não encontramos um local para acampar. Vamos sair amanhã de madrugada e deixar tudo limpo.” Eles apearam, meio sem jeito, e fez-se um silêncio constrangedor. A fazenda ficava muito longe... Se não deixássemos sujeira poderíamos acampar aquela noite... Daí a pouco chegou outro peão. Incomodou-me o fato de vê-los a maior parte do tempo de braços cruzados, olhando curiosos nossas barracas. Beberam a água barrenta do rio, pediram uns anzóis para o Sadao e se mandaram sem muito papo.

Para mim esse encontro inesperado, próximo ao anoitecer, com os quatro peões, muito jovens, armados e de braços cruzados em um local perdido no mundo, foi o momento mais tenso da viagem, mas parece que fui o único a me preocupar. Creio que os cavaleiros ficaram mais surpresos que nós, pois nunca haviam visto esse tipo de gente que anda nessas canoinhas e dorme em estranhas barracas.

A mulher do capataz

Amanheceu frio e nublado, chegando a frente fria. Nessa altura trocamos os pares das canoas e eu saí na canoa vermelha, com o mestre Sadao na popa. Não sei o que ele aprontou, mas a canoa quase virou, eu me agüentei, com a proa com água pela canela, mas ele caiu no rio. O Tonico havia sumido rio abaixo, Paulo e Edu riam do infausto acidente enquanto o Sadao era arrastado pela corrente e eu, com muita dificuldade por causa da proa alagada, remei para o barranco e segurei nas raízes de um xixá. Felizmente o pirata argentino remou rio acima e veio em socorro do Sadao, jogou uma corda de resgate para salvar o náufrago que tremia que nem vara verde, mas de frio, não de medo. Por falar em vara, a minha foi para o fundo com um precioso molinete japonês, o que prejudicou o rendimento das pescarias seguintes, e acho que perdemos mais algumas cositas, mas eram supérfluos.

No terceiro dia remamos cerca de 40 quilômetros, de novo acima da meta planejada por falta de encontrar um local para acampar. Dormimos num lugar que estava no mapa marcado como porto. Paramos num lindo barranco gramado embaixo de uma placa que dizia ser proibido acampar, caçar, pescar e parar canoas, decreto-lei 43.256, Polícia Florestal e o escambau – alguém fotografou a placa meio apagada pelas intempéries. Lá fui eu como embaixador em direção ao casario a uns 200 metros do porto. Havia várias casas e cachorros e vi movimento na última, para a qual me dirigi pulando uma porteira trancada, meio receoso de levar um tiro ou ser atacado pelos cachorros. Com muito jeito me apresentei, grupos de remadores de São Paulo, remando desde Aquidau... cansados... solicitam permissão para pouso.

Um caboclo moreno, de peito largo (Lourenço), disse para uma mulher mais arrumada: “Acho que não tem problema, né, dona Susana?”. Mas a dona Susana, mulher do capataz, disse que era melhor ligar para o proprietário, que tinha saído com o capataz para vender uma boiada. Fomos para a casa da sede e ela ligou para o celular do cara – percebi que o cara dizia não, quis falar com ele, mas ela fez que não, disse que sairíamos de madrugada, não íamos pescar (acho que pensou que éramos do MST) e, quando vi que ainda havia dificuldades, mandei dizer que era professor da USP e que tinha também um professor de matemática da Unicamp.

Acho que isso decidiu a questão. “Ok, vocês podem ficar esta noite, mas sem fazer barulho, sem deixar lixo e tomar bebida alcoólica.” Comemoramos com umas boas doses de cachaça a proibição e por sorte montamos acampamento ali, porque num raio de mais uns 20 quilômetros, como vimos no dia seguinte, não havia onde acampar! Andando pelos arredores, vimos que o zeloso fazendeiro tinha uma espécie de lixão em um igarapé mais acima.


O Brasil é nosso

O entardecer no “porto” foi espetacular e a paz só era perturbada por tucanos e araras voando sobre o acampamento. Um jaburu muito confiado nos olhava sério e pensativo. Fui dar uma volta e ele me seguia a uns 20 metros de distância. Apontava a máquina e ele, acanhado, virava de costas e se afastava. Uma capivara pastava perto do acampamento e foi devidamente fotografada. Jogamos a tralha n’água, mas não pegamos lhufas. Mais tarde apareceu um cara correndo, descalço no meio do pasto (era um peão treinando para alguma olimpíada pantaneira), falou qualquer coisa rápido e voltou a correr. Depois apareceu o Lourenço, amistoso, procurando papo e louco para ser fotografado. Quando agradeci mais uma vez a autorização para acampar ele disse: “Fiquem à vontade, o Brasil é nosso”. Cedinho, quando estávamos saindo, veio com uma garrafa de café quentinho (mais apreciado porque o Edu, encarregado de levar a tralha do café, havia esquecido) e disse para voltarmos qualquer dia e trazermos as fotos. Um pouco depois passamos pela fazenda de uma famosa ambientalista do pantanal, com uma placa onde era proibido tudo. Seguimos a corrente, comentando sobre a privatização das margens dos rios brasileiros.

A vegetação ribeirinha ia mudando, e começou a aparecer mais camalotes e uma helicônia, aumentando a quantidade de jacarés e diminuindo os bugios. Paramos para comer umas latas de atum e barrinhas de cereal na base fluvial de uma famosa pousada em Porto São Domingos, que estava no mapa, cuja sede fica a uns 30 quilômetros afastada do rio, local preferido pelos turistas estrangeiros que visitam o Pantanal. Lugar limpo, arrumado com todo o conforto e campo de aviação. Parece que os habitantes tinham acabado de sair dali. Havia uma chalana e oito canoas verdes (não eram da Companhia de Canoagem, para tristeza do Tonico) e, incrível, um freezer com carne e uma dúzia de Skol (homem!).

Discutimos se pernoitaríamos ali ou seguiríamos para algum local desconhecido. Argumentou-se que os funcionários poderiam chegar e dizer que não era permitido acampar e aí ficaria tarde para achar outro local, os celulares não funcionavam (claro, seu vivo). O impasse era grande e tivemos que votar. A maioria queria continuar e arriscar acampar mais para baixo. Remamos 48 quilômetros para achar um local onde acampar, tudo alagado, um pantanal. Uma dupla que estava mais cansada quis parar num lugar que não parecia grande coisa. Paulão desceu e disse que havia um enxame de abelhas-africanas. Lembramos o que disse o fazendeiro e seguimos em frente desanimados. Mais uns quilômetros e vimos um outro local bem ruinzinho. Uns queriam parar, mas seguimos e logo encontramos um local melhor.

Eurico Cabral de Oliveira é professor do Departamento de Botânica do Instituto de Biociências da USP. Mais informações podem ser obtidas na página eletrônica www.companhiadecanoagem.com.br.

Leia a continuação deste artigo.

 

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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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